REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102502161357
Leonardo Adriano da Silva Reis
Orientadora: Profª. Drª. Aline Ferreira Campos
RESUMO
Quando se estuda a ciência comportamental, é consenso dizer que a Psicologia nasceu no século XIX, em Leipzig, como fruto do trabalho de Wilhelm Wundt. Contudo, essa afirmação pode levar à concepção equivocada de que todo conhecimento de natureza psicológica surgiu naquele momento quando, na verdade, a Psicologia se firma como campo experimental, trazendo um vasto arcabouço teórico anterior, seja ele bem sistematizado na filosofia ou na teologia, seja enquanto estado embrionário. Partindo da realidade atual, em que crescem cada vez mais os casos de transtorno depressivo e considerando a natureza religiosa do pensamento ocidental, o presente artigo visa buscar no pensamento medieval, representado por Santo Tomás de Aquino, monge dominicano, elementos de um pensamento psicológico acerca da tristeza profunda ao mesmo tempo em que se compara com a prática da terapia fenomenológica-existencial estabelecida nos consultórios em tempos hodiernos. A compreensão dessa linearidade no desenvolvimento do conhecimento psicológico que atravessa os séculos e chega a nós através da filosofia e da teologia pode ajudar a compreender a mentalidade religiosa, especialmente católica, e lançar bases para possíveis estudos de como a religiosidade pode ajudar na prática do terapeuta.
Palavras-chave: Tomás de Aquino, Depressão, Fenomenologia, Terapia, Tristeza
INTRODUÇÃO
De acordo com Brant e Minayo-Gomez (2008), desde a antiguidade até a Idade Média, de Aristóteles a Divina Comédia de Dante Alighieri, passando por Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) havia uma tradição bem fundamentada de compreender as paixões humanas e, especificamente a tristeza, como um estado da alma e não como estado anímico, um estado de humor. Por estado de alma compreende-se que sejam as disposições da alma em relação ao seu fim último: a felicidade eterna. A temperança e a busca constante pelo seu sentido modulam e equilibram as paixões ao passo que a pessoa se aproxima ou se distancia dos “bens eternos”. Por sua vez, estado anímico são os estados emocionais de longa duração que influenciam o modo do indivíduo de se relacionar com o mundo e consigo mesmo. Contudo, a psicologia clínica contemporânea rompe com essa tradição das paixões, enquanto alma, e apresenta um novo conceito: depressão.
Esse rompimento da psicologia com a concepção tradicional das paixões fica evidenciada em Freud que, conforme Maciel e Rocha (2008) explicam, era influenciado pelo pensamento iluminista cientificista e que em sua obra “O Futuro da Ilusão” (1927) expressa sua fé no deus Lógos e define a religião como uma ilusão. Não obstante, o censo brasileiro de 2010 apresenta dados de que 64,60% da população se declara católica (IBGE, 2010). Isso indica que a maior parcela da população brasileira provavelmente ainda tem alguma relação com esse sistema de pensamento da tradição tomista.
Desse modo, a presente pesquisa buscará fazer uma retrospectiva histórica dentro da compreensão da depressão até antes do surgimento da Psicologia como ciência delimitada. Esse caminho de volta ao passado privilegia o pensamento de Tomás de Aquino, um monge italiano do século XIII venerado como Santo por toda a Igreja Católica, sendo chamado também de Doutor Angélico, por conta de tão alto grau de ciência alcançado em suas obras.
Ele, portanto, é um ótimo representante de todo o pensamento corrente durante a Idade Medieval e, que de forma sistemática, colocou seus conhecimentos no papel, proporcionando-nos essa possibilidade de compreender o pensamento da época acerca do homem e da chamada tristeza profunda, que atualmente é chamada de depressão.
QUESTÃO DE PESQUISA
Este trabalho parte da pergunta sobre a existência de semelhanças, tanto de conceitos quanto de práticas, entre o sistema religioso tomista medieval e a abordagem fenomenológica moderna quanto ao tratamento da depressão.
JUSTIFICATIVA
A principal motivação para sustentar o presente projeto de pesquisa reside na dicotomia, numa certa rivalidade entre a psicologia moderna e o sistema religioso católico no Ocidente. O senso comum coloca, de forma errônea, essas duas realidades como antagonistas e que qualquer contato entre as partes dentro do contexto clínico seria, peremptoriamente, uma violação ao código de ética do profissional de psicologia, no artigo 2º, item “b”, quando diz que é vedado ao psicólogo “induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais” (Código de Ética Profissional do Psicólogo, 2005).
Pensando nisso e levando em consideração minha própria biografia, como estudante de filosofia e seminarista católico que fui; considerando que Tomás de Aquino é autor de uma extensa produção filosófica e teológica, tão atual e estimada, sendo a principal referência fundamental para a Teologia Católica até os dias de hoje e que pode vir a contribuir com a psicologia, a presente pesquisa é uma forma de buscar a reconciliação epistemológica entre os dois campos de conhecimento, psicologia e religião, de modo a compreender como foram abordados os mesmos objetos a partir de linguagens e métodos próprios.
No que se refere à depressão, foi escolhido esse transtorno especificamente por causa da alta taxa de prevalência. A cada dia aumentam os casos de depressão e que podem atingir quaisquer classes sociais, culturas e crenças. Como proposta de criar pontes, acreditamos que essa pesquisa possa ajudar a compreender a linguagem e a experiência das pessoas, que estão imersas em algum nível em contextos religiosos da sociedade brasileira, promovendo um melhor debate entre Psicologia e Religião, levando em consideração a conexão dos temas abordados, cada uma a partir de sua própria perspectiva e método.
OBJETIVOS GERAIS
Identificar se e como pode existir uma relação entre o pensamento de Tomás de
Aquino e a psicopatologia fenomenológica no que tange ao tratamento da depressão.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
- Conceituar a Depressão de acordo com o DSM-V e com a psicopatologia fenomenológica.
- Identificar conceitos na obra de Tomás de Aquino relacionados ao tratamento da depressão.
- Descrever se há uma relação entre o pensamento de Tomás de Aquino e a depressão segundo conceitos da psicopatologia moderna fenomenológica.
MÉTODOS
Tipo de Pesquisa
A presente pesquisa adotará métodos qualitativos, de caráter bibliográfico, para relacionar conceitos.
Instrumentos
O instrumento a ser utilizado será a busca em bases de dados da internet, para acesso a artigos científicos, revistas científicas, livros e quaisquer outros elementos virtuais para acesso aos materiais publicados.
Procedimentos
Será feito um levantamento bibliográfico de artigos científicos, periódicos, livros e estudos de caso acerca da visão de Tomás de Aquino e da psicopatologia fenomenológica sobre a depressão, para que, em seguida, essas visões sejam confrontadas.
Serão pesquisadas palavras chave como “paixões em Tomás de Aquino”, “depressão e fenomenologia”; “depressão e Tomás de Aquino”; “Tomás de Aquino e fenomenologia”.
REVISÃO DE LITERATURA
1. Tristeza enquanto paixão
De acordo com Brant e Minayo-Gomez (2008), desde a antiguidade até a Idade Média, de Aristóteles a Divina Comédia de Dante Alighieri, passando por Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) havia uma tradição bem fundamentada de compreender as paixões humanas e, especificamente a tristeza, como um estado da alma e não como estado anímico, um estado de humor. Contudo, a psicologia clínica contemporânea rompe com essa tradição das paixões, enquanto alma, e apresenta um novo conceito: depressão.
Segundo a visão de Tomás de Aquino, os seres humanos são compostos por duas dimensões, o corpo e a alma. A alma é a parte imortal, eterna, caracterizada pela razão e o corpo é a dimensão perecível e material compartilhada com todos os outros animais porque possuem as mesmas capacidades intrínsecas . A alma é justamente o princípio animador das coisas, ao passo que quando algo é animado, vivo, é porque tem alma e quando inanimado é porque não tem alma (Suma Teológica, I, q. 75.). E nessa relação Tomás categoriza algumas formas de como a alma influencia e anima o corpo e a cada uma dessas categorias chama de potência da alma. Dentre as principais potências da alma ele nos apresenta a potência vegetativa que é a dimensão que controla as funções do corpo, sem que haja uma deliberação. Por exemplo, essa seria a dimensão que controla a circulação do sangue e o indivíduo não pode conscientemente controlar o fluxo sanguíneo ou mesmo alterar a direção desse fluxo. Outra é a potência motriz, que coloca o corpo em movimento. A potência apreensiva, que compreende os cinco sentidos, a saber: tato, vista, paladar, olfato e audição. A potência intelectiva, que é exclusiva aos seres humanos, compreende o uso da razão e a capacidade de conhecer. Por fim, a potência sensitiva, que diz respeito às paixões ou emoções, que é o nosso objeto de interesse (Suma Teológica, I, q. 78, art. 1.).
A maioria das potências são compartilhadas com todo o reino animal, porque estão diretamente relacionadas ao corpo e suas capacidades. Essas capacidades são, em grande parte, regidas pelo apetite sensitivo, isto é, a potência da sensualidade; capacidade de sentir, perceber. O apetite sensitivo é a capacidade de o organismo sentir-se atraído por alguma coisa (Suma Teológica, I-II, q. 22, art. 2.).
Nesse sentido, considera-se que se algo é atrativo é porque possui algum bem em si mesmo, ao passo que se algo é repelido, é porque possui algum mal em si. Logo, podemos definir que o apetite sensível tem por objeto o bem ou o mal (Suma Teológica, I-II, q. 22, art. 3.). Tomás de Aquino ainda faz uma divisão entre os bens: os bens que são de fácil acesso são percebidos através da concupiscência, que significa simplesmente desejo; já os bens de difícil acesso, que exigem esforço, são percebidos por meio da ira, a potência irascível. Vamos nos ater ao primeiro.
A concupiscência, ou simplesmente desejo, se dirige aos bens imediatos de fácil acesso (Suma Teológica, I-II, q. 23, art. 1.). Por exemplo, o desejo sexual diante de outra pessoa ou o desejo diante de uma comida apetitosa se manifestam em nós através da concupiscência. Um cachorro quando tem fome e come a sua ração sacia seu desejo, a sua concupiscência. Logo após comer ele sente alegria, pois alcançou o bem que desejava. Se por acaso vem outro cão mais forte e come sua comida, ele sente ira ou tristeza por ter seu bem roubado. Ou ainda, quando um ente querido falece a pessoa se entristece, porque o bem que aquele sujeito representava foi-lhe tirado. A privação do bem lhe causa tristeza.
Assim, chegamos ao conceito de paixão. O cão sentiu tristeza por se ver privado do objeto de seu desejo. A paixão, em latim “passio”, significa sofrer, padecer e está ligado estritamente à noção de passividade. A tristeza tomou o cão de assalto, sem que houvesse uma ação deliberada dele. Do mesmo modo, o rapaz se viu excitado quando estava com sua pessoa amada; ele apenas sentiu o desejo pelo prazer sexual. A esses movimentos que atingem e impulsionam cada pessoa a agir, a buscar o bem ou a afastar do mal, chamam-se paixões (Suma Teológica, I-II, q. 22, art. 1.). A tristeza, a alegria, o amor, o ódio são exemplos de paixões, sentimentos que aparecem sem o consentimento do indivíduo e o coloca na posição de decidir buscar a realização dessas paixões no que é bom ou fugir daquilo que possa provocar uma paixão considerada ruim.
Acerca da visão tradicional, em seu estudo sobre as paixões em Tomás de Aquino,
Santin (2012) afirma que:
As Questões sobre as paixões estão inseridas na parte da Suma Teológica que trata dos atos humanos. Com efeito, o teólogo filósofo afirma que o fim último da ação do homem é a bem-aventurança. Para alcançá-la, não basta desejar chegar até ela, nós precisamos agir. Existem, de acordo com o autor, duas espécies de atos, uma genuinamente humana e outra que é comum a homens e animais. As paixões fazem parte dessa segunda classe de ações. Porém, enfatizamos nesse artigo as paixões na natureza do homem, escolha que tem algumas implicações, principalmente porque no homem as paixões da alma situam-se no âmbito das ações voluntárias, isto é, circunscritas pela noção de vontade, do agir consciente.
De fato, a antropologia tomasiana se funda na máxima de que o fim último do homem é a beatitude, é a felicidade. Sobretudo na Prima Secundae (primeira seção da segunda parte) da Suma Teológica, que compreende os Tratados sobre a Bem-Aventurança, os Atos Humanos, as Paixões da Alma, das Virtudes, Vícios, etc, das Questões 1 a 114, estão presentes claramente a sistematização das estruturas psíquicas e “espirituais” pelo qual o homem opera buscando o bem e evitando o mal. Por isso, essa Segunda Parte é chamada por alguns, como Oliveira (2017), de Summa Moralis, a Suma Moral, pois trata da própria relação consciente do ser humano consigo mesmo e com o mundo que o cerca, de modo a conduzir a própria existência em direção à felicidade suprema.
No que diz respeito às paixões é importante ressaltar que, exatamente por serem paixões, o indivíduo não tem controle se elas surgem ou não. Apenas depois que o indivíduo está sendo afligido por elas é que ele decide conscientemente o que fazer diante dessa realidade: comer ou não comer, brigar ou calar-se, ter relações sexuais ou conter-se, etc. Portanto, em si mesmas as paixões não têm valor moral, não são boas nem ruins, já que não passam pelo crivo da vontade do indivíduo (Suma Teológica, I-II, q. 25, art. 1.). Só passa a ter valor as ações decorrentes da decisão da pessoa diante das paixões. Como as paixões provocam as decisões, que são competências da vontade e da inteligência, no homem, e estas são potências da alma, diz-se que as paixões afetam a alma ou simplesmente “paixões da alma”.
Tendo em vista o que é a paixão em Tomás de Aquino, podemos compreender mais facilmente o que é a tristeza. Como dito, a tristeza está ligada ao bem: a privação do bem produz o entristecimento. Porém, há a tristeza que é considerada boa, por exemplo quando alguém comete um erro de forma impulsiva e depois se entristece. Tomás de Aquino considera essa tristeza boa porque ela provoca uma correção de conduta (Suma Teológica,I-II, q. 25, art. 4.). Contudo, a tristeza má é aquela em que o sujeito tem um juízo equivocado acerca do bem. Quando ele vê no bem uma maldade. Isso acontece quando a pessoa olha para sua existência, para sua vida e só enxerga aspectos negativos ou quando se compara com outras pessoas que considera mais afortunadas, felizes, bem-sucedidas e se entristece porque considera que sua vida não é tão significante. Portanto, uma visão “maldosa”, pessimista ou equivocada acerca do bem, além daquelas situações próprias de sofrimento como a morte de alguém querido, a perda do emprego ou a doença, compõem a tristeza profunda que limita o indivíduo e que pode trazer em si semelhanças com o que se chamava antigamente de melancolia (Grandesso, 2000) e que tornou-se hoje a Depressão.
1.1 Tratamento por Tomás de Aquino
Após tratar das paixões enquanto tal, Tomás de Aquino aborda especificamente algumas paixões para evidenciar a sua desordem e enumera remédios bastante “humanos”. Apesar de ser uma obra de alta teologia e espiritualidade, Tomás de Aquino não se limita a dar sugestões espirituais e religiosas para esses problemas humanos, mas recorre a meios aparentemente simples que, porém, em algum grau ajudam a mitigar e dissipar a tristeza. Para a tristeza passional, o primeiro remédio que Santo Tomás apresenta é o prazer. Diz ele que, “como qualquer repouso do corpo traz remédio a qualquer fadiga, provinda de qualquer causa não natural, assim também todo prazer é remédio que alivia qualquer tristeza, seja qual for sua origem” (Suma Teológica, I-II, q. 38, art. 1.). Dessa forma, assim como o descanso aplaca ou suaviza a fadiga, fazer atividades e passatempos que sejam prazerosos para o sujeito podem amenizar a tristeza.
A segunda recomendação do Santo é chorar:
Todo mal reprimido aflige mais por aumentar a contenção da alma. Mas quando ele se expande para o exterior, essa contenção como que se esvai e então diminui a dor interna. E por isso, quando, tomados da tristeza, a manifestamos exteriormente pelo pranto ou gemido, ou ainda, pela palavra, nós a mitigamos. (Suma Teológica, I-II, q.38, art. 2.).
Isso significa que é uma forma de liberar momentaneamente a emoção que aflige o sujeito de modo a ter algum alívio temporário. Isto se compara em alguma medida com o conceito psicanalítico de catarse emocional, onde há a liberação de uma tensão psíquica através das emoções, provocando um alívio.
O terceiro remédio consiste na amizade. “A amizade quer ser paga com amizade, como diz Agostinho. Ora, o amigo compadecido condói-se com a dor do amigo” (Suma Teológica, I-II, q. 38, art. 3.). Tomás de Aquino compara a tristeza com um peso material que se torna mais leve quando outra pessoa ajuda a carregar. Assim, ao se ver um amigo tentando carregar esse peso emocional, o sujeito percebe-se acudido em suas dores e o sofrimento pode diminuir. Da mesma maneira, sente-se também amado apesar de seu sofrimento e isso lhe causa deleite; ademais, o deleite suaviza o sofrimento.
Em quarto lugar, o remédio da contemplação da verdade. Tomás de Aquino diz que:
É na contemplação da verdade que sobretudo consiste o prazer. Ora, todo prazer mitiga a dor, como também já demonstramos. Logo, a contemplação da verdade mitiga a tristeza ou dor, e tanto mais perfeitamente quanto mais perfeitamente formos amantes da sabedoria. E por isso os homens, na tribulação, alegram-se com a contemplação das coisas divinas e da felicidade futura (…)” (Suma Teológica, I-II, q.38, art. 4.).
O autor trata a contemplação da verdade como de suma importância para entender a cura da tristeza doentia. Quanto mais se estuda as verdades da fé, quanto mais se reza e “quanto mais perfeitamente se ama a sabedoria” (Suma Teológica, I-II, q. 38, art. 4.) mais “se exorcizam” as tristezas de nossas almas. É que toda tristeza – esteja ela nos sentimentos ou na vontade – consiste em fechar-se em um mundo distante da realidade. Portanto, esse remédio consiste em tirar as amarras dos olhos que impedem de contemplar a verdade e o bem.
Por fim, o último remédio se dá pelo sono e pelo banho. “Toda boa disposição do corpo redunda de certo modo no coração, princípio e fim dos movimentos corpóreos, como diz Aristóteles” (Suma Teológica, I-II, q. 38, art. 5.). Tomás de Aquino considera que os corpos têm um movimento vital, uma energia vital e que a tristeza diminui essa energia e faz com que se perca alguns cuidados. Cuidar do corpo, tomar um banho, ter um boa noite de sono seria capaz, então, de colocar a pessoa de volta em movimento e recuperar a sua energia vital, suavizando a tristeza.
2. Tristeza enquanto psicopatologia
Seguindo o curso da história, chegamos à ciência psicológica que estuda os comportamentos humanos, o que permite a possibilidade de fazer um diagnóstico apurado e o desenvolvimento de técnicas que possam dar suporte para um adequado tratamento das doenças psicológicas. Dentro desse espectro, “o diagnóstico de depressão e/ou ansiedade está sendo atribuído a um número cada vez maior de pessoas em nossa sociedade” (Joyce & Sills, 2014).
Dados apresentados pela Organização Mundial da Saúde (World Health Organization [WHO], 2015) indicam que cerca de 350 milhões de pessoas no mundo são acometidas pela depressão. No que diz respeito à realidade brasileira esses números são igualmente expressivos: segundo a ABRATA – Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos, conta-se cerca de 15% de prevalência da depressão no que se refere a população geral (ABRATA, 2016). Para compreender melhor o enfrentamento da depressão vamos partir de uma visão fenomenológica.
Dentro das diversas vertentes da Psicologia surge a abordagem fenomenológica, que é tanto uma atitude quanto uma técnica, que significa buscar estar o mais perto possível da vivência da pessoa que procura a terapia. Significa permanecer no momento aqui e agora em vez de interpretar e catalogar o comportamento do cliente, ajudando-o a explorar e ficar consciente de como ele faz sentido do mundo; isto é, a abordagem fenomenológica é orientada para o Insight, objetiva a tomada de consciência (Yano, 2015). Para tanto, a prática do método fenomenológico se pauta na curiosidade genuína, sem pré-julgamentos, onde o que importa é apenas a experiência pessoal vivenciada pelo sujeito.
Joyce & Sills (2014), ao explicarem sobre a origem da fenomenologia dizem que:
O método fenomenológico foi proposto pela primeira vez por Husserl (1931) como um método para investigar a natureza da existência. Mais tarde, foi desenvolvido por filósofos existenciais como Heidegger e Merleau-Ponty. Uma perspectiva fenomenológica essencial é que as pessoas estão sempre ativamente fazendo sentido de seu mundo e, portanto, o cliente é sempre um participante ativo naquilo que está vivenciando e como está vivenciando – inclusive a queixa que o levou a buscar terapia.
Essa forma de investigação através do método fenomenológico foi importada para o trabalho terapêutico de modo a ser, para terapeuta e cliente, uma ferramenta pela qual se aprofundem no significado subjetivo e experiência que o sujeito elabora acerca de si mesmo e do mundo. Nesse sentido, acredita-se que a depressão possa ser uma distorção dessa visão de mundo e de si mesmo que o cliente tem ou mesmo uma reação a circunstâncias da vida que pareçam incontroláveis ou devastadoras. E é dessa forma que Roubal (2007) compreende a depressão: como possuindo um sentido único para a pessoa que o vivencia, sendo alimentada por suas projeções e introjeções. A retroflexão atua tanto na produção da Depressão, uma vez que esta possui características somatogênicas (Francesetti, Gecele & Roubal, 2014), como em resposta aos estados depressivos, formando um ciclo vicioso. Dentro das perspectivas psicológicas do existencialismo-fenomenológico, se apontam as características principais do transtorno depressivo como sendo a ausência de sensações ou entorpecimento, seguido por outro sintoma muito evidente que é a tristeza persistente (Scheneider & Krug, 2010). Isso poderia explicar as autolesões e automutilações comumente praticadas por adolescentes, caracterizando-se como uma necessidade de provocar alguma sensação, ainda que seja dor física, pois isto seria melhor que o entorpecimento. Geralmente, a depressão também é acompanhada pela reação clássica de isolamento, fechamento, ao mesmo tempo que envolve crenças ou atitudes negativas e uma perda de controle. Tudo isso é acompanhado pela sensação de impotência e pelo rebaixamento da capacidade de funcionar de maneira competente e de viver uma vida satisfatória (Joyce & Sills, 2014).
Por sua vez, o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais na 5ª versão(sigla em inglês, DSM-V), diz o seguinte sobre a depressão:
A característica comum desses transtornos é a presença de humor triste, vazio ou irritável, acompanhado de alterações somáticas e cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo. O que difere entre eles são os aspectos de duração, momento ou etiologia presumida.
Esta edição atual do DSM categoriza o transtorno depressivo em seis subtipos: transtorno disruptivo de desregulação de humor, transtorno depressivo maior, o transtorno depressivo persistente (distimia), transtorno disfórico pré-menstrual e o transtorno depressivo induzido por substâncias. Especificamente sobre o transtorno depressivo maior, o DSM-V ainda propõe alguns critérios diagnósticos para a Depressão, que parte de dois marcadores principais que são a tristeza persistente e a apatia, com duração mínima de duas semanas, sendo acompanhado por outros sintomas como humor deprimido durante a maior parte do dia, diminuição acentuada do interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades durante a maior parte do dia, sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva ou inapropriada, fadiga ou perda de energia e outros (DSM-5, 2014). Portanto, a visão moderna da depressão se baseia em critérios estatísticos e diagnósticos frutos de um desenvolvimento científico que categorizou os comportamentos e as disfunções relacionadas a eles.
Ainda no que diz respeito à fenomenologia da Depressão, Yontef e Jacobs (2013) apresentam outro conceito acerca do surgimento da doença: trata-se de ajuste criativo endurecido. O ajuste criativo é a ideia de que o comportamento, assim como o corpo, sempre busca o equilíbrio entre o meio interno e o externo. Dessa forma, o ajuste criativo é a ferramenta pela qual o indivíduo busca uma relação saudável com o meio e consigo mesmo, através do equilíbrio entre suas necessidades e as possibilidades que o ambiente oferece para satisfazer essas demandas (Frazão, 1999). Isso se caracteriza, por exemplo, quando as exigências do meio externo são consideradas muito altas e a pessoa se entristece, se isola ou apresenta comportamentos ansiosos e, a partir disso, obtém atenção e simpatia ou mesmo uma folga do trabalho. Portanto, há sempre um ganho secundário para esse ajuste. Contudo, se as suas necessidades não são satisfeitas, esse ajuste criativo em que a pessoa apresenta comportamentos depressivos, o chamado ajustamento depressivo, pode se enrijecer e permanecer por grandes períodos, sendo considerado um adoecimento ou desequilíbrio do ajuste criativo, fixação do ajuste depressivo ou Gestalt fixa.
2.1 Tratamento pela Fenomenologia
“O gestaltista é um artista que lida com o Aqui e Agora de forma poética. O contato terapêutico deve ser sentido, vivido. É uma poesia! O que é escrito abarca, insuficientemente, partes de um todo, que na prática, é sentido” (Yano, 2015). Yano compreende a terapia fenomenológica como um processo que se realiza na relação entre terapeuta e cliente; possui uma dinâmica relacional.
Por dar ênfase no EU-TU, a terapia fenomenológica exige que seja dialógica, criativa, onde destacam-se a importância das relações interpessoais para o desenvolvimento do senso de Self; a importância da validação do outro como forma de bem-estar, por meio da criação mútua do sentido; da plasticidade do cérebro, que se relaciona ao potencial humano; do reconhecimento da importância da Awareness (que significa a consciência de si, das percepções, emoções, do corpo e do mundo a sua volta) incorporada às técnicas de Mindfulness (técnicas de se concentrar completamente no presente) em muitas abordagens contemporâneas (Yano, 2015).
Dentro da abordagem fenomenológica existem diversas possibilidades de ação para o enfrentamento da Depressão. Baseado nos trabalhos de Joyce & Sills (2014) e Roubal (2007), Yano (2015) organizou a terapia de pacientes depressivos em sete etapas que podem orientar o processo: A primeira etapa, vinculação; a segunda etapa, situações de risco e encaminhamentos; a terceira etapa, identificação do processo; a quarta etapa, interrupções de contato predominantes; a quinta etapa, desenvolvimento de autoapoios; a sexta etapa, dinâmica interpessoal e; a sétima etapa, da remissão dos sintomas à alta.
A primeira etapa, vinculação, diz respeito ao estágio inicial onde o paciente inicia sua relação com o terapeuta e este terapeuta deve começar a manifestar uma presença de qualidade, consciente do ambiente terapêutico, dos próprios sentimentos e colocar-se numa escuta autêntica e ativa. Nesse momento acontece o contrato entre terapeuta e paciente, em que o terapeuta estabelece sua forma de trabalho, sua linguagem e o paciente se demonstra disposto e comprometido com o processo (Yano, 2015).
A segunda etapa, situações de risco e encaminhamento, é caracterizada pela mensuração dos riscos que o paciente pode oferecer, a gravidade de seu estado e sintomas. Nessa etapa o terapeuta é convidado a refletir sobre suas próprias impressões e se não há projeções pessoais sobre o paciente, para que isso não influencie no direcionamento da intervenção. Diante da avaliação de cada caso é comum que se faça encaminhamentos para o psiquiatra, onde haverá também um suporte farmacológico para enfrentar a depressão (Yano, 2015).
A terceira etapa, identificação do processo, em termos gerais, é o momento em que se fará o diagnóstico das queixas trazidas pelo paciente. Verifica-se que se trata de um período de ajustamento criativo/depressivo como tratado anteriormente ou uma fixação desse ajustamento (transtorno depressivo). É também nesta etapa em que se faz a investigação fenomenológica sobre os campos da vida do paciente. Quanto ao Campo (Robine, Jacobs, citados por Joyce & Sills) são descritos três tipos de situação na prática clínica: : (1) Campo experiencial – ou fenomenológico, que refere-se ao campo pessoal da Awareness (consciência de si e do mundo que o cerca), como metáfora para a maneira como o indivíduo organiza sua experiência; (2) Campo relacional – que ocorre entre paciente e terapeuta, que mutuamente influenciam-se e tomam lugar no encontro terapêutico, que é um modelo/ensaio de como o paciente estabelece suas relações interpessoais em geral; (3) Campo maior – o contexto onde o indivíduo existe, incluindo sua influência cultural, histórica, política e espiritual.
Nesse processo de investigação fenomenológica provavelmente surgirão pensamentos e máximas que aprisionam e fazem o sujeito permanecer estagnado. Joyce e Sills (2014) sugerem uma técnica, que é questionar crenças limitadoras. Pessoas com diagnósticos de depressão comumente se identificam como fracassadas e incapazes. Os autores afirmam que essas crenças surgem de percepções realistas de ocasiões em que, de fato, houve algum tipo de fracasso. Contudo, essa percepção quando é desequilibrada generaliza para todos os âmbitos e situações da vida do paciente. Trata-se, portanto, de uma visão adoecida da realidade. Questionar essas crenças consiste em trazer o paciente de volta à realidade, para que ele enxergue a vida tal como ela é e menos de forma catastrófica.
O método fenomenológico propõe que a terapia leve essa pessoa a tomar consciência dos próprios padrões de comportamento e de pensamentos, onde se fazem perguntas sobre outros momentos da vida em que ela enfrentou dificuldades e conseguiu superar. Também se identificam crenças mais positivas sobre si mesmo e se exercita a gratidão como meio de vencer o fatalismo.
A quarta etapa, interrupções de contato predominante, é marcada pela quebra da retroflexão. Pacientes depressivos costumam reprimir sentimentos, gestos, palavras e é comum verificar por meio de respiração profunda, falas e gestos intrapunitivos. Esse movimento de bloquear o contato com os sentimentos e anseios é a retroflexão. Roubal (2007) sugere que deve-se estimular o paciente a dirigir essa energia para fora em um ambiente protegido, que é o setting terapêutico. Por conta dessa retroflexão há a necessidade de aumentar o nível de energia do indivíduo. Considera-se que a pessoa deprimida tem sua energia corporal rebaixada, retrofletida, e por isso tende a ter poucos movimentos, cuidados e conexão com o próprio corpo. Essa técnica envolve levar a pessoa a conectar-se com seu próprio corpo, perceber seus impulsos, emoções, seus sentidos e possíveis movimentos que estão sendo impedidos de acontecer. O olhar atento do terapeuta é importante para sinalizar essa energia que tenta se expressar e de repente é retrofletida e enterrada. A tomada de consciência desses movimentos é um desafio de permitir uma nova possibilidade de formas de agir que envolvem o próprio corpo e a forma como ele se relaciona consigo e com o mundo. Para isso pode-se fazer experimentos como o da Cadeira Vazia, em que tenta-se reproduzir o encontro com uma pessoa ou uma situação, de modo a entrar em contato emocional com a situação em busca de aceitá-la e dar um desfecho.
A quinta etapa, desenvolvimento de autoapoios, tem em vista combater a tendência de esquecimento de si mesmo apresentada nos quadros depressivos. O autoapoio é um elemento importante no processo de cura, uma vez que o indivíduo desenvolve recursos pessoais e busca meios autênticos e maduros para equilíbrio de sua autorregulação organísmica (Yano, 2015). Uma técnica sugerida por Joyce e Sills (2014) para essa etapa é a dos recursos “esquecidos”: essa técnica envolve levar o cliente a pensar atividades, passatempos e hobbies que eram prazerosos para ele, de modo que possa ter acesso às lembranças de quando tinha mais controle de sua vida, se divertia e então se fortaleça trazendo isso para o presente. Ao mesmo tempo se propõe algumas atividades que virão beneficiar a pessoa deprimida de modo a aumentar o autoapoio e o apoio relacional: fazer exercícios físicos, como caminhar alguns minutos por dia, dançar ou fazer algum esporte de acordo com as possibilidades e os gostos do paciente; envolver-se em algum tipo de contato social, seja dar “bom dia” aos vizinhos ou visitar e sair para conversar com amigos; realizar pequenas tarefas e levá-las até o fim, para que aumente sua sensação de controle e realização e, ainda, confiar em seus amigos e familiares para contar os seus sentimentos e o que está enfrentando.
Joyce & Sills fazem ainda outras pontuações que considerei importantes: verificar junto ao paciente a existência de hábitos disfuncionais como má alimentação, disfunções no sono ou uso de substâncias que possam agravar o quadro depressivo; checar a existência de rotina desorganizada em relação ao trabalho e a família; identificar situações abusivas como discriminação, bulllying ou violência; e o desenvolvimento de autoapoios não funcionais, tais como, trabalhar excessivamente para manter-se distraído do aqui e agora (Sheldon, 2012), a dessensibilização e a deflexão. Ajudar o paciente a rever estas situações da sua vida e dar soluções a essas disfunções será um ganho enorme para o processo terapêutico e mais um passo em direção à cura.
A sexta etapa, dinâmica interpessoal, visa o estabelecimento e fortalecimento das relações interpessoais. Pessoas com quadro depressivo, por conta da retroflexão, da apatia, isolamento e outros fatores, frequentemente apresentam dificuldades interpessoais e assumem posturas passivas em suas relações, recaindo sobre si o peso de todos os problemas. Outra atitude igualmente disfuncional é reagir não com passividade, mas com extrema agressividade. Ambos os comportamentos geram dificuldades grandes de relacionamento.
Nessa etapa o foco se dá no trabalho criativo de comunicação e mecanismos de contato interpessoal. Para isso, sugere-se como base para esses exercícios dois princípios: Direitos Humanos Básicos (Caballo, 1999, p. 189) que fala sobre relação dialógica, o encontro autêntico e genuíno; e a Teoria das Habilidades Sociais (Comportamental) que trata da assertividade e comunicação assertiva. Esses recursos são propostos para que o sujeito comece aos poucos a trazer dinamismo para a própria vida, para que vá aumentando sua autoconfiança de que é capaz de realizar-se. Passo a passo a pessoa pode ir cumprimentando o vizinho, ligando para um amigo, partilhando com um familiar ou saindo para confraternizar. Essas pequenas atitudes criam e fortalecem vínculos humanos necessários para qualquer pessoa e, sobretudo, para aquela que padece de depressão. Dessa forma, forma-se uma rede de apoio que fornecerá suporte ao sujeito ao mesmo tempo que ajuda a mitigar o sentimento de que se está sozinho e que é incompreendido.
Por fim, a sétima etapa, da remissão dos sintomas à alta, se trata da discussão acerca do desfecho da terapia com o paciente. Não se trata, contudo, apenas de uma alta das queixas depressivas, mas que pode abarcar outros aspectos que tenham aparecido durante o processo. É importante lembrar que para um paciente depressivo o encerramento da terapia pode ser difícil, por isso, se por acaso o paciente também estiver fazendo tratamento medicamentoso, sugere-se que a alta possa ser seja feita juntamente com a alta médica, quando o paciente encerra a utilização de psicofármacos, evidenciando um marcador de melhora.
3. Discussão: as pontes entre a visão fenomenológica e a tomasiana
A proposta deste trabalho não se destina a fazer uma leitura equivocada misturando conceitos teológicos e psicológicos, mas trata-se de compreender que a religião e a espiritualidade não dizem respeito exclusivamente à divindade. A própria etimologia da palavra religião, em latim “religare”, quer dizer “religar”. Isto quer dizer que religião é para religar o homem com Deus e, portanto, significa uma relação em que o homem também ocupa lugar de destaque. A religião Católica, aqui representada por Tomás de Aquino, tem por volta de dois mil anos de existência onde se desenvolve tanto o estudo da divindade quanto da humanidade, estudo esse que precede a psicologia enquanto ciência formal.
Desse modo, considera-se que a história da Psicologia não se inicia no século XIX com Wundt. Anteriormente já existia uma psicologia epistemológica ou metafísica que fica aqui evidenciada no pensamento católico do século XIII. Com Wundt surge a Psicologia enquanto projeto científico e que se ramifica em diversas áreas, tornando-se as ciências psicológicas, no plural (Abib, 2009). Com o surgimento das ciências, tentou-se ignorar conhecimentos religiosos, mas é importante ressaltar a relevância de cada uma: Tomás de Aquino representa a metafísica, Wundt e outras escolas representam o positivismo experimental e a fenomenologia surge como uma terceira via, diferente de ambas, que propõe um método empírico e rigoroso. Mas apesar de suas diferenças metodológicas, todas são formas de conhecimento válido.
A primeira relação entre o pensamento do sistema religioso medieval e a fenomenologia moderna a ser considerada é que ambos sugerem que a depressão surge a partir de uma busca pelo “bem”. Tomás de Aquino propõe que toda paixão se direciona a um bem, resultando em alegria quando o alcança e em tristeza quando não obtém sucesso.
Também considera que as pessoas podem ver, de forma equivocada, um mal como sendo bem. Esses conceitos se relacionam com a fenomenologia quando se fala sobre o bem secundário e o ajustamento criativo. A pessoa inicialmente se entristeceria como uma forma de ajuste criativo/depressivo, onde ela obtém um bem, por exemplo atenção e simpatia das pessoas; isto seria um mal com aparência de bem, um mal que tem como objetivo alcançar um bem e o adoecimento seria a fixação nessa forma de busca; gestalt fixa.
De igual modo, ambas as vertentes consideram o ser humano mais do que a simples consequência do meio em que vivem. Tomás de Aquino enxerga o homem com um fim bem definido, que é a felicidade. Isto significa que o ser humano tem um sentido de vida, há uma razão de existência que supera a própria natureza e realiza-se na forma de conduzir a vida. Para a fenomenologia o ser humano também é um ser livre, capaz de dar sentido à própria vida e transcender sua natureza, sendo capaz de realizar-se enquanto tal. Segundo Angerami-Camon (2007), a felicidade é entendida como uma possibilidade que se contrapõe ao “vir-a-ser”, condição inerente à existência humana. O homem, na medida em que é um contínuo “vir a ser”, um sempre “poder ser” e com a possibilidade de um “ainda-não”, tem na felicidade um de seus anseios idealizados. Apesar que o primeiro vê a felicidade como um conceito muito bem definido e eterno e, o segundo, como a felicidade relativa a cada indivíduo na sua vida, ambos se direcionam a essa realização do homem: a felicidade (equilíbrio, bem-estar, autorregulação).
Em sequência, outro ponto de convergência é o primeiro remédio tomista e a técnica fenomenológica onde se propõe que se façam atividades consideradas prazerosas pelo indivíduo e que, eventualmente, possa ter sido deixada de lado. Ambas propostas partem do mesmo princípio de que o prazer diminui o sofrimento e que é uma forma da pessoa mitigar a tristeza e se reconectar com um período anterior onde se sentia mais feliz, fortalecendo a ideia de que essa felicidade não deve ser apenas uma lembrança, mas uma realidade atual.
Em seguida, o remédio da amizade tem extrema semelhança com o princípio fenomenológico de aumentar o apoio relacional. As duas vertentes apresentam a necessidade de estar com outras pessoas onde o indivíduo se sinta acolhido, amado, compreendido. A partilha e a vivência com esses parentes e amigos ajudam a diminuir o sofrimento e a sensação de estar sozinho no mundo. A própria terapia fenomenológica é permeada pelo vínculo criado entre paciente e terapeuta desde o primeiro contato. Vínculo este que emerge da preocupação real, autêntica do terapêutica e da consciência e presença de qualidade naquele momento e naquele espaço. Essa mesma criação de vínculos genuínos é incentivada para fora do consultório, para que se firme na vida do paciente.
Outro remédio sugerido por Tomás de Aquino é o de chorar, falar sobre as dores. Esse remédio se relaciona com a quarta etapa organizada por Yano (2015), das interrupções de contato predominantes. As duas vertentes de pensamento consideram que existem energias sendo retrofletidas, enterradas e que externalizar essa energia pode ser um alívio para o sofrimento. Tomás fala de forma mais geral sobre chorar e falar sobre a dor e a fenomenologia oferece um ambiente seguro e técnicas, como da Cadeira Vazia, para que essa energia seja direcionada para fora numa espécie de catarse.
Ainda, outro remédio apresentado por Tomás de Aquino é de especial importância porque fala sobre a contemplação da verdade. Por ser religioso e teólogo naturalmente o autor, ao tratar deste tema, também se refere às realidades espirituais e a Deus mesmo. Contudo, este trabalho visa investigar os sentidos e a lógica por trás dos conceitos e não os aborda de forma literal. Por isso, compreende-se que a contemplação da verdade significa também ver o mundo tal como ele é. Nesse sentido, um estudo de caso de uma cura da depressão (Moraes, 2008) a partir da leitura da fenomenologia nos ajuda a compreender, psicologicamente, o sentido desse remédio:
Ele não ouviu vozes nem teve visões sobrenaturais – ele viveu o processo que descrevemos (Moraes, 2002) como “a percepção e absorção pela consciência de conteúdos internos ou externos a ela, no qual é envolvida a totalidade do indivíduo – corpo, emoção, razão e espírito, provocando como conseqüência a reconfiguração da própria consciência e a transformação positiva da existência como um todo” – a ampliação de consciência.
Desse modo, podemos compreender a ideia tomista de contemplação da verdade como um conceito análogo à ideia de ampliação da consciência, a awareness ou tomada de consciência da fenomenologia moderna, de tentar corrigir a visão distorcida que a depressão proporciona, para que haja uma concepção de mundo mais real, ampla e positiva e não trágica, reduzida e desregulada. Para tanto, o recurso de questionar as crenças limitadoras serve muito bem ao propósito, pois busca evitar os erros de juízos e contemplar a realidade tal como ela é, também com seus aspectos positivos.
Por fim, o último remédio apresentado por Tomás de Aquino, banho e sono, podem ser considerados semelhantes à ideia de necessidade de aumentar o nível de energia, da fenomenologia. É interessante notar que tanto Tomás quanto a Joyce e Sills (2014) utilizam o termo “energia” ao tratarem das atitudes do sujeito em relação ao próprio corpo. A fenomenologia parte da consciência do próprio corpo, das sensações, dos impulsos e dos movimentos que estão sendo retidos. Isso está inteiramente ligado à noção de estimular-se e conectar-se com o corpo, enquanto que o banho e o sono são formas de cuidar, estimular e dar atenção ao próprio corpo. Mesmo partindo de pontos diferentes, eles convergem na conexão e atenção ao próprio corpo e que isso devolveria a energia e o dinamismo aos poucos. De modo geral, estão falando sobre o autocuidado e autoapoio necessário para os pacientes depressivos que comumente negligenciam a si mesmos.
Embora seja notório essa similaridade conceitual entre tomismo e fenomenologia, a grande diferença entre eles é a metodologia. Tomás de Aquino é versado na filosofia e teologia, que são consideradas ciências dedutivas, isto é, utilizam como método o raciocínio dedutivo para se chegar a conclusões. É através do raciocínio dedutivo e dialógico que Tomás chega às máximas trazidas na Suma Teológica e, por isso, é um conhecimento que flutua no campo teórico, embora seja de grande assertividade. Por sua vez, a Psicologia e suas vertentes, incluindo a fenomenologia, é uma ciência que utiliza do método indutivo, isto é, é uma forma de raciocínio que parte da observação e da experimentação para se chegar a conclusões. Portanto, por mais que o raciocínio parta de pontos distintos, ambos chegaram a conclusões muito próximas.
Ainda com essa limitação de investigação, Tomás chega a conclusões muito assertivas e tudo isso ainda no século XIII, anterior ao estabelecimento do método científico tal qual o conhecemos, e isto torna o trabalho de Tomás de Aquino ainda mais louvável e credível. Sua forma de ação, de combate à desordem das paixões e aos vícios é o exercício das virtudes tal qual os antigos filósofos gregos propunham; é a técnica do dia a dia, do bem viver. A ciência Psicológica vem, então, para aprofundar esses conceitos, apresentar novas teorias e fundamentar técnicas válidas, sistematizadas e eficientes para o enfrentamento do sofrimento psíquico, tornando-se um conhecimento prático e verificável.
4. Considerações finais
Dito isto, fica claro que no pensamento religioso medieval já existia um conjunto de conhecimentos que transitam entre teologia, antropologia e filosofia, mas que mesmo após séculos de existência ainda são considerados válidos, provavelmente por não se tratar de recomendações vagas para se fazer oração, mas que tem seu lastro na experiência de assistência a pessoas reais em seus desafios mais humanos. A teologia de Tomás de Aquino ainda é a maior referência para a Igreja Católica influenciando o pensamento e a fé de pessoas pelo mundo inteiro. Sendo esse sistema de pensamento tão estruturado e influente, certamente atinge o consultório em alguma medida.
Portanto, o presente estudo pode ser considerado como fornecedor de elementos em comum, pontos de convergências, entre a visão religiosa de Tomás de Aquino e a Fenomenologia moderna no manejo da depressão. Verificou-se, pois, que estudos sobre depressão já existiam antes do surgimento da Psicologia experimental e que não ficam restritos à idade média, mas são concepções que influenciam todo o universo católico até os dias atuais. Isto pode influenciar a compreensão da depressão e seu tratamento na medida em que essas duas áreas se chocam ou se aproximam na relação paciente-terapeuta. Contudo, este não foi o objetivo principal desse estudo, porém, pode servir de inspiração para a investigação futura da terapia de pacientes católicos, padres católicos e/ou religiosos em geral.
Por fim, constatamos divergências sobretudo na metodologia para se conceber as duas áreas, Tomás de Aquino pelo método dedutivo e a fenomenologia pelo método indutivo. A primeira se funda no crescimento das virtudes para se aproximar dos bens eternos e, consequentemente, a felicidade; o segundo, parte da tomada de consciência do aqui e agora para se reconectar com o próprio “eu” e desenvolver-se como pessoa. Nisto a fenomenologia pode aprender com Tomás de Aquino, apesar da similaridade de “técnicas”: olhar para o “aqui e agora”, mas com a consciência da permanência do Ser que vai além do momento presente, se estendendo no tempo, no espaço, na cultura, na sociedade, na política e, quem sabe, no pós-vida.
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