REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202502261131
Camy Vieira de Alcantara Pereira Ferreira1
RESUMO
O presente artigo aborda a influência da psicanálise no trabalho desenvolvido por Nise da Silveira na psiquiatria brasileira. Para tanto, parte-se da análise do contexto histórico da psicanálise e sua introdução no Brasil, bem como da trajetória de Nise da Silveira e sua abordagem diferenciada no tratamento de transtornos mentais. A pesquisa busca compreender de que maneira os conceitos psicanalíticos contribuíram para sua prática clínica e teórica, especialmente no uso da arte como expressão do inconsciente e na humanização do tratamento psiquiátrico. O estudo é baseado em uma revisão de literatura, abrangendo publicações entre os anos de 1980 e 2024, com fontes extraídas da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e da SciELO. Observou-se que, embora Nise da Silveira tenha se distanciado de alguns princípios clássicos da psicanálise, sua abordagem foi amplamente influenciada pela concepção do inconsciente e pelo reconhecimento das expressões simbólicas como fundamentais na compreensão da subjetividade dos pacientes. Conclui-se que a psicanálise teve um papel essencial na construção de uma nova perspectiva dentro da psiquiatria brasileira, possibilitando práticas mais humanizadas e inovadoras. Assim, o estudo evidencia a relevância da psicanálise no desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas e reforça a necessidade de pesquisas contínuas sobre a interface entre psicanálise e psiquiatria no Brasil.
Palavras-chave: Psicanálise; Sigmund Freud; Nise da Silveira; Psiquiatria; Arte e Terapia.
ABSTRACT
This article addresses the influence of psychoanalysis on Nise da Silveira’s work in Brazilian psychiatry. To this end, it begins with an analysis of the historical context of psychoanalysis and its introduction in Brazil, as well as the trajectory of Nise da Silveira and her differentiated approach to the treatment of mental disorders. The research seeks to understand how psychoanalytic concepts contributed to her clinical and theoretical practice, especially in the use of art as an expression of the unconscious and in the humanization of psychiatric treatment. The study is based on a literature review covering publications from 1980 to 2024, with sources obtained from the Virtual Health Library (BVS) and SciELO. It was observed that, although Nise da Silveira distanced herself from some classical principles of psychoanalysis, her approach was largely influenced by the concept of the unconscious and the recognition of symbolic expressions as fundamental to understanding patients’ subjectivity. It is concluded that psychoanalysis played an essential role in constructing a new perspective within Brazilian psychiatry, enabling more humanized and innovative practices. Thus, the study highlights the relevance of psychoanalysis in developing new therapeutic approaches and reinforces the need for ongoing research on the interface between psychoanalysis and psychiatry in Brazil.
Keywords: Psychoanalysis; Nise da Silveira; Psychiatry; Art and Therapy; Unconscious.
INTRODUÇÃO
A psicanálise, desenvolvida por Sigmund Freud no final do século XIX, transformou profundamente a compreensão da mente humana ao introduzir o conceito de inconsciente como um elemento determinante na constituição psíquica e no comportamento dos indivíduos. Suas contribuições influenciaram diversas áreas do conhecimento, especialmente a psiquiatria, ao propor novas formas de compreensão e tratamento dos transtornos mentais. No Brasil, a interseção entre psicanálise e psiquiatria ganhou destaque com o trabalho de Nise da Silveira, que rompeu com os métodos tradicionais e violentos de tratamento psiquiátrico, substituindo-os por uma abordagem mais humanizada, baseada na expressão simbólica e na arte como forma de acesso ao inconsciente.
Diante desse contexto, o problema que guia esta pesquisa é: de que maneira as teorias psicanalíticas influenciaram o trabalho de Nise da Silveira no campo da psiquiatria? O objetivo geral do estudo é investigar a influência dos conceitos psicanalíticos na abordagem terapêutica desenvolvida por Nise da Silveira. Para tanto, os objetivos específicos incluem: (1) analisar os principais conceitos da psicanálise freudiana presentes na obra e na prática de Nise da Silveira; (2) compreender como sua prática clínica dialoga com os princípios psicanalíticos; e (3) avaliar a relevância de sua contribuição para o desenvolvimento de novas práticas psiquiátricas no Brasil.
A metodologia adotada consiste em uma revisão de literatura, abrangendo publicações entre os anos de 1980 e 2024. As fontes utilizadas incluem bases de dados científicas como a Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e a SciELO, nas quais foram empregados descritores como “Psicanálise e Psiquiatria”, “Nise da Silveira e Freud” e “Arte e Terapia”. Os critérios de inclusão consideraram estudos que abordassem a interface entre psicanálise e psiquiatria, enquanto os critérios de exclusão eliminaram pesquisas sem metodologia clara ou sem embasamento teórico relevante. Além disso, os estudos foram analisados quanto às principais ideias dos autores pesquisados, confrontando e confirmando os achados de forma crítica.
O desenvolvimento deste trabalho está estruturado em três seções principais. Primeiramente, será apresentado um panorama da psicanálise freudiana, destacando seus conceitos fundamentais e sua inserção na psiquiatria. Em seguida, será explorada a trajetória de Nise da Silveira, enfatizando sua formação, influências teóricas e contribuições clínicas. Por fim, será discutida a interseção entre psicanálise e psiquiatria em sua prática, evidenciando sua influência para a construção de um modelo terapêutico inovador e humanizado.
A relevância desta pesquisa reside na necessidade de aprofundar o entendimento sobre o impacto da psicanálise na evolução da psiquiatria brasileira e no reconhecimento do legado de Nise da Silveira para o tratamento humanizado dos transtornos mentais. Ao destacar essa interseção teórica e prática, o estudo visa contribuir para o debate sobre as possibilidades terapêuticas no campo da saúde mental, reforçando a importância da arte e da subjetividade no cuidado psiquiátrico. Assim, espera-se que os achados desta pesquisa incentivem novas investigações sobre a interface entre psicanálise e psiquiatria no Brasil, promovendo uma visão mais ampla e integrativa do tratamento dos transtornos mentais.
DESENVOLVIMENTO
A psicanálise, desenvolvida por Sigmund Freud no final do século XIX, é uma teoria e prática clínica que busca compreender a psique humana por meio da investigação do inconsciente. Seu método é fundamentado na escuta e interpretação das manifestações psíquicas, como sonhos, atos falhos e sintomas neuróticos, permitindo a emergência de conteúdos reprimidos e a elaboração de conflitos psíquicos. Freud concebeu a psicanálise como uma ferramenta não só para o tratamento de distúrbios psíquicos, mas também para o entendimento das profundezas do comportamento humano, especialmente daquelas dimensões que escapam à consciência do indivíduo.
O conceito central da psicanálise é o do inconsciente, uma dimensão da mente que contém desejos, memórias e conteúdos reprimidos que influenciam o comportamento humano sem que o sujeito tenha plena consciência desses processos. Freud, em suas obras mais significativas, como A Interpretação dos Sonhos (1900), expôs a ideia de que o inconsciente é fundamental para a formação da personalidade e para o comportamento humano. Ele define o inconsciente como o reservatório de pensamentos, memórias e desejos que, por serem incompatíveis com a consciência, são reprimidos ou negados pela psique, mas continuam a agir sobre a vida mental do indivíduo, muitas vezes de forma disfarçada ou indireta.
Dentro dessa concepção, Freud propôs sua teoria estrutural da mente, que organiza o aparelho psíquico em três instâncias: o Id, o Ego e o Superego. O Id, a instância mais primitiva e impulsiva, opera segundo o princípio do prazer, buscando satisfação imediata dos impulsos, sem consideração pelas exigências da realidade ou pelos valores sociais. O Ego, por sua vez, é a instância mediadora que opera sob o princípio da realidade, procurando satisfazer os desejos do Id de uma maneira socialmente aceitável. Finalmente, o Superego é a instância moral, internalizada durante a infância a partir das figuras parentais e sociais, funcionando como um juiz interno que avalia os pensamentos e ações do sujeito de acordo com normas morais e éticas.
A dinâmica entre essas três instâncias é crucial para entender os conflitos psíquicos que se originam na psique humana. A repressão, um dos mecanismos de defesa descritos por Freud, desempenha um papel central nesse processo. Ela impede que pensamentos ou desejos inaceitáveis ou perturbadores alcancem a consciência, mantendo-os no inconsciente. Essa defesa, embora vital para o funcionamento psíquico, pode resultar em distúrbios e sintomas neuróticos quando é usada excessivamente ou de maneira inadequada. Freud identificou outros mecanismos de defesa, como a projeção, o deslocamento e a negação, que ajudam a preservar o equilíbrio psíquico, mas que, quando não bem ajustados, podem se manifestar em distúrbios emocionais e comportamentais.
Outro aspecto fundamental da psicanálise freudiana é sua teoria do desenvolvimento psicossexual, que descreve a formação da subjetividade humana ao longo de estágios distintos, nos quais diferentes zonas erógenas predominam e geram desafios específicos. Os estágios orais, anais, fálicos, de latência e genitais influenciam a constituição da personalidade, sendo que conflitos não resolvidos em qualquer uma dessas fases podem resultar em fixações e dificuldades na vida adulta. A sexualidade, então, não é vista apenas como uma função biológica, mas como um fator constitutivo e determinante na formação do sujeito.
Além de Freud, teóricos como Melanie Klein, Jacques Lacan e Donald Winnicott expandiram e reformularam a psicanálise, contribuindo com novos entendimentos sobre a constituição do sujeito, a dinâmica do desejo e a importância das relações objetais. Klein, por exemplo, introduziu a teoria das relações objetais, enfatizando como as primeiras experiências com os cuidadores influenciam a formação das representações internas do sujeito e suas relações interpessoais ao longo da vida. Lacan, por sua vez, propôs uma nova leitura do inconsciente, afirmando que ele está estruturado como uma linguagem e que o sujeito se constitui a partir de sua relação com o outro, seja no campo da linguagem ou da cultura.
Jacques Lacan, em sua obra Escritos (1966), reformulou diversos conceitos freudianos, ampliando-os e reinterpretando-os à luz de novas perspectivas teóricas, como a linguística e a filosofia estruturalista. A ideia de Lacan de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” acrescentou uma nova camada de compreensão sobre como os processos psíquicos se organizam e se expressam. Lacan também trouxe à tona o conceito de “estádio do espelho”, referindo-se ao momento em que a criança se reconhece pela primeira vez em um espelho, um marco que simboliza o início da constituição do ego e a entrada no campo simbólico.
Na clínica psicanalítica contemporânea, as contribuições de Melanie Klein e Donald Winnicott também são amplamente reconhecidas. Winnicott, por exemplo, trouxe à tona a importância da “mãe suficientemente boa”, que é capaz de proporcionar um ambiente seguro e acolhedor para o desenvolvimento do ego da criança, o que influencia diretamente sua capacidade de lidar com o mundo externo e com os outros. A teoria do “objeto transicional” de Winnicott, que descreve o uso de objetos como símbolos de conforto, tem implicações diretas no entendimento das defesas psíquicas e das relações afetivas.
Atualmente, a psicanálise continua sendo um campo relevante para a compreensão da subjetividade e do sofrimento psíquico. Ela não se limita ao setting clínico tradicional, mas suas aplicações se estendem à saúde mental, à educação, à cultura e a várias outras áreas. Embora muitos críticos questionem seus métodos e resultados, a psicanálise permanece uma referência fundamental para a análise das complexas dinâmicas psíquicas e das transformações subjetivas que o ser humano experimenta ao longo da vida.
Sigmund Freud, em sua teoria estrutural da mente, propôs a existência de três instâncias psíquicas fundamentais: Id, Ego e Superego. Essas instâncias são essenciais para compreender os conflitos internos que o sujeito enfrenta e a maneira como a psique lida com as exigências da realidade, os impulsos e as normas sociais. O Id, como a instância mais primitiva, busca a satisfação imediata dos desejos, enquanto o Ego, mediador entre os impulsos do Id e a realidade, trabalha para encontrar soluções viáveis. O Superego, por sua vez, age como uma instância moral, impondo restrições comportamentais e representando a internalização das normas sociais e culturais.
Os mecanismos de defesa, descritos por Freud e mais tarde por seus seguidores, como Anna Freud, são estratégias inconscientes que o Ego utiliza para lidar com as tensões entre o Id e o Superego, e com as exigências externas. A repressão é o mecanismo fundamental da psicanálise, pois é por meio dela que os conteúdos inaceitáveis são mantidos fora da consciência. Outros mecanismos, como a negação, o deslocamento, a projeção e a racionalização, são igualmente importantes para a adaptação do indivíduo à sua realidade psíquica e externa. No entanto, quando esses mecanismos não funcionam adequadamente, podem resultar em distúrbios psíquicos, como neuroses ou psicoses, que exigem intervenção terapêutica.
O Complexo de Édipo, descrito por Freud em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), é outro conceito fundamental da psicanálise, abordando a dinâmica emocional e sexual entre a criança e seus pais. Este processo, que ocorre entre os 3 e os 6 anos de idade, tem implicações profundas na formação da identidade psíquica e no desenvolvimento da capacidade de estabelecer relações interpessoais e afetivas. O Complexo de Édipo é um marco essencial na teoria freudiana, que continua a ser debatido e reinterpretado por psicanalistas contemporâneos.
Por fim, a psicanálise oferece uma estrutura robusta para a compreensão do inconsciente, dos conflitos psíquicos e da formação da personalidade, além de apresentar alternativas teóricas e terapêuticas para o tratamento das diversas manifestações do sofrimento psíquico, como neuroses, psicoses e distúrbios de personalidade.
Nise da Silveira, ao se formar em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1926, tornou-se uma das primeiras mulheres a se destacar em um campo predominantemente masculino. Sua formação acadêmica foi marcada por um profundo confronto com os modelos psiquiátricos convencionais da época. Influenciada pelas correntes progressistas da psiquiatria europeia, Nise se afastou das práticas coercitivas da psiquiatria manicomial, que predominavam no Brasil durante as primeiras décadas do século XX.
Esse importante movimento de contestação à psiquiatria tradicional reflete a crescente crítica internacional ao tratamento desumanizante das pessoas com transtornos mentais, como o uso indiscriminado de eletrochoques e lobotomias, métodos vistos como forma de controle social, e não como alternativas terapêuticas genuínas.
Dentro desse contexto de revolução conceitual, Nise foi profundamente influenciada pela fenomenologia e pelo humanismo, correntes que valorizavam a experiência subjetiva do paciente e procuravam compreender os transtornos mentais de forma mais holística e empática. Essas influências teóricas foram fundamentais para sua atuação como médica psiquiatra e psicanalista.
Sua introdução ao pensamento de Carl Jung foi um marco decisivo em sua trajetória. A teoria junguiana dos arquétipos, que descreve a manifestação simbólica de estruturas psíquicas universais presentes no inconsciente coletivo, ofereceu uma base teórica que permitiu a Nise reinterpretar as expressões artísticas dos pacientes como uma comunicação simbólica profunda do inconsciente. Essa visão ampliada, que via a mente humana como um campo complexo e multifacetado, esteve na raiz da sua busca por alternativas terapêuticas que respeitassem a subjetividade dos pacientes, afastando-se da ideia de doença como algo puramente biológico ou patológico (MELLO FILHO, 1999).
Além disso, seu contato com a psicanálise freudiana proporcionou uma fundamentação teórica sólida sobre os processos inconscientes, ampliando sua capacidade de entender as motivações e os conflitos internos dos pacientes com transtornos mentais. A junção dessas influências, particularmente a psicologia analítica de Jung, com o enfoque psicanalítico, propiciou a Nise uma abordagem terapêutica integrada e inovadora.
A criação da Seção de Terapia Ocupacional no Hospital Pedro II, em 1946, foi um marco na história da psiquiatria brasileira. Ao estabelecer essa seção, Nise da Silveira não só desafiou as práticas psiquiátricas coercitivas, mas também propôs uma abordagem revolucionária, centrada no potencial terapêutico das atividades artísticas.
Enquanto a psiquiatria tradicional seguia um modelo baseado no confinamento e na reclusão, Nise trouxe a ideia de que a criação artística poderia atuar como um canal de expressão e de comunicação do inconsciente dos pacientes. Em um momento em que a psiquiatria estava imersa em abordagens biológicas e mecanicistas, ela propôs uma revolução que reconhecia a complexidade humana por meio da arte.
A Sessão de Terapia Ocupacional foi um espaço onde os internos, muitos dos quais com diagnósticos severos de transtornos psicóticos, puderam expressar seus conteúdos psíquicos através da pintura, modelagem e outras formas de arte. Nise da Silveira compreendeu que essas produções artísticas não eram meros divertimentos ou distrações, mas sim um elo direto com os processos inconscientes dos pacientes.
Ao valorizar essas expressões, ela não só humanizou o tratamento psiquiátrico, mas também contribuiu para uma revolução conceitual na medicina e na psicologia. A arte se tornou uma ferramenta terapêutica de primeiro plano, usada para revelar a profundidade dos conflitos psíquicos e das experiências internas dos pacientes (SILVEIRA, 1981).
Além disso, a seção permitiu a construção de um novo olhar sobre os pacientes, não mais vistos como “casos clínicos” ou “doentes”, mas como sujeitos com uma rica vida psíquica que, apesar de seus transtornos, possuíam uma capacidade de expressão e de criação. Nise, portanto, não só desafiou as práticas manicômicas, mas também propôs um modelo alternativo de tratamento, baseado no reconhecimento da dignidade e da subjetividade dos pacientes.
O trabalho de Nise da Silveira com a arte e a psicose se fundamentou em sua profunda convicção de que a produção artística dos pacientes não era apenas uma forma de expressão espontânea, mas sim uma manifestação do inconsciente. Ao longo de sua prática, Nise observou que os padrões presentes nas pinturas e esculturas dos pacientes estavam intimamente relacionados aos arquétipos junguianos, como o processo de individuação, que implica no movimento do sujeito em direção à totalidade do ser. Ao identificar essas conexões simbólicas, Nise da Silveira demonstrou como as produções artísticas poderiam revelar elementos profundos da psique, até mesmo em indivíduos diagnosticados com quadros graves de psicose.
A arteterapia, sob sua direção, foi entendida como um meio de acessar e tratar o inconsciente, especialmente para aqueles pacientes que não conseguiam se expressar verbalmente, uma característica comum em muitos casos de psicose. Ao utilizar as artes visuais como um campo de expressão terapêutica, Nise possibilitou que os pacientes acessassem conteúdos psíquicos complexos e até então inacessíveis por meio de discursos convencionais. Ela, assim, ajudou a consolidar a arteterapia como uma ferramenta fundamental na psicanálise e na psiquiatria, reconhecendo o valor da arte não apenas como forma de cura, mas como uma linguagem essencial para o entendimento do inconsciente coletivo (FERRAZ, 2012).
Além disso, seu trabalho pode ser compreendido como um avanço significativo na psicanálise, uma vez que Nise utilizou a produção artística como um meio de entender melhor o fenômeno psicótico. Ela reconheceu que a psicanálise, tradicionalmente centrada no discurso verbal, precisava incorporar outras formas de expressão, como a arte, para tratar pacientes com dificuldades de comunicação verbal. Assim, a arteterapia foi adotada por Nise não como um substituto da psicanálise, mas como uma extensão desta, um caminho alternativo para acessar e interpretar as camadas mais profundas da psique.
Essa abordagem transformadora foi capaz de promover um novo entendimento sobre as psicoses, não mais vistas apenas como disfunções cerebrais ou comportamentais, mas como manifestações de processos inconscientes que, ao serem expressos artisticamente, podiam revelar caminhos de cura e de reconciliação do indivíduo com sua própria psique. Nise da Silveira, ao integrar a arte à psiquiatria e à psicanálise, deixou um legado duradouro e inovador, que ainda reverbera na prática terapêutica contemporânea.
O trabalho de Nise da Silveira apresenta diversas intersecções com os conceitos fundamentais da psicanálise freudiana, especialmente no que diz respeito à valorização do inconsciente, da subjetividade e da relação transferencial no processo terapêutico. Embora sua prática tenha sido fortemente influenciada pela psicologia analítica de Carl Jung, a relação com as formulações freudianas é notável, evidenciando uma abordagem que transcende as classificações estritas das escolas psicológicas.
Sigmund Freud postulou o inconsciente como uma instância psíquica estruturada por desejos reprimidos e acessível por meio de manifestações simbólicas, como os sonhos, atos falhos e produções artísticas (FREUD, 1900). Nise da Silveira apropriou-se dessa compreensão ao reconhecer nas produções artísticas de seus pacientes um meio legítimo de expressão do inconsciente. A arte, nesse contexto, assumia um papel semelhante ao dos sonhos na teoria freudiana, permitindo a emergência de conteúdos reprimidos e possibilitando uma nova forma de comunicação para indivíduos frequentemente silenciados pela psiquiatria tradicional (SILVEIRA, 1981).
A abordagem de Nise também dialoga com as formulações kleinianas sobre a importância da simbolização na psicanálise dos estados psicóticos. Melanie Klein (1957) destacou a capacidade da criação simbólica de auxiliar na elaboração de angústias primordiais. Da mesma forma, Nise percebeu que a expressão plástica permitia aos pacientes reelaborar conflitos internos, muitas vezes inatingíveis pelo discurso verbal (FERRAZ, 2012). Assim, sua proposta de arteterapia ressoa com a compreensão psicanalítica da simbolização como um mecanismo psíquico essencial para a subjetivação e a organização psíquica.
A transferência, conceito central na psicanálise freudiana, refere-se ao deslocamento de afetos inconscientes do paciente para o terapeuta, reproduzindo padrões relacionais originários da infância (FREUD, 1912). Freud via na transferência um fenômeno inevitável e necessário para a análise, pois era por meio da repetição das experiências passadas na relação terapêutica que os conteúdos reprimidos poderiam ser elaborados.
Nise da Silveira aplicou esse princípio ao estabelecer uma relação empática e humanizada com seus pacientes, distanciando-se do modelo psiquiátrico tradicional, que desconsiderava a dimensão subjetiva do vínculo terapêutico. Para Nise, a criação de laços de confiança era fundamental para que os internos pudessem se expressar livremente. Sua abordagem remete à importância que Freud dava à contratransferência, ou seja, à necessidade de o terapeuta estar atento aos seus próprios sentimentos na relação com o paciente (FREUD, 1910).
Além disso, o contexto institucional no qual Nise atuava exigia uma adaptação do conceito de transferência. Em um ambiente onde os pacientes eram frequentemente submetidos a práticas violentas, o vínculo estabelecido com Nise e sua equipe assumia um papel restaurador, permitindo a esses indivíduos vivenciar uma experiência relacional diferenciada. Assim, sua atuação clínica confirma a relevância do afeto e do reconhecimento na constituição do sujeito, elementos essenciais na prática psicanalítica.
A psicanálise freudiana representou uma ruptura com as concepções organicistas da psiquiatria do século XIX ao enfatizar que os transtornos mentais deveriam ser compreendidos em sua dimensão subjetiva, e não apenas como manifestações de disfunções biológicas (FREUD, 1895). Esse princípio foi fundamental para a atuação de Nise da Silveira, que se opôs às abordagens reducionistas da psiquiatria tradicional, caracterizadas pelo uso indiscriminado de eletrochoques, lobotomias e internações prolongadas.
Ao promover um modelo terapêutico baseado na escuta e na valorização da singularidade do paciente, Nise reforçou um dos pilares da psicanálise: a ideia de que o sofrimento psíquico deve ser abordado a partir da história e das experiências individuais, e não apenas tratado como uma patologia a ser eliminada. Nesse sentido, sua proposta de terapia ocupacional e arteterapia não apenas proporcionava um meio de expressão para os pacientes, mas também reafirmava a importância do sujeito no processo terapêutico.
A influência da psicanálise no pensamento de Nise pode ser percebida ainda na maneira como ela compreendia a loucura. Em vez de enxergá-la como uma mera desorganização psíquica, ela a via como uma forma específica de funcionamento mental, que deveria ser compreendida e acolhida, e não simplesmente suprimida. Essa concepção se alinha à visão freudiana da psicose como um fenômeno estruturado, dotado de lógica própria e passível de interpretação, como Freud sugeriu em seus estudos sobre Schreber (FREUD, 1911).
Dessa forma, a intersecção entre a obra de Nise da Silveira e a psicanálise freudiana evidencia um compromisso comum com a escuta do sujeito, o respeito à sua subjetividade e a busca por alternativas ao tratamento psiquiátrico tradicional. Sua atuação ressignificou o papel da arte, da transferência e da subjetividade no cuidado em saúde mental, consolidando uma prática clínica que dialoga profundamente com os princípios da psicanálise.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste estudo, busquei compreender a influência dos conceitos freudianos na abordagem terapêutica de Nise da Silveira. Identifiquei que, apesar de sua maior proximidade com a psicologia analítica de Carl Jung, os princípios psicanalíticos, especialmente a valorização do inconsciente e das expressões simbólicas, estiveram presentes em sua prática. Seu trabalho representou uma ruptura com os modelos psiquiátricos tradicionais, trazendo uma nova perspectiva ao tratamento de transtornos mentais, pautada na humanização e no uso da arte como ferramenta terapêutica.
Os resultados deste estudo evidenciaram a relevância da psicanálise para a evolução das práticas psiquiátricas, demonstrando que conceitos fundamentais, como o inconsciente e a subjetividade, ampliaram as possibilidades de intervenção na saúde mental. Em relação aos objetivos traçados, consegui identificar os principais conceitos psicanalíticos presentes na obra de Nise da Silveira, analisei o diálogo entre sua prática clínica e a psicanálise e compreendi a relevância de sua contribuição para a psiquiatria brasileira.
Apesar das contribuições deste estudo, reconheço que a interface entre psicanálise e psiquiatria ainda necessita de investigações mais aprofundadas. Acredito que pesquisas futuras possam explorar com mais detalhes a interação entre as concepções freudianas e as práticas psiquiátricas contemporâneas, ampliando a compreensão sobre a aplicação de abordagens terapêuticas inovadoras.
Por fim, reforço a importância de continuar estudando o legado de Nise da Silveira e sua contribuição para uma psiquiatria mais humanizada. Seu trabalho lembra da necessidade de olhar para o indivíduo em sua totalidade, reconhecendo a subjetividade como parte essencial do cuidado em saúde mental.
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