THE IMPACT OF EMERGENCY CARE ON THE QUALITY OF PRIMARY HEALTH CARE: CHALLENGES AND STRATEGIES
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202502071034
Rafael Augusto dos Santos Ramos1
Rafael Medeiros Roriz2
Resumo
A Atenção Primária à Saúde (APS) é fundamental para a organização das Redes de Atenção à Saúde (RAS) e a coordenação do cuidado no Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, a crescente demanda por atendimentos de urgência tem desafiado a efetividade da APS, impactando a qualidade do cuidado e sobrecarregando outros níveis de atenção. Esta revisão integrativa investiga como os atendimentos de urgência afetam a qualidade do cuidado na APS e busca identificar estratégias para fortalecer sua capacidade resolutiva. A pesquisa analisou 21 publicações extraídas das bases LILACS, PubMed/MEDLINE e Google Acadêmico, abrangendo o período de 2018 a 2024. Os resultados revelam que a falta de infraestrutura adequada, a ausência de protocolos clínicos padronizados e as falhas na articulação entre os serviços comprometem a capacidade da APS de resolver os problemas de saúde dos usuários, resultando em sobrecarga dos serviços de urgência e emergência. Em contrapartida, a adoção de protocolos clínicos baseados em evidências, o uso da telemedicina, o acolhimento com classificação de risco e a qualificação profissional demonstraram potencial para ampliar a eficiência da APS e reduzir encaminhamentos desnecessários. O investimento nesses aspectos é crucial para consolidar a APS como eixo central da atenção à saúde, garantindo um atendimento mais eficaz, acessível e coordenado para a população.
Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde. Estratégia Saúde da Família. Urgência e Emergência. Qualidade do Cuidado. Coordenação do Cuidado.
Abstract
Primary Health Care (PHC) is essential for organizing Health Care Networks (HCNs) and coordinating care within the Unified Health System (SUS) in Brazil. However, the increasing demand for urgent care has challenged the effectiveness of PHC, impacting the quality of care and overburdening other levels of care. This integrative review investigates how urgent care visits affect the quality of care in PHC and aims to identify strategies to strengthen its resolutive capacity. The research analyzed 21 publications extracted from the LILACS, PubMed/MEDLINE, and Google Scholar databases, covering the period from 2018 to 2024. The results reveal that the lack of adequate infrastructure, the absence of standardized clinical protocols, and failures in the articulation between services compromise PHC’s ability to resolve users’ health problems, resulting in an overload of urgency and emergency services. On the other hand, the adoption of evidence-based clinical protocols, the use of telemedicine, the reception with risk classification, and professional qualification have shown potential to increase the efficiency of PHC and reduce unnecessary referrals. Investing in these aspects is crucial to consolidate PHC as the central axis of health care, ensuring more effective, accessible, and coordinated care for the population.
Keywords: Primary Health Care. Family Health Strategy. Urgency and Emergency. Quality of Care. Care Coordination.
1. INTRODUÇÃO
A APS ancorada na Estratégia Saúde da Família, configura-se como o alicerce para a organização e coordenação das RAS no SUS (BRASIL, 2017). Sua importância estruturante reside na garantia do acesso contínuo, da longitudinalidade, da integralidade e da cooperação do cuidado, que habilitam a APS a solucionar de 85% a 95% das demandas de saúde da população, desde agravos de baixa complexidade até o manejo de doenças crônicas (STARFIELD, 2002). No contexto brasileiro, as Equipes de Saúde da Família (ESF), por médico de família e comunidade, enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde, responsabiliza-se pela cobertura de populações idealmente entre 2.000 e 3.500 habitantes, fortalecendo vínculos territoriais e promovendo um cuidado singularizado e contextualizado às realidades locais.
A reestruturação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), em 2017, expandiu o escopo da APS, atribuindo-lhe o primeiro atendimento às demandas de urgência e emergência. A implementação do Acolhimento e Classificação de Risco (ACCR) possibilitou a priorização dos atendimentos, levando em consideração a gravidade clínica dos casos, garantindo que as situações mais urgentes recebam o tratamento adequado. No entanto, grande parte dessas demandas, como infecções respiratórias leves e descompensação de doenças crônicas, são consideradas Condições Sensíveis à Atenção Primária (CSAP) (FREITAS et al., 2020). Tais condições poderiam ser prevenidas ou resolvidas na APS, evitando, assim, a necessidade de encaminhamentos internos (FREITAS et al., 2020). Esse cenário evidencia a importância de reorganizar os fluxos assistenciais e implementar estratégias que fortaleçam a capacidade resolutiva da APS, assegurando um cuidado integral e contínuo à população (LUZ et al., 2022).
Protocolos clínicos baseados em evidências otimizam a resposta da APS às demandas emergenciais. O Manchester Triage System (MTS), amplamente utilizado em serviços de urgência, organiza o fluxo de pacientes de acordo com a gravidade clínica, otimizando os atendimentos e reduzindo o tempo de espera (MOREIRA et al., 2017). Ademais, as ações de educação em saúde fortalecem a capacidade da população de discernir quando e como recorrer à APS, diminuindo a procura por níveis assistenciais mais complexos e incentivando o uso apropriado dos serviços disponíveis (COLOMBINI et al., 2020).
O fortalecimento da APS como centro resolutivo e ordenador do cuidado também exige a incorporação de inovações tecnológicas. As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), como a teleconsulta e a triagem eletrônica (TeleAPS), aprimoram a eficiência dos atendimentos, possibilitando um acolhimento mais ágil, esclarecendo dúvidas dos usuários à distância e evitando encaminhamentos desnecessários (BRASIL, 2020). Contudo, é crucial garantir que tais soluções não comprometam a interação efetiva entre os níveis assistenciais, assegurando que o paciente retorne à APS com informações articuladas e direcionadas (FRICHEMBRUDER et al., 2022).
A infraestrutura da APS também exerce um papel fundamental em sua efetividade. A disponibilidade de equipamentos adequados, a informatização dos serviços e a presença de protocolos assistenciais consolidados proporcionam uma tomada de decisão clínica mais segura, especialmente em situações agudas (MENDES, 2011). A Portaria GM/MS nº 635 de 2023 reforça essa necessidade ao expandir a atuação de equipes multiprofissionais, fortalecendo a capacidade resolutiva da APS e garantindo um atendimento mais abrangente e eficiente (BRASIL, 2023).
Outro aspecto crucial para aprimorar a qualidade do cuidado na APS é a formação e capacitação contínua dos profissionais de saúde. Investir em educação permanente permite que as equipes desenvolvam habilidades para lidar tanto com demandas urgentes quanto com o cuidado preventivo e longitudinal, evitando que as urgências comprometam o acompanhamento dos usuários (BORGES, 2021).
Diante desse panorama, este estudo realiza uma revisão integrativa da literatura com o objetivo de avaliar o impacto dos atendimentos de urgência na APS, levando em consideração os atributos de qualidade do atendimento propostos por Barbara Starfield – notadamente a acessibilidade, a integralidade e a coordenação (STARFIELD, 2002). Ao analisar como esses elementos estruturam os fluxos assistenciais e ampliam a resolutividade da APS, busca-se elucidar estratégias que fortaleçam seu papel como eixo central do SUS. Adicionalmente, o estudo aborda estratégias que transcendem a resolução pontual de sintomas, incorporando as dimensões sociais, familiares e comunitárias, reafirmando a APS como pilar fundamental para um sistema de saúde equitativo, integrado e centrado nas reais necessidades da população.
2. METODOLOGIA
Este estudo caracteriza-se como uma revisão integrativa da literatura, uma metodologia amplamente utilizada na área da saúde para sintetizar de forma sistemática os resultados de pesquisas publicadas, promovendo uma análise crítica e abrangente do conhecimento acumulado (MENDES; SILVEIRA; GALVÃO, 2008). Essa abordagem busca fundamentar práticas baseadas em evidências, além de identificar lacunas no conhecimento que possam orientar futuros estudos e intervenções.
A busca pelos estudos foi realizada nas bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE) via PubMed e Google Acadêmico, devido à relevância dessas fontes na produção científica em saúde. Para assegurar uma busca precisa e abrangente, foram utilizados os seguintes termos em português e inglês: “Saúde da Família” (Family Practice), “Atenção Primária à Saúde” (Primary Health Care), “Emergências” (Emergency) e “Qualidade da Assistência à Saúde” (Quality of Health Care).
Os critérios de inclusão adotados para este estudo abrangeram publicações realizadas entre os anos de 2018 e 2024, disponíveis na íntegra, redigidas nos idiomas português, inglês ou espanhol, e que discutem de forma direta a relação entre os atendimentos de urgência na APS e a qualidade do cuidado. Foram excluídos artigos editoriais, opiniões ou cartas ao editor, estudos que não apresentassem metodologia detalhada e aqueles que abordassem emergências em contextos distintos da APS. Dessa forma, garantiu-se uma seleção criteriosa e alinhada ao objetivo do estudo.
A busca inicial, considerando estudos disponíveis na íntegra, identificou 298 artigos, sendo 149 provenientes do MEDLINE, 129 do Google Acadêmico e 20 da LILACS. Em seguida, aplicou-se o recorte temporal, eliminando 188 artigos. Posteriormente, a análise do título e resumo levou à exclusão de 89 artigos que não apresentavam relação direta com o tema, restando, assim, 21 estudos selecionados para leitura integral.
Na etapa de análise crítica, as informações extraídas foram organizadas sistematicamente, contemplando autores, ano de publicação, objetivos, metodologia, resultados principais e recomendações. Embora todos os 21 artigos tenham sido analisados na íntegra, 7 estudos revelaram-se mais relevantes para a discussão final, tendo em vista o rigor metodológico, a aderência aos objetivos deste trabalho e a contribuição significativa para a compreensão aprofundada do tema.
Os dados foram analisados de forma descritiva, com o intuito de identificar os principais desafios relacionados às demandas emergenciais na APS, as estratégias planejadas para reorganização dos fluxos assistenciais e o impacto dessas intervenções na qualidade e resolutividade do cuidado.
3. RESULTADOS
Os artigos selecionados trouxeram perspectivas complementares que evidenciam os desafios, os limites e as potencialidades desse nível de atenção no contexto das RAS. A Tabela 1 apresenta os detalhes dos estudos revisados.
Tabela 1. Artigos selecionados para a revisão integrativa
Título do Artigo | Autores | Periódico/Ano de Publicação | Objetivos | Considerações |
Análise da relação entre unidades de APS e de Pronto Atendimento: determinantes, escolhas e desafios organizativos | BORGES, G. A. | UFBA, 2021 (Dissertação de Mestrado) | Analisar a dinâmica organizativa entre a APS e UPAs no município de Petrolina-PE. | Existe descompasso entre os serviços e falha no acolhimento das demandas de baixa complexidade na APS. |
A Atenção Primária como parte integrante da rede de atendimento às Urgências e Emergências: à luz da literatura | FREITAS, T. C. C. et al. | Revista Eletrônica Acervo Saúde, 2020 | Identificar a atuação dos profissionais da APS frente às urgências e emergências. | Aborda diretrizes legais, a organização e as competências específicas para que a APS atue de forma integrada, eficaz e segura no atendimento a urgências e emergências. |
Avaliação da estrutura na APS para o suporte básico de vida | CASSINELLI, F. et al. | Saúde e Pesquisa, 2019 | Descrever a estrutura das Unidades Básicas de Saúde (UBS) para Suporte Básico de Vida (SBV). | Muitas UBS não dispõem de estrutura adequada, comprometendo a resposta inicial em situações críticas. |
Fragilidades e potencialidades da atenção primária à saúde no atendimento das urgências e emergências | LUZ, Samuel Addison de Sousa et al. | Revista de Casos e Consultoria, 2022. | Identificar as potencialidades e fragilidades dos profissionais da APS no atendimento de urgências e emergências | A APS enfrenta desafios como falta de infraestrutura e capacitação, mas os profissionais se empenham em oferecer atendimento resolutivo, destacando a necessidade de mais investimentos. |
Frequência e manejo de emergências em consultórios de Atenção Primária: Um estudo transversal no noroeste da Alemanha. | MELZELA, Max . et al. | Jornal Europeu de Prática Generalista, 2022. | Analisar a frequência, os tipos de emergências em consultórios de atenção primária na Alemanha e a confiança dos médicos em atendimento, considerando diferenças entre áreas rurais e urbanas e formação profissional | Emergências em consultórios de atenção primária na Alemanha ocorrem mensalmente, com maior frequência em áreas rurais, e a confiança dos médicos depende da experiência e treinamento, destacando a importância de treinamento contínuo |
Urgências e emergências na atenção básica: visão da enfermagem | PINTO, RG T, RIBEIRO, LB, SOUSA, SCA | Revisão, 2022 | Analisar a capacidade de atendimento de casos de urgência e emergência pelos enfermeiros da Atenção Básica do Guará/DF. | O SUS deve remunerar locais adequados para atendimento de urgências e emergências, revisando estrutura física e recursos nas UBS. |
Ocorrência de emergências odontológicas em serviços de Atenção Primária à Saúde | FRICHEMBRUDER, K. et al. | Brazilian Oral Research, 2022 | Analisar a ocorrência de emergências odontológicas em serviços de Atenção Primária à Saúde, focando na relação com fatores individuais, como idade e cor da pele, e na abordagem da qualidade do atendimento, incluindo tempo de resposta, continuidade do cuidado e resolutividade | O estudo destaca que, apesar da alta resolutividade no atendimento de emergências odontológicas na Atenção Primária, barreiras de acesso e falhas na continuidade do atendimento ainda comprometem a qualidade do serviço. |
Fonte: elaborada pelo autor
4. DISCUSSÃO
A discussão deste estudo aborda os principais desafios e estratégias relacionadas ao manejo de demandas urgentes na APS, com ênfase nos atributos de acessibilidade, integralidade, longitudinalidade e coordenação do cuidado. São apresentados os pontos mais relevantes extraídos dos estudos analisados, destacando fragilidades como infraestrutura inadequada, limitações organizacionais e falhas na integração entre os níveis de atenção. Partindo dessas fragilidades, são exploradas possíveis soluções que reforcem a resolutividade da APS e ampliem sua capacidade de atuação em cenários de urgência e emergência.
4.1 APS: Presente em todo lugar, acessível para todos?
A APS deveria garantir atendimentos ágeis e evitar a sobrecarga dos serviços de maior complexidade. No entanto, como apontam Freitas et al. (2020), embora a APS tenha potencial para garantir acessibilidade e resolver grande parte das demandas, falhas operacionais comprometem sua efetividade. Horários restritos, longas filas de espera e deficiências no acolhimento inicial levam muitos usuários a buscar Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), desviando casos que poderiam ser resolvidos na APS. Além das limitações estruturais, a gestão é ineficaz e a cultura de busca por atendimento reforça imediatamente essa migração, perpetuando a sobrecarga do sistema. Para que a APS cumpra seu papel, é essencial investir na ampliação da acessibilidade, na qualificação da triagem e no fortalecimento do vínculo com os usuários. Sem essas mudanças, a fragmentação do cuidado persistirá, comprometendo a cooperação do cuidado e a efetividade da atenção primária na organização do sistema de saúde.
Precariedades na infraestrutura das UBS comprometem a acessibilidade e a qualidade da APS. Cassinelli et al. (2019) destacam que a falta de padronização estrutural impacta diretamente a resolutividade desse nível de atenção, tornando essencial o investimento na qualificação dos serviços. A ausência de equipamentos essenciais, como desfibriladores e kits de suporte básico de vida (SBV), reduz a capacidade de resposta a emergências, dificultando a estabilização dos pacientes antes do encaminhamento. Esse problema se agrava em regiões vulneráveis, onde a distribuição desigual de recursos acentua as dificuldades no acesso à saúde. Além de afetar a segurança e a eficiência do atendimento, essa limitação estrutural fragiliza a coordenação do cuidado, ampliando a sobrecarga nos serviços de maior complexidade e comprometendo a integralidade da assistência.
Outro fator que compromete a acessibilidade e a efetividade da APS é a capacitação das equipes de saúde. Segundo Pinto et al. (2022), a falta de preparo técnico impacta diretamente a qualidade dos atendimentos, reforçando a percepção equivocada de que a APS não é o local adequado para lidar com situações críticas. O atendimento em emergências exige capacitação contínua, mas nem sempre os profissionais recebem treinamentos regulares ou contam com protocolos bem definidos para a tomada de decisão. Como consequência, há um aumento no número de encaminhamentos desnecessários, sobrecarregando outros níveis de atenção e comprometendo a resolutividade da APS. Investir na educação permanente das equipes é essencial para fortalecer a coordenação do cuidado e garantir um atendimento mais seguro e eficiente.
Superar essas barreiras exigem investimentos estratégicos que fortaleçam a APS como um nível de atenção acessível e eficiente. Melhorias na infraestrutura das UBS, ampliação do acesso a equipamentos essenciais e a capacitação contínua dos profissionais são fundamentais para garantir um atendimento seguro e eficaz. Além disso, o uso de tecnologias como teleconsultas e sistemas de triagem eletrônica pode otimizar os fluxos assistenciais, permitindo que casos menos graves sejam resolvidos no nível primário e reduzam a sobrecarga dos serviços de emergência (Melo et al., 2021).
A acessibilidade, no entanto, não se limita a questões estruturais e tecnológicas. Educação em saúde e políticas públicas externas para a equidade no acesso são igualmente fundamentais. Campanhas informativas podem a ajudar a compreender melhor o papel da APS e incentivar seu uso adequado, enquanto estratégias de regionalização dos serviços podem garantir um atendimento mais próximo das necessidades locais (Pereira & Brasileiro, 2019).
4.2 Além da porta de entrada: desafios para um cuidado integral
Garantir o acesso aos serviços de saúde é apenas o primeiro passo para um atendimento eficiente. A articulação entre a APS e os serviços de urgência é um fator determinante para evitar que os atendimentos sejam descontinuados. Quando bem coordenadas, as unidades de atenção primária e de pronto atendimento garantem um fluxo mais eficiente dos pacientes, reduzindo encaminhamentos desnecessários e promovendo um acompanhamento mais resolutivo (Borges, 2021). No entanto, falhas na comunicação entre os serviços comprometem essa integração, resultando em deslocamentos repetitivos dos pacientes entre diferentes níveis de atenção e sobrecarga dos serviços especializados.
A estrutura das UBS desempenha um papel central na promoção da integralidade, mas a limitação de recursos e equipamentos compromete a resolutividade da APS. Equipes multiprofissionais são essenciais para ampliar a capacidade de atendimento, porém, sem suporte diagnóstico adequado e protocolos bem definidos, a APS tem sua atuação restrita. Cassinelli et al. (2019) apontam que essa deficiência estrutural transforma muitas unidades em meros pontos de passagem para serviços de maior complexidade, enfraquecendo a coordenação do cuidado. Esse cenário resulta em encaminhamentos indiretos, sobrecarga nos níveis secundários e terciários e perda da confiança dos usuários na APS, reforçando a necessidade de investimentos estruturais e aprimoramento das diretrizes assistenciais.
Além da estrutura física, a integralidade depende de uma abordagem ampliada do cuidado, que considere os determinantes sociais da saúde. Muitas vezes, o atendimento emergencial se concentra na resolução imediata dos sintomas, sem levar em conta o contexto social e as condições de vida dos pacientes. A APS tem um grande potencial para oferecer um cuidado integral ao considerar não apenas a demanda clínica, mas também os fatores sociais que impactam a saúde dos indivíduos (Luz et al., 2022). A incorporação de estratégias como visitas domiciliares, ações intersetoriais e programas de educação em saúde pode fortalecer esse princípio, garantindo que o cuidado seja mais abrangente e adaptado às necessidades individuais dos usuários.
Outro obstáculo importante é a falta de um sistema eficiente de referência e contrarreferência, já que a ausência de prontuários eletrônicos compartilhados e protocolos integrados dificulta a comunicação entre os diferentes níveis de atenção, prejudicando o acompanhamento dos pacientes e tornando os atendimentos pontuais e fragmentados. Melhorar essa articulação permitiria que os atendimentos realizados na APS não fossem isolados, mas parte de um plano de cuidado contínuo e bem estruturado. Assim, entende-se que promover a integralidade exige não apenas investimentos em infraestrutura e qualificação profissional, mas também uma reorganização da forma como os serviços se conectam entre si.
4.3 Continuidade do cuidado: fortalecendo vínculos para uma APS resolutiva
A organização do cuidado APS deve garantir um acompanhamento contínuo, permitindo intervenções mais específicas e alinhadas ao histórico e às necessidades individuais dos pacientes. Quando associada à integralidade, essa abordagem fortalece a resolutividade da APS, garantindo que os atendimentos emergenciais não sejam episódios isolados, mas sim partes de um percurso assistencial estruturado. No entanto, a continuidade do cuidado ainda enfrenta desafios importantes, especialmente no manejo das urgências.
Dificuldades na integração dos atendimentos emergenciais ao plano de cuidado a longo prazo compromete a prevenção de complicações e a gestão eficiente de condições crônicas. Luz et al. (2022) apontam que essa lacuna reduz a eficácia das intervenções, pois muitos pacientes que procuram a APS em situações emergenciais não retornam para seguimento, favorecendo a reprodução de atendimentos para os mesmos problemas. Melzel et al. (2022) ressaltam que essa desconexão entre o cuidado imediato e o acompanhamento impacta diretamente a sobrecarga dos serviços de saúde e a recorrência de episódios agudos. A ausência de estratégias para garantir a vinculação dos pacientes ao serviço fragiliza a cooperação do cuidado, evidenciando a necessidade de protocolos que reforcem a APS como referência longitudinal para os usuários.
A relação entre a APS e os serviços de pronto atendimento desempenha um papel central na coordenação do cuidado, garantindo que o paciente receba suporte no momento crítico e retorne à APS para continuidade do acompanhamento. Borges (2021) aponta que uma interação contínua entre esses níveis de atenção pode fortalecer essa articulação, proporcionando um fluxo assistencial mais estruturado e eficaz. Por outro lado, a falta de protocolos formais de referência e contrarreferência ainda representa um obstáculo para essa integração, dificultando a comunicação entre os serviços e comprometendo o seguimento dos usuários após o atendimento emergencial. Sem um fluxo bem definido, há risco de descontinuidade do cuidado e sobrecarga dos serviços de urgência, evidenciando a necessidade de estratégias que qualifiquem a cooperação entre os diferentes pontos da rede e reforcem o papel da APS na organização do sistema de saúde.
Para fortalecer essa continuidade, é essencial investir em estratégias que garantam que cada atendimento na APS seja parte de um plano terapêutico estruturado. Prontuários eletrônicos compartilhados podem facilitar a troca de informações entre os diferentes pontos da rede de atenção, permitindo que as equipes de saúde acessem o histórico do paciente e realizem um acompanhamento mais efetivo. Além disso, a adoção de protocolos de acompanhamento pós-urgência e visitas domiciliares pode contribuir para a manutenção do vínculo entre paciente e equipe, prevenindo novas descompensações e reduzindo a necessidade de reentradas no sistema.
4.4 APS como eixo central: coordenado cuidados para um sistema mais eficiente
A coordenação do cuidado é um dos pilares fundamentais da APS, garantindo que os atendimentos não ocorram de maneira isolada, mas sim como parte de um sistema bem estruturado e eficiente. Para que a APS cumpra esse papel de maneira efetiva, é essencial que atue como articuladora central dos fluxos assistenciais, garantindo que cada atendimento esteja integrado a uma rede de cuidados que contemple tanto as demandas simples quanto os casos de maior complexidade. No entanto, desafios como falhas de comunicação entre os serviços, desarticulação dos fluxos de encaminhamento e dificuldades na referência de pacientes ainda comprometem a eficiência dessa coordenação (Borges, 2021).
A falta de integração entre a APS e os demais níveis de atenção resulta em um uso ineficiente dos recursos e sobrecarga dos serviços especializados. Muitas vezes, pacientes que poderiam ser acompanhados de forma resolutiva na APS acabam sendo encaminhados desnecessariamente para emergências e hospitais, aumentando a pressão sobre esses serviços e dificultando o retorno à atenção primária para seguimento (Freitas et al., 2020). Essa fragmentação é especialmente problemática em situações de urgência, onde a ausência de fluxos bem definidos pode levar a encaminhamentos inadequados ou a atrasos no atendimento de casos realmente críticos.
Além disso, a precariedade dos mecanismos de articulação entre os serviços de saúde impacta diretamente a qualidade do cuidado prestado. A falta de comunicação eficiente entre equipes da APS e dos serviços especializados muitas vezes resulta na repetição de exames e na descontinuidade do tratamento, dificultando a gestão dos casos e prejudicando a experiência do paciente no sistema de saúde (Pinto et al., 2022). Sem uma estrutura bem definida para o compartilhamento de informações e a gestão do percurso do usuário no sistema, a APS perde sua capacidade de organizar e otimizar os atendimentos, o que compromete sua resolutividade e a confiança da população nesse nível de atenção.
Outro desafio está na integração com serviços especializados e de suporte, como odontologia, fisioterapia e saúde mental. Muitas vezes, a dificuldade de articulação entre esses serviços e a APS impede que os pacientes tenham acesso a um cuidado completo e coordenado, resultando em lacunas no tratamento. A fragmentação desses atendimentos compromete não apenas a efetividade do cuidado, mas também a experiência do usuário, que pode enfrentar longos períodos de espera ou dificuldades no retorno à APS para continuidade do tratamento (Frichembruder et al., 2022).
Para fortalecer a coordenação do cuidado na APS, algumas estratégias devem ser adotadas. A implementação de prontuários eletrônicos compartilhados entre os diferentes níveis de atenção pode melhorar a comunicação entre os serviços, reduzindo a duplicação de exames e garantindo um acompanhamento mais eficiente do paciente. Além disso, a criação de protocolos de referência e contrarreferência bem definidos pode facilitar o encaminhamento de pacientes, evitando sobrecargas desnecessárias nos serviços de emergência e garantindo que cada nível de atenção desempenhe sua função de maneira integrada.
A qualificação das equipes também é essencial para aprimorar essa articulação. Investir na capacitação dos profissionais da APS para o manejo de urgências e na adoção de ferramentas de triagem pode reduzir encaminhamentos desnecessários e aumentar a resolutividade do primeiro atendimento. Da mesma forma, fortalecer os canais de comunicação entre os serviços, incluindo reuniões de caso e supervisão compartilhada entre profissionais da APS e especialistas, pode contribuir para um fluxo mais coordenado e eficiente.
5. CONCLUSÃO
A sobrecarga dos serviços de urgência tem raízes que vão além da alta demanda espontânea. Barreiras estruturais, falhas na organização do fluxo assistencial e limitações na resolutividade do primeiro atendimento apresentadas para um cenário em que casos evitáveis chegam a níveis mais complexos de atenção. A fragmentação do cuidado e a ausência de estratégias eficazes para acolher e manejar quadros agudos nas unidades básicas dificultam a construção de um modelo assistencial mais eficiente e coordenado.
Garantir um atendimento ágil e eficaz desde o primeiro contato exige protocolos bem estabelecidos, suporte tecnológico para triagem, qualificação profissional contínua e uma articulação mais eficiente entre os serviços. O fortalecimento desse nível assistencial não se limita à ampliação da infraestrutura, mas envolve uma reorganização dos processos de trabalho, a otimização da comunicação entre equipes e o aprimoramento do acompanhamento dos pacientes ao longo do tempo. A criação de fluxos bem definidos e a redução de encaminhamentos desnecessários impactaram diretamente a qualidade da assistência e a eficiência do sistema de saúde.
Construir uma rede assistencial mais equilibrada demanda investimentos contínuos e pesquisas que aprofundem estratégias para tornar o atendimento inicial mais resolutivo. A reorganização dos serviços pode não apenas evitar sobrecargas desnecessárias, mas também garantir um cuidado mais próximo, acessível e adaptado às necessidades da população. Somente com um olhar estratégico e integrado será possível consolidar um modelo de atenção primária verdadeiramente resolutivo, capaz de transformar o cuidado em saúde e fortalecer as bases de um sistema mais eficiente e equitativo.
REFERÊNCIAS
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1Médico Residente R2 do Programa de Residência em Saúde da Família e Comunidade da Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal- ESCS/FEPECS e-mail: augusto.rafael270@gmail.com
2Preceptor do Programa de Residência em Saúde da Família e Comunidade da Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal- ESCS/FEPECS. e-mail: rafael.medeiros.roriz@gmail.com