TINGIR OU NÃO TINGIR? A “REVOLUÇÃO GRISALHA” SOB A ÓTICA DO DISCURSO

TO DYE OR NOT TO DYE? THE “GRAY REVOLUTION” FROM THE PERSPECTIVE OF SPEECH

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202502070152


Roberta Soares Paiva1


RESUMO

A sociedade ocidental contemporânea vivencia o surgimento de um movimento social entre as mulheres: assumir os cabelos brancos, o que ficou conhecido popularmente como Revolução Grisalha (Araújo, 2019). O presente artigo investiga discursividades em torno desse movimento decorrentes de sua midiatização via Internet, através de pesquisa nas hashtags #mulheresgrisalhas e #revolucaogrisalha. O corpus é composto por 20 artigos publicados on-line acerca da temática escritos por mulheres que se identificam com a Revolução Grisalha. A análise se baseia na Análise do Discurso de orientação francesa, a partir das reflexões de autores como Foucault (1999, 2005, 2013), sobre a docilização dos corpos e a ordem do discurso, e Courtine (2013), acerca do corpo como materialidade discursiva. Ademais, embasaremos nosso entendimento sobre identidade nas concepções de Hall (2000, 2011) e Bauman (2001, 2005).

PALAVRAS-CHAVE: Revolução Grisalha. Discurso. Corpo. Midiatização.

ABSTRACT

Contemporary Western society experiences the emergence of a social movement among women: assuming white hair, which became popularly known as the Gray Revolution (Araújo, 2019). This article investigates discursivities around this movement arising from its mediatization via Internet, through research on the hashtags #mulheresgrisalhas (#graywomen) and #revolucaogrisalha (#grayrevolution). The corpus is composed of 20 articles published online about the topic in question, written by women who identify with the Gray Revolution. Analysis is based on French Discourse Analysis’ theoretical construct, based on reflections of authors such as Foucault (1999, 2005, 2013), on bodies’ docilization and discourse order, and Courtine (2013), on the body as discursive materiality. Furthermore, we will base our identity understanding on Hall’s (2000, 2011) and Bauman’s (2001, 2005) conceptions.

KEYWORDS: Gray Revolution. Speech. Body. Mediatization.

1 PRIMEIRAS PALAVRAS

A sociedade ocidental contemporânea vivencia o surgimento de uma tendência – ou, por que não dizer, de um movimento social, como afirma Araújo (2019) – entre as mulheres: assumir os cabelos brancos, o que ficou conhecido popularmente, dentre outras denominações, como Revolução Grisalha. Trata-se de um movimento curioso por imprimir positividade ao signo do envelhecimento mais emblemático em uma sociedade que tem medo de envelhecer. Circulam socialmente inúmeros discursos dirigidos às mulheres, segundo os quais elas devem manter (ou aparentar estar) a juventude eterna para serem aceitas e desejáveis. Como elucida Lysardo-Dias (1998), a mídia, principalmente através da publicidade, é a principal instância produtora desses discursos.

Através da democratização dos meios de comunicação de massa, e com especial impulso do advento da Internet e, mais especificamente, das redes sociais, o discurso publicitário atinge um contingente cada vez maior e mais diversificado de pessoas, participando ativamente da difusão de regras em prol da adequação aos padrões de beleza e funcionalidade socialmente aceitos e valorizados (Lysardo-Dias, 1998). As mulheres são alvo frequente dessas discursividades.

Ao compartilharem em rede suas impressões acerca do próprio processo de autoaceitação através do gesto de assumir com orgulho os fios brancos, as mulheres que tomaram essa decisão reivindicaram para si o reconhecimento de uma postura empoderada diante do curso natural da vida. Ao mesmo tempo, impulsionaram a midiatização desse movimento, a partir do momento em que chamam a atenção da mídia, que passa a produzir conteúdo acerca da temática, e, consequente, a formar opinião.

Por mais que tudo o que é dito só signifique porque já foi dito antes (Orlandi, 2000), de modo que nenhum dizer é inédito ou eminentemente original, é preciso estar atento para o inusitado. Afinal,

[…] é necessário, […] no coração mesmo da repetição fatigante dos enunciados, manter-se sensível à irrupção repentina de objetos discursivos inéditos, nas bifurcações inesperadas do regime de enunciação ele mesmo, breve […]: convém manter-se “atento ao desconhecido que bate à porta” (Courtine, 2013, p. 11-12).

Imbuídas desse espírito investigativo, e também por estarmos nós mesmas diante da necessidade de tomar essa decisão, demos início à investigação que originou o presente artigo, que tem por objetivo investigar que discursividades se inscrevem no gesto de assumir os cabelos brancos, as quais giram em torno do movimento denominado de Revolução Grisalha. Para a composição do corpus, pesquisamos em hashtags, de modo que tivéssemos acesso ao arquivo, em termos foucaultianos, existente sobre o tema. Selecionamos um total de 20 artigos publicados na Internet entre 2005 e 2019 sob as hashtags #mulheresgrisalhas e #revolucaogrisalha. Artigo foi o gênero escolhido para compor o corpus em virtude do nosso interesse atual de coletar depoimentos por escrito de mulheres que se identificam com a Revolução Grisalha.

Procederemos à análise mediante o construto teórico da Análise do Discurso de orientação francesa, a partir das reflexões de autores como Foucault (1999, 2005, 2013), sobre a docilização dos corpos e a ordem do discurso, e Courtine (2013), acerca do corpo como materialidade discursiva. Ademais, embasaremos nosso entendimento sobre identidade nas concepções de Hall (2000, 2011) e Bauman (2001, 2005).

2 A ANÁLISE DO DISCURSO DE LINHA FRANCESA

A Análise do Discurso (doravante AD) nasceu como campo do saber no final dos anos 1960, fundada duplamente por Jean Dubois e Michel Pêcheux. Conforme aponta Gregolin (2006), a área elege como objeto de estudo o discurso, estando ligada em seu nascedouro ao Marxismo e à política. Michel Pêcheux, que concebe o discurso enquanto acontecimento, formulou o seu pensamento envolto em uma conjuntura política e intelectual da França, de onde provém a premissa segundo a qual a interpretação do acontecimento discursivo leva em conta os sujeitos sociais e a História.

As propostas apresentadas pelos fundadores apresentavam diferenças, o que influenciou o caminho percorrido pela Análise do Discurso. Dubois, como lexicólogo, vê a AD como continuação da Linguística e apresenta um modelo sociológico imanentista para a análise de textos. Por outro lado, Pêcheux apresenta o quadro epistemológico da AD, a partir da problematização de três áreas das Ciências Humanas e Sociais. Desse modo, ele faz uma crítica à Linguística Estrutural, a partir do corte saussuriano2, que, ao eleger a língua como objeto de estudo, exclui o sujeito e a História. Pêcheux também questiona a Psicanálise freudiana, criticando a noção de sujeito psicológico, individual, e ainda propõe uma releitura do Materialismo Histórico de Marx, questionando a noção de ideologia como “falsa verdade”. Pêcheux não só critica esses campos do saber, mas rearticula e reelabora conceitos. É através dessas problematizações e rupturas teóricas que surge a Análise do Discurso (AD), caracterizando-se como um campo transdiciplinar desde a sua fundação.

A AD tem como objeto de estudo o discurso, entendido como processo em que se articula uma materialidade linguística e uma materialidade histórica (socioideológica). Para Orlandi (2000), a investigação na AD é feita sobre a língua em seu aspecto semântico, enquanto valor simbólico, como parte do homem, da sociedade e de sua história. Não se pretende, com essa construção teórica, encontrar a “verdade”, e sim fazer uma reconstrução das falas que propiciaram uma “vontade de verdade” em dado momento histórico. Nas palavras de Maldidier (2011, p. 48), “[…] trata-se de construir uma teoria do discurso articulada a uma teoria das ideologias no quadro do Materialismo Histórico”.

O conceito de discurso que será adotado neste trabalho é o definido por Foucault (1987, p. 135): “Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma formação discursiva”. Esta última, por sua vez, é definida por Maldidier (2011, p. 50) como sendo “[…] o que pode e deve ser dito a partir de uma dada posição numa dada conjuntura”, de modo que não se tem a liberdade de “dizer qualquer coisa”, de qualquer modo, em qualquer situação. Ao menos, não impunemente.

Os discursos são construídos pelos sujeitos a partir de diversas formações discursivas. No entanto, os sentidos de seus enunciados estão diretamente relacionados aos lugares sociais que estes e que seus interlocutores ocupam. Este aspecto vem a corroborar a visão de Barbosa (2000, p. 140), segundo a qual “A possibilidade de os sentidos circularem de uma formação para outra justifica, pois, a pluralidade de significações”.

A partir da ideia dos enunciados como sistemas de dispersão, Foucault (1987) origina o conceito de formação discursiva. Segundo ele, “Sempre que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e se puder definir uma regularidade […] entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, teremos uma formação discursiva” (Foucault, 1987, p. 43).

Com relação à produção do discurso, Foucault (1999, p. 08-09) afirma que “[…] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos […]”. O filósofo francês alega, ainda, que a produção do discurso se dá a partir de procedimentos que apresentam mecanismos discursivos de exclusão, de sujeição e de rarefação.

Um procedimento externo apontado por Foucault é o da vontade de verdade, que diz respeito ao discurso verdadeiro da época e que se apoia em um suporte institucional. Essa vontade de verdade remete à maneira como o saber é construído em uma sociedade através de uma instituição, visando a manipular os outros discursos por meio de pressão e pelo poder de coerção.  

Por fim, quanto aos processos de produção do discurso, cita-se o procedimento interno de comentário, que se caracteriza pela repetição, ou seja, são os discursos que sempre são retomados, citados, como os textos religiosos, jurídicos, literários. Para Foucault (1999, p. 29), “O comentário limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo”.

Na perspectiva da Análise do Discurso de Linha Francesa, a noção de leitura se define pela ideia de interpretação e de compreensão, lugar que possibilita a criação de sentidos, que dependerão de diversos modos de leitura, de acordo com os lugares ocupados pelo sujeito, que carregam diferentes formações discursivas, sustentadas por uma memória social, que traz a remissão a outras leituras. Assim, o processo de leitura não significa a simples observação de um texto como produto acabado, no qual o sentido, caracterizado por sua opacidade, seja passível de ser assimilado em sua totalidade. Esta afirmação se coaduna com o posicionamento de Milanez (2004, p. 184), para quem “a leitura é […] espaço de controle e lugar de possibilidade de criação de novos sentidos. É movimento que pode construir um lugar para a subjetividade do leitor”.

Conforme assevera Orlandi (1988, p. 08), é preciso considerar alguns pontos relevantes no que diz respeito à leitura na perspectiva discursiva. O primeiro implica que sujeito e sentidos são determinados historicamente, ou seja, o sujeito carrega um conjunto de formações discursivas, que regulam as formas de dizer instituídas socialmente. Por isso, os sentidos são muitos, uma vez que se determinam historicamente, resultando na leitura de alguns sentidos, mas nunca de todos. O segundo ponto refere-se ao fato de que há inúmeros e variados modos de leitura, a implicar diversas formas de interagir com o texto e, ainda, que o sujeito se relaciona com os diversos modos e efeitos de leitura de cada época e segmento social.

É possível pontuar alguns aspectos também importantes quanto à leitura na perspectiva discursiva. Dentre os quais, destaca-se que todo sentido é constituído pela opacidade. Por isso, não se é possível apreender todos os sentidos de um texto, cuja exterioridade é constitutiva. Assim, todo dizer se caracteriza como incompleto, pois o não dito, a ausência de sentidos, também significa e, por último, a ideia de que o sujeito, a partir das posições sociais ocupadas, carrega diferentes formações discursivas, ancoradas pelas formações imaginárias, que determinarão sua interpretação sobre um dado texto.

Quanto ao sentido do enunciado, Foucault (1987) afirma que ele muda de acordo com as relações estabelecidas com outros enunciados. Isto significa que, para o filósofo francês, a História é construída pelas relações sincrônicas entre os discursos que, através de jogos enunciativos, afirmam-se, negam-se e se distinguem, o que resulta na materialização da História nos enunciados. Nessa ordem do discurso, “os textos são, eles próprios, objetos de uma prática, na medida em que foram feitos para serem lidos, meditados, tocados com os olhos, sentidos pelos dedos, postos à prova do tempo para no final, constituírem a armadura da conduta cotidiana” (Orlandi, 2000, p. 187).

3 A IDENTIDADE EM QUESTÃO

A identidade é uma construção discursiva e, assim sendo, remete a uma memória que se materializa nas práticas sociais (local dos discursos). Silva (2000) explica que a identidade e a diferença, além de não se separarem, “[…] não podem ser compreendidas […] fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentidos. Não são seres da natureza, mas da cultura e dos sistemas simbólicos que a compõem” (Silva, 2000, p. 78). Por esta razão, identidade e diferença trazem características de indeterminação e instabilidade com relação à linguagem da qual dependem, pois ambas estão diretamente relacionadas com o social, o que acarreta uma definição ancorada em relações de poder.  

Hall (2000, p. 109) assevera que as identidades também são construídas através da diferença e dentro do discurso, sendo, por isso, necessário “[…] compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas”. O autor atesta a existência de identidades, no plural, a partir da perspectiva do sujeito pós-moderno, que é descentrado. Desse modo, a crença de que o sujeito adota uma única identidade, que lhe será fiel ao longo da vida, cai por terra, porquanto o que o caracteriza na Modernidade Tardia é justamente a crise de identidade resultante da dissolução de todas as certezas do sujeito moderno. Desta feita, a

[…] perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento -descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo (Hall, 2011, p. 09).

Louro (2016) situa a construção das identidades sociais no âmbito da cultura e da História, assumindo, conforme pontua Hall (2000, 2011), um caráter múltiplo, fragmentário. Para a autora, os sujeitos assumem suas identidades ao serem interpelados por diferentes conjunturas sociais, mediante as quais eles respondem positivamente, de modo a gerar um senso de pertencimento a um determinado grupo social que ele toma como referência.

Embora esse senso de pertencimento possa ser provisório, posto que, em um determinado momento, algumas identidades, outrora atraentes, possam vir a tornar-se descartáveis, o fato de reconhecer-se pertencente a uma dada instituição, situação social ou “tribo” acarreta comprometimento por parte do sujeito. Diferentemente do que se poderia pensar em primeira instância, “Nada há de simples ou de estável nisso tudo, pois essas múltiplas identidades podem cobrar, ao mesmo tempo, lealdades distintas, divergentes ou até contraditórias” (Louro, 2016, p. 12).

Bauman (2005), ao tecer suas considerações mediante o caráter de liquidez e volatilidade que caracteriza a Modernidade Tardia, considera que, perante a desilusão em torno das certezas do sujeito moderno, que se depara com a imprevisibilidade e a transitoriedade que singularizam os tempos atuais, as identidades, elas próprias, igualmente se tornam líquidas. Nesse novo e desconcertante cenário,

O “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis […]. As identidades ganham livre curso, e agora cabe a cada indivíduo, homem ou mulher, capturá-los em pleno voo, usando os seus próprios recursos e ferramentas” (Bauman, 2005, p. 17, 35).

No escopo dessas reflexões, este artigo pretende investigar as discursividades em torno da decisão feminina de manter os cabelos grisalhos ou brancos, em que pese a toda a pressão social existente acerca da interdição do envelhecimento para a mulher. É certo que a mídia desempenha um poderoso papel na reiteração constante dessa interdição, porquanto o discurso publicitário é uma das instâncias mais eficientes de produção e dispersão dos mais variados discursos (Lysardo-Dias, 1998).

4 O CORPO ENQUANTO MATERIALIDADE DISCURSIVA

Courtine (2013) elucida que a teorização sobre o corpo é recente, datando da virada do século XX. O autor assevera que a invenção do corpo como objeto de saber para as Ciências Humanas ocorre na esteira da efervescência cultural ocorrida no mundo entre as décadas de 1960 e 1970, sendo diretamente influenciada pela pauta de reivindicações de minorias de gênero, a exemplo do Movimento Feminista, que defendeu o lema “Nosso corpo nos pertence!” como bandeira de luta e resistência.

Através dessa bandeira, as mulheres reivindicaram para si mesmas – em detrimento do Estado e da sociedade – o poder e a responsabilidade de tomar decisões que dizem respeito aos seus corpos, as quais tocavam em assuntos até hoje polêmicos, como a questão do aborto, por exemplo.  Destarte, as mulheres falam através de seus corpos, os quais revelam em que medida as pressões sociais e imperativos da cultura à qual pertencem têm impacto sobre sua biogestão.

Como defende Foucault (2013), o poder incide sobre o corpo, que precisa ser adestrado. Nesse sentido, “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado” (Foucault, 2013, p. 02). E isso se faz através das disciplinas, as quais correspondem a “[…] métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 2013, p. 03).

Courtine (2013) aponta que as relações de poder, as quais incidem sobre o corpo, cobram dele signos. A interdição do envelhecimento para o corpo feminino, a nosso ver, constitui um desses signos.  A decisão de tingir o cabelo ou mantê-lo ao natural sob o influxo dos anos pode, inicialmente, parecer uma frivolidade, mas, na verdade, ela tem muito a dizer sobre um dos mais poderosos discursos direcionados à mulher ocidental: para ser aceita, ela necessita estar sempre jovem e bela.

Prova de que se trata de um discurso engendrado para o corpo feminino é que a percepção do fato de que a velhice se anuncia, denunciado pela aparição dos cabelos brancos, dá-se na sociedade de maneira diferente para homens e mulheres. Aqueles são frequentemente relacionados a valores positivos, como força, empoderamento e sex appeal, enquanto estas com frequência têm sua imagem associada ao desleixo, inviabilidade sexual e até mesmo ao autoabandono (Araújo, 2019).

Não obstante, o poder no corpo parece operar em uma via de mão dupla. Ao passo que ele determina desígnios do bem-viver – com regras que abrangem desde questões relacionadas à postura até a adoção de práticas que, para a mulher, podem implicar o reforço ou supressão de marcas tidas como signos de feminilidade -, também pode, na contramão desse processo, erigir signos outros que aparentemente contradizem sua positividade. Desta feita, algumas mulheres decidem não enganar o tempo, deixando-se ficar grisalhas a despeito de toda a discursividade em torno da eterna juventude a ser buscada pelas mulheres, como uma espécie de Santo Graal da feminilidade. É bem verdade, então, que, “Se o poder é forte, é porque ele produz em igual medida aquilo que ele proíbe” (Courtine, 2013, p. 16-17). O corpo é, pois, um lugar de luta e de resistência dos sujeitos.

5 A “REVOLUÇÃO GRISALHA”: AUTOAFIRMAÇÃO IDENTITÁRIA OU REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA?

Conforme Araújo (2019, p. 133), a Revolução Grisalha é “[…] uma espécie de movimento que, desde 2013, vem sendo compartilhado, pela Internet, em sites e redes sociais, qual seja, a aceitação e uso de cabelos grisalhos ou brancos pelas mulheres”. Como a Internet tem sido o principal meio de dispersão de discursos em torno do que ora se convenciona chamar de Revolução Grisalha, tomamos a decisão metodológica de pesquisar hashtags para a obtenção do corpus do presente artigo. Nossa pesquisa nas hashtags #mulheresgrisalhas e #revolucaogrisalharevelou, contudo, que desde 2005 começaram a circular na rede textos sobre essa temática, muitas vezes denominada de “Guerra Cinza”, ou “Gray War”. Também foi encontrada a denominação “Onda Prateada”.

A Revolução Grisalha marca o surgimento de uma nova tendência: o uso dos cabelos grisalhos ou brancos, na negação de uma regra estética amplamente aceita – tingir os cabelos – que visa a combater um signo diretamente ligado ao envelhecimento. Ademais, também se faz perceber um aparente paradoxo em torno dessa questão, uma vez que a sociedade ocidental valoriza para as mulheres a negação do envelhecimento e, consequentemente, a busca por mascarar a todo custo os sinais da idade.

Não se trata apenas de uma questão estética, mas também mercadológica. A indústria de cosméticos, uma das mais representativas no ramo da beleza, tem nas tinturas capilares o seu principal filão comercial (Araújo, 2019). Isso certamente justifica um investimento financeiro substancial no setor. De acordo com a Revista Exame, o mercado de coloração para cabelos está em ascensão, tendo previsto um crescimento de 30% do faturamento em 2018 (Dino, 2018). 

É fato que a sociedade brasileira – numa tendência mundial – está envelhecendo. No Brasil, as mulheres não apenas são mais numerosas, como também vivem mais. Nasri (2008) avalia que o envelhecimento da população decorre da redução da fecundidade ocorrida na década de 1960, em consequência do advento da pílula anticoncepcional e da posterior queda das taxas de natalidade a partir dos anos 1970, tendo esta última sido incrementada nos últimos anos. De acordo com o IBGE (2019), na década de 2010, estima-se que 51, 03% da população do Brasil era composta por mulheres. Dentre as quais, 7,30% tinham 65 anos ou mais. Esse número não passava de 4,01% em 1980.

Desponta dessa discussão acerca da relação do sujeito feminino com o seu corpo o fato de que cada vez mais mulheres, no Brasil e no mundo, estão atingindo a meia-idade e a velhice, sendo que, neste artigo, interessa-nos mais atentamente a primeira. Para Mori e Coelho (2004), trata-se de um importante período de transição para a velhice, marcado por questionamentos acerca da autoimagem, da produtividade, da saúde e do bem-estar social e psíquico do ser humano. No caso das mulheres, a meia-idade costuma ser vivida com mais intensidade em virtude da menopausa, que marca o encerramento da idade reprodutiva. O medo da finitude também exerce um papel considerável no curso dessas inquietações. Para as autoras:

As mudanças hormonais condicionam o processo de envelhecimento que aponta para a finitude. Um certo estranhamento em relação a si mesmas faz com que muitas mulheres tenham dificuldades em lidar com as perdas inerentes a esta fase de vida. […] alguma coisa de muito especial acontece na meia-idade das mulheres e […] algumas delas não querem falar desse tema no espaço social de nosso cotidiano. Tais questões indicavam que refletir sobre esse momento da meia-idade feminina era necessário, não devendo ser evitado, como se podia supor (Mori; Coelho, 2004, p. 176-177).

Falar de si mesmas na transição da meia-idade para a velhice e o que fazer com seus corpos no meio do caminho não é uma questão a ser evitada para muitas mulheres. Conforme Araújo (2019), foi justamente essa necessidade de se autoafirmar enquanto mulher de meia-idade empoderada que impulsionou a projeção midiática da Revolução Grisalha, quando um número crescente de mulheres passou a se utilizar das redes sociais para compartilhar suas impressões em torno do processo de assumir os cabelos brancos – o que chamou a atenção da mídia.

Não se trata de uma questão de foro íntimo, mas de um tabu. A mulher que decide trilhar esse caminho de imediato vira alvo de fortes pressões sociais e de policiamento por parte de parentes, amigos e até de pessoas estranhas, que se opõem aos significados dessa decisão. Tais impressões apontam para a existência de sete discursividades prevalentes contra as quais essas mulheres se posicionam, conforme evidencia o Quadro 01 a seguir:

Quadro 01 – Discursividades contra as quais se opõem as mulheres que se identificam com a Revolução Grisalha.

Mulheres que não tingem os cabelos…
SENSO COMUMENUNCIADOGÊNERO/FONTE
Parecem ser mais velhas do que realmente são“Claro, os amigos faziam aquela patrulha, dizendo que eu era jovem para ter os cabelos brancos. Eu sempre dizia: ‘Se eu sou jovem, então por que devo pintar o cabelo?’. O meu olhar para a beleza é outro, mais natural. E a vida é isso: a gente envelhece, normal”. Patida Mauad, blogueira. Artigo.   LIMA, Claudia. Os segredos das grisalhas. Vogue [on-line], 11 mai. 2019. Disponível em: https://vogue.globo.com/semidade/noticia/2019/05/os-segredos-das-grisalhas.html. Acesso em: 21 jul. 2019.
São desleixadas“Meus cabelos brancos significam minha atitude positiva diante da passagem dos anos e o enfrentamento do ‘machismo invisível’ que habita a mente de muitas mulheres. Muitas amigas me disseram que ‘cabelo branco nos homens é um charme, mas nas mulheres passa imagem de desleixo’. Acredito que toda idade tem sua beleza, eu curto meus cabelos grisalhos desde os primeiros fios”. Vitória Régia, fisioterapeuta.Artigo.   AZEVEDO, Flávia. Sete mulheres que se assumiram grisalhas e os motivos dessa escolha. QuantA, Correio [on-line], 18 jan. 2019. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/sete-mulheres-que-se-assumiram-grisalhas-e-os-motivos-dessa-escolha/. Acesso em: 21 jul. 2019.
Desistiram de si mesmas“Adotar um cabelo grisalho, que é fora de um padrão constituído e hegemônico, significa um recado de beleza, de estima, assertivo, de que somos muito mais do que nos disseram”. Naíra Gomes, antropóloga.Artigo.   MULHERES GRISALHAS LISTAM DORES E DELÍCIAS DE ASSUMIR O CABELO BRANCO. Gshow: Conexão Bahia, 03 jun. 2019. Disponível em: https://gshow.globo.com/Rede-Bahia/conexao-bahia/noticia/mulheres-grisalhas-listam-dores-e-delicias-de-assumir-o-cabelo-branco.ghtml. Acesso em: 21 jul. 2019.
São sexualmente desinteressantes“Na minha santa ingenuidade, não atinava que estava afrontando um tabu. Entendi que a mulher não pode ser grisalha, mas no homem isso é charme e distinção. Existem brancos azulados, bem tratados, que inspiram respeito e até veneração. São os da matriarca, da veneranda chefe de família que ostenta um poder, mas não os da sexualidade”. Anna Veronica Mautner, psicanalista.Artigo de opinião.   MAUTNER, Anna Veronica. A feminilidade não é branca. Folha de São Paulo [on-line], Equilíbrio, 27 jan. 2005. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq2701200501.htm. Acesso em: 21 jul. 2019.
São descartáveis“Assumir o cabelo grisalho é um processo profundo e nada fácil. No início, fiquei com medo de ser descartada – mesmo trabalhando com moda – pelos colegas jovens e pela própria sociedade. Porque você sabe: uma cama branca é linda e gostosa; uma camisa branca é linda e chique; uma mulher de cabelo branco é feia e velha”. Virgínia Bohrer, artista plástica e designer têxtil.Artigo.   LIMA, Claudia. Os segredos das grisalhas. Vogue [on-line], 11 mai. 2019. Disponível em: https://vogue.globo.com/semidade/noticia/2019/05/os-segredos-das-grisalhas.html. Acesso em: 21 jul. 2019.
Estão tentando provar algo para alguém“Meu cabelo […] é para mim, hoje, uma obra de arte. Através dele percebi o quanto tentei ser outra pessoa para sentir a falsa sensação de aceitação. O quanto desconhecia o meu poder e carregava uma dor por não me aceitar. Muitas lembranças de rejeição. Até o corte. Aquele certeiro. No toco. E o renascimento de aceitar quem sou. Reconhecer que mesmo não tão convencional há espaço para mim. E sustentar essa energia é a grande magia da vida”. Thaís Carvalho, terapeuta holística e administradora.Artigo.   AZEVEDO, Flávia. Sete mulheres que se assumiram grisalhas e os motivos dessa escolha. QuantA, Correio [on-line], 18 jan. 2019. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/sete-mulheres-que-se-assumiram-grisalhas-e-os-motivos-dessa-escolha/. Acesso em: 21 jul. 2019.

Fonte: Elaboração própria.

Os discursos dessas mulheres são representativos de uma ética do corpo feminino segundo a qual é valorizado um estilo de vida mais natural e condizente com a idade real. Para elas, é mais importante ser fiel à própria verdade do que ceder às pressões sociais em torno da imposição de que a mulher precisa ser eternamente jovem e que sua beleza depende disso. Uma delas fala do “machismo invisível” de que se reveste o tratamento da questão, já que a sociedade costuma lançar um olhar positivo3 para os homens grisalhos. Outro aspecto interessante é que a profissão de cada mulher foi ressaltada, fazendo as vezes de um argumento de autoridade. Não há uma dona de casa entre as entrevistadas. São todas mulheres social e economicamente emancipadas.

Trata-se de uma identidade capturada em pleno voo (Bauman, 2005), e não em um voo qualquer, mas naquele que conduz à própria finitude, naquele que pode redundar em descarte e desautorização. Como elucida Foucault (2013), o poder é positivo e inexorável. Assim como a passagem do tempo. É impossível não ter seu corpo docilizado. Não há como escapar do poder ou do tempo. Desta feita, as mulheres que assumem seus cabelos brancos têm seus corpos dóceis ao tempo e ao ritmo da natureza. É um exercício de autoaceitação e empoderamento.

No artigo intitulado Grisalhas, com orgulho, de Francine Lima, publicado na Revista Época em 2007, a autora resenha o livro Meus cabelos estão ficando brancos, da escritora norte-americana Anne Kreamer, publicado nesse mesmo ano. Na obra, Kreamer relata a sua experiência de parar de tingir os cabelos após os 50 anos, numa tentativa de superar o que Lima (2007, on-line) define como sendo “[…] um aspecto de sua personalidade que queria encobrir com a tintura”. Lima (2007) oferece o contraponto da posição defendida por Kraemer, ao trazer na íntegra o artigo Respeitem meus cabelos tingidos!, da escritora norte-americana Nora Ephron, autora da obra Meu pescoço é um horror, que fala sobre a necessidade de enganar o tempo e parecer ser eternamente jovem. Ephron é adepta do uso permanente de tintura para cabelos.

Apesar do fato de que, para Ephron (apud Lima, 2007, on-line), “[…] o que revolucionou a vida da mulher contemporânea não foi o feminismo nem a aeróbica, mas a tinta de cabelo”, o ponto de vista por ela defendido constitui uma faceta da bandeira “Nosso corpo nos pertence!” (Courtine, 2013) que é digna de nota. Algumas discursividades polêmicas emergiram desse contraponto a partir do posicionamento de Ephron, como denota o Quadro 02:

Quadro 02 – Discursividades polêmicas: tingir ou não tingir os cabelos?

FORMAÇÃO DISCURSIVAENUNCIADO
Manter os cabelos grisalhos equivale a desistir de si mesma e seria uma espécie de negação da própria feminilidade.“Fizemos um tremendo esforço para escapar desse triste desfecho precoce. Estudamos, trabalhamos, fizemos dietas, malhamos e… pintamos os cabelos”.
Meu cabelo me pertence!“Ficamos loiras, castanhas, ruivas, (quase) magras donas de nossas contas bancárias e de nossas raízes capilares”.
Cabelos grisalhos são sinônimo de perda da energia vital, e, portanto, da própria vitalidade.“Não precisamos mentir a idade porque, de fato, ao parecermos mais novas, passamos a ser encaradas como tal, cheias de energia física e mental”.
Cabelos grisalhos podem até ser atraentes para alguns homens, mas não para outras mulheres, tidas como rivais.“O problema é que não são os homens, mas as mulheres, as implacáveis juízas da nossa imagem. Mais precisamente, somos nós mesmas diante do espelho”.
Manter os cabelos grisalhos afeta a autoestima e pode significar a inviabilidade da mulher.“É a partir da satisfação ou não com o que vemos refletido que nos tornamos belas e poderosas. Ou destruídas para a vida, o amor ou o trabalho”.
Mulheres comuns não devem manter os cabelos grisalhos.“Há mulheres belíssimas com cabelos acinzentados. São todas modelos suecas e escritoras francesas”.

Fonte: Elaboração própria, com base em Lima (2007).

O contraponto oferecido por Ephron através de todos esses discursos acerca da decisão de tingir ou não os cabelos na meia-idade permitiu vislumbrar as seguintes discursividades4:

  • A mulher tem/não tem de ser/aparentar ser eternamente jovem (e bonita);
  • Assumir o envelhecimento é/não é um gesto de empoderamento (especialmente para a mulher);
  • O cabelo é meu e eu faço com ele o que eu quiser (“Nossos corpos nos pertencem!”);
  • A mulher tem de estar bonita para os homens;
  • A mulher tem de estar bonita para si mesma;
  • A mulher tem de estar bonita para as outras mulheres (competição);
  • A mulher tem de ser/parecer saudável;
  • A autoimagem da mulher é a origem do seu poder pessoal ou de sua inviabilidade (para a vida, para o amor, para o trabalho);
  • A Revolução Grisalha é/não é frívola.

Essas discursividades apontam para uma formação discursiva em comum: na sociedade contemporânea, parecer ser é mais importante do que ser de fato. Na Modernidade Líquida, conforme discutida por Bauman (2001), frente à fluidez de identidades, a aparência é mais valorizada do que a essência. É imperioso parecer ser eternamente jovem, parecer estar sempre feliz e saudável. 

O artigo intitulado Revolução na cabeça das mulheres: a moda dos cabelos brancos, de Maya Santana, publicada no blog 50 e mais: vida adulta inteligente, em 17 de agosto de 2017, é ilustrativo do esvaziamento promovido pela midiatização da Revolução Grisalha. A autora defende o ponto de vista segundo o qual a decisão de assumir os fios brancos está “fazendo a cabeça” de muitas mulheres, inclusive de celebridades mundo afora. Já no título do artigo, ela compara a tendência a uma moda que teria chegado com força total. Logo, parar de tingir o cabelo só seria uma prática aceitável ao receber o endosso de mulheres VIP.

Os cabelos brancos estão na moda. Cada vez mais mulheres optam por deixar de pintar as madeixas para assumir uma cabeleira prateada, livrando-se da escravidão das convenções estéticas baseadas no culto à eterna juventude […]. A tendência de assumir o cabelo branco chegou à Europa vinda dos Estados Unidos e se popularizou há alguns anos: mulheres de 30, 40 ou mais anos expressaram em sites como Revolution Gray (Revolução Grisalha) o fato de estarem fartas de se submeter a pinturas regulares e sofrer com os produtos químicos. […] Para Sophie Fontanel, que frequenta a Semana da Moda, trata-se, antes de mais nada, de uma questão de estética. Ela reivindica o lado militante de sua opção e, por isso, resolveu converter a própria experiência em algo interativo, ao postar regularmente fotos dos vários estágios de crescimento de seus cabelos brancos. O grisalho também conquistou estrelas como Lady Gaga e Rihanna, que pintaram seus cabelos com esse tom (Santana, 2017, on-line, grifos nossos).

Santana (2017) fala a partir da formação discursiva segundo a qual, para a mulher, assumir os fios brancos é uma decisão legítima – desde que endossada pelo mundo da moda e das celebridades, que ditaria as regras aceitáveis de como parecer ser uma mulher bem-sucedida e bem resolvida – embora velha. Afinal, é necessária uma certa dose de coragem e ousadia para render o corpo ao poder do influxo do tempo, pois “Exibir os cabelos grisalhos é ostentar a fêmea morta no corpo vivo de uma mulher: é tabu” (Mautner, 2005, on-line).

Em seu discurso, Santana (2017) procura autoridades para ancorar a permissão para envelhecer: tudo bem parar de tingir os cabelos. Não apenas para se livrar da escravidão das sessões constantes no cabelereiro, mas porque os cabelos brancos estão na moda. E não se fala de uma moda qualquer, mas sim de uma que foi importada dos Estados Unidos diretamente para a Europa, o templo sagrado da moda ocidental.

A blogueira recorre a uma mulher, Sophie Fontanel5, que decidiu parar de tingir os cabelos como um exemplo de que essa tendência é possível e viável para várias outras mulheres, mas faz questão de ressaltar que ela frequenta a Semana da Moda. Além de frequentar o evento mais badalado da moda internacional, Sophie Fontanel é midiatizada como uma autoridade no assunto por ter sido uma das primeiras mulheres consideradas bem-sucedidas a assumir os cabelos brancos. Fernandes (2018, on-line) informa que a imprensa francesa chama Fontanel de “embaixadora dos cabelos brancos”.

Santana (2017) apresenta os dois lados da moeda em torno da Revolução Grisalha que costuma dividir as mulheres: trata-se de uma questão estética ou de militância? Aparentemente, Fontanel encarna ambas. Em primeiro lugar, a escritora aprecia os cabelos brancos. Na sequência, devido ao peso da pressão social sofrida – “Para uma amiga, isso equivaleria a parar de tomar banho” (Santana, 2017, on-line) -, ganha destaque a necessidade da militância, para que outras mulheres possam se espelhar nela. Para Fontanel (apud Fernandes, 2018, on-line), trata-se de uma postura ética: “Os cabelos brancos são o fim da mentira. É uma busca da verdade em todos os aspectos da vida. É uma nudez que obriga a ser si mesmo”.

Entretanto, a força das palavras e da imagem de Sophie Fontanel parece não ser suficiente para que Santana (2017) se convença de que não é o fim do mundo romper com as tinturas. Ela, finalmente, recorre à imagem de celebridades norte-americanas consagradas da cultura Pop, Rihana e Lady Gaga, como um selo de autenticidade dessa decisão. É interessante constatar que elas ainda não apresentam os cabelos grisalhos. Foi preciso tingi-los “com esse tom”. O cabelo grisalho é, então, reduzido a um tom, a uma coloração artificial, esvaziado de todo o significado ético e militante de que ele pudesse se investir.

Como representante da causa da mulher grisalha, Sophie Fontanel afirma o desejo de se libertar do que ela denomina como “tirania da tinta” (Fernandes, 2018, on-line). É típico do sujeito pós-moderno a necessidade de se emancipar. No entanto, quando não acompanhado da capacidade de ação, a qual não dispensa a submissão a regras sociais, quando constitui apenas um reflexo da vontade de ser ou fazer alguma coisa, o desejo de liberdade esvazia-se de sentido, torna-se um slogan (Bauman, 2001). Poderemos, pois, adotar a nomenclatura “Revolução Grisalha” sem reduzi-la a esse estatuto?

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O corpo é uma materialidade discursiva, um lugar de inscrição na História. Por ser ele próprio um discurso, o corpo não é nossa propriedade, como gostaríamos que ele fosse, como gritaram as feministas – e continuam a fazê-lo até hoje. Vale dizer que “[…] o corpo é ao mesmo tempo ‘superfície de inscrição’, ‘lugar de dissociação do eu’, ‘massa em perpétua desagregação’” (Courtine, 2013, p. 18). Logo, o corpo engendra discursividades inscritas na história.

A Revolução Grisalha atende a essa tríplice conceituação. Ao parar de tingir os cabelos e fazer as pazes com o tempo e a finitude, um número crescente de mulheres em todo o mundo exibe em seus corpos verdadeiros tratados de guerra e de paz. Elas se observam com a estranheza de si mesmas, típica da meia-idade (Mori; Coelho, 2004), e tomam o partido da natureza, exibindo com orgulho as cores e gestos da fêmea morta (Mautner, 2005).

Enquanto seguem o zeitgeist, essas mulheres compartilharam suas experiências on-line. Postaram textos, fotos e vídeos, tornaram públicas suas inquietações, desconfortos e medos acerca do prenúncio da velhice. A decisão de não tingir os cabelos passa da esfera do foro íntimo para a instância da mídia, o que potencializa a circulação de uma miríade de discursos em torno da questão. Por intermédio de sua midiatização, a Revolução Grisalha torna-se um slogan (Bauman, 2001), que pode ser tanto sedutor – a ponto de fazer com que Rihana e Lady Gaga tingissem seus cabelos “com esse tom” – quanto repulsivo do ponto de vista social. Não parece mais tão revolucionária assim.

Pode-se afirmar que a Revolução Grisalha se coloca como uma atualização da bandeira feminista “Nosso corpo nos pertence!” (Courtine, 2013). Ela permanece atual, seja como um discurso de emancipação da mulher, seja como uma forma de manter e defender o establishment.

Optar por não tingir os cabelos é uma decisão que diz respeito a como se comportar perante a interdição do envelhecimento do corpo feminino. Contudo, não é facultado à mulher, nem a nenhum sujeito social, a opção de ter um corpo dócil. Afinal, como explica Foucault (2013, p. 126), “[…] em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”, e isso faz parte da condição humana. Nenhuma mulher é obrigada a tingir ou deixar de tingir os cabelos. Cabe a ela a “escolha” de a qual imperativo ceder: do tempo, da moda, da cultura.


2 O corte saussuriano, ou corte epistemológico, equivale à opção de Saussure pela língua, e não pela fala, como objeto da Linguística. Essa postura epistemológica, conhecida como Estruturalismo Triunfante (Maldidier, 2011), vicejou na Europa e nos Estados Unidos entre as décadas de 1950 e 1970, tendo exercido forte influência nos cursos de Letras no Brasil.

3 Comumente, homens grisalhos são chamados de “Silver Foxes”, ou Raposas Prateadas. Para fins ilustrativos, veja-se como se inicia uma matéria destinada a esse público: “Homens modernos e estilosos já podem se inspirar na nova moda para cabelos masculinos: os fios totalmente grisalhos estão se mostrando cada vez mais a opção de coloração favorita do momento para um visual despojado e cheio de personalidade – e as fotos da galeria podem comprovar essa teoria!”. CARLETTO, Raquel. Cabelos grisalhos em homens são tendência: saiba como cuidar dos fios brancos naturais ou descoloridos. Beleza Extraordinária, s.d. Disponível em: https://www.belezaextraordinaria.com.br/noticia/cabelos-grisalhos-em-homens-sao-tendencia-saiba-como-cuidar-dos-fios-brancos-naturais-ou-descoloridos_a17583/1. Acesso em: 4 fev. 2025.

4 Não é nossa intenção esgotar as possibilidades de delimitação das discursividades em torno do tema. Apenas no atual momento da pesquisa tais discursividades se mostraram inequívocas ao nosso olhar de pesquisadora.

5 Escritora francesa e jornalista especializada em moda que aos 53 anos decidiu assumir os cabelos brancos. A mídia on-line a retrata como uma espécie de ícone da Revolução Grisalha. Provavelmente, era a ela que Nora Ephron se referia ao afirmar: “Há mulheres belíssimas com cabelos acinzentados. São todas modelos suecas e escritoras francesas” (LIMA, 2007, on-line).  Cf. FERNANDES, Daniela. A francesa que assumiu os cabelos brancos e virou ícone contra a “tirania da tinta”. BBC News Brasil, 12 ago. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-45088425. Acesso em: 22 jul. 2019.


REFERÊNCIAS

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1Mestre em Linguística pelo Proling/UFPB. E0mail: rpaiva.consultoria@gmail.com