REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102502031920
Lázaro Fabrício de França Souza1
Thiciane de Araújo Rodrigues2
RESUMO
A proposta em tela aborda a complexidade do conceito de tradição, destacando suas diferentes abordagens e interpretações, com ênfase nas contribuições de pensadores como Lévi-Strauss, Gérard Lenclud, Eric Hobsbawm e outros. Ao invés de uma noção estática e preservadora do passado, a tradição é apresentada como um processo dinâmico e flexível, que se reconfigura continuamente no presente. Lenclud sugere que a tradição não é um simples legado, mas um campo de ressignificação constante, onde o presente também molda o passado, desafiando a ideia de imutabilidade. A ideia de invenção das tradições, proposta por Hobsbawm, reitera a perspectiva de que muitas práticas hoje vistas como tradicionais são, na verdade, recentes e criadas com objetivos políticos ou sociais, especialmente como resposta a rupturas e mudanças sociais. A memória coletiva, que seleciona e preserva determinados aspectos do passado, é fundamental na construção das tradições, conquanto seja fragmentada e sujeita a escolhas sociais e políticas. A relação entre tradição e mudança abrolha, outrossim, como tema cerne, onde a tradição não é apenas conservadora, mas está em constante adaptação, absorvendo novas práticas e significados conforme as sociedades mudam. Além disso, discute-se como a construção da tradição influencia a identidade coletiva e as relações de poder.
Palavras–chave: Tradição; memória coletiva; identidade.
Como perspicazmente apontara Lévi-Strauss alhures (2008, 9. 19), “as explicações pelas sobrevivências são sempre incompletas, pois os costumes não desaparecem nem sobrevivem sem motivo. Quando sobrevivem, é menos pela viscosidade histórica do que pela permanência de uma função que a análise do presente deve permitir esclarecer”. À vista disso, quando o tema em pauta é “tradição”, fulgura como acepção primeira, e quiçá mais frugal, uma espécie de via pela qual fatos, dogmas, comportamentos, perspectivas e congenéricos são transmitidos geracionalmente. Noutras feitas, como aponta Gomes (2014), “tradição” surge frequentemente, outrossim, como sinônimo de cultura ou como um de seus aspectos. Seria ainda, para o autor, uma dimensão temporal da cultura, se reportando à sua formação no passado ou como aquilo que uma coletividade reconhece como essencial, imprescindível para sua identidade, estabelecendo uma interface entre existência hodierna e passado. Todavia, a discussão não está dada ou abrolha simplória, como pode parecer a um olhar de soslaio, e envolve e implica valores, saberes, perspectivas de mundo, memórias, crenças, apreensão da realidade, estilos de vida.
Como assinala Gérard Lenclud (2013), antropólogo francês, os termos tradição e sociedade tradicional estão geralmente associados ao exercício da etnologia (Antropologia). Segundo esse autor, para muitos, incluindo aí os antropólogos, a tradição seria não apenas o “pão de cada dia” dos etnólogos, mas se destacaria também como marca distintiva de suas atividades. Entrementes, Lenclud destaca que a frequência no emprego de certas palavras – quer seja na linguagem cotidiana ou nas Ciências Sociais – é inversamente proporcional à clareza de seu conteúdo, cuja utilização se baseia em parca ou nenhuma reflexão. A ideia de tradição encontra-se nesse bojo. Com efeito, Lenclud postula que o termo “tradicional”, da forma como é utilizado, está eivado de inconvenientes e contribui para a consolidação de um quadro de referência intelectual que se constitui sobremaneira de “oposições binárias” (tradição/mudança, sociedade tradicional/sociedade moderna), trazendo a reboque um grande problema ao se atribuir a tais oposições um valor meramente genérico.
Sob o prisma de Lenclud,
A tradição do etnólogo confunde-se, na maioria das vezes, com a tradição do senso comum. Ora, quem diz senso comum diz, na realidade, cultura particular, a nossa no caso. A tradição do etnólogo inscreve-se em uma representação cultural, isto é, convencional (de forma alguma evidente), do tempo e da história: a representação de um tempo linear, de uma história em que o passado é pensado como estando atrás de nós e sempre subsumindo-se em um presente novo. (LENCLUD, 2013, p. 150)
Em seguida, Lenclud infere que essa distinção, feita sem muita ponderação, ganha vulto a partir de uma série de contrastes entre passado e presente, estático e dinâmico, continuidade e descontinuidade, e inscreve-se concomitantemente em uma tendência de confundir a história com a mudança, “como se a persistência no tempo de um estado de fato não fosse mais, também ela, histórica. Apenas a mudança faria a história”. (LENCLUD, 2013, p. 150). O esforço de Lenclud focaliza a desconstrução dessa noção considerada por ele enviesada e pouco explicativa de “tradição”. Nesse empreendimento crítico, o francês apresenta a noção de tradição fazendo referência à ideia de uma posição e de um movimento no tempo.
A tradição seria um fato de permanência do passado no presente, uma sobrevivência em obra, o legado ainda vivo de uma época; contudo, de uma época esgotada. Seria algo de antigo, por suposto conservado relativamente sem mudança, e, por certas razões e segundo certas modalidades, objeto de transferência para um novo contexto. A tradição seria o antigo persistindo no novo. (LENCLUD, 2013, p. 151)
Desse modo, essa primeira acepção da noção de tradição como objeto que se desloca do passado para o presente denota plena coincidência com a imagem que se faz habitualmente do trabalho antropológico sobre a tradição, notadamente nas sociedades ditas modernas. Nesse direcionamento, seria missão do antropólogo:
coletar esses elementos do passado, ainda observáveis no presente e formando de alguma maneira patrimônio, e explicar como ou por que continuam a ser conservados, como ou por que ainda comportam um efeito social e fazem sentido. (LENCLUD, 2013, p. 151)
Destarte, a tradição não transmitiria o passado em sua integralidade, mas operar-se-ia por meio dela uma “crivagem”, sendo a tradição o produto dessa triagem. Associa-se, ainda, à ideia de tradição, nesse levantamento “lencludiano”, a representação de certo conteúdo que denota uma relevante mensagem, com significância cultural e força ativa, ensejando uma “predisposição à reprodução”. Tem-se como patente que a noção de tradição envolve um determinado tipo de transmissão, para além de uma inscrição e circulação no tempo de uma mensagem plena de sentido, conquanto compita pontuar que, conforme Lenclud, nem tudo o que se transmite se transmuta necessariamente em tradição; nem tudo o que sobrevive ao passado é, por conseguinte, “tradicional”.
Numa terceira acepção apresentada, Lenclud afirma que, em generalidade, pode-se dizer que é “tradicional” o que é transmitido de “geração em geração”, por uma senda majoritariamente não escrita, onde a palavra falada está em primeiro lugar, e o exemplo aparece como ato importante. Em resumo, numa perspectiva crítica, Lenclud chama a atenção para o fato de que essa noção de tradição, que muitas vezes aparenta ser natural e que se impõe “espontaneamente ao espírito”, associa, exempli gratia, três ideias distintas e relativamente incoerentes entre si: “a de conservação no tempo, a de mensagem cultural e a de modo particular de transmissão.”. Para ele, cada um desses três elementos de definição se assenta em equívocos, uma vez que nenhum deles define com rigor um atributo de tradicionalidade, ou seja, “uma propriedade exclusiva de que seriam dotados os fatos ditos tradicionais”. (LENCLUD, 2013, p. 152).
Nessa mesma pegada, em diálogo crítico com Pouillon, Lenclud argui que todos os objetos culturais sofrem transformações. A realização de uma tradição nunca se mostra como a cópia idêntica de um modelo, porquanto sempre contemple certa capacidade e possibilidade de variação. Não é possível, exprime Lenclud, mensurar assertivamente o “grau” de tradicionalidade ou de sua mudança/ruptura.
Se falta um ingrediente, que seja substituído sem hesitação por outro: não se exprime, com isso, o sentimento de faltar à tradição. Ela não tem o rótulo inflexível, o protocolo imutável. Em resumo, a tradição, supostamente tomada como conservação, manifesta uma singular capacidade de variação: possibilita uma impressionante margem de manobra para aqueles que se servem dela (ou a manipulam). Como diz Boyer, “a maioria dos etnólogos, mesmo convencidos da equação tradição=conservação, evitam afirmar que haja conservação literal dos objetos culturais chamados tradicionais”. Ora, como se observa, a tarefa de calcular uma taxa de transformação (ou de conservação) é absurda, como também é desprovida de sentido a fixação de um limite que, respeitado, atestaria uma permanência e, ultrapassado, denotaria a presença de mudança. As ciências da cultura não dispõem de barômetros.
Em significativo alinhamento nessa direção, Lévi-Strauss pode ser arrolado como afiançador, na medida em que assina, ao analisar a figura do “papai noel” e as festas de “natal”, que:
Assim, fundem-se e refundem-se elementos muito antigos, introduzem-se novos, encontram-se fórmulas inéditas para perpetuar, transformar ou reviver usos de velha data. Não há nada de especificamente novo – sem jogo de palavras – no renascimento do Natal. (LÉVI-STRAUSS, 2008, P. 21)
É Candau (2011), ao falar de memória e identidade, quem também apresenta contribuição para essa reflexão, indicando que mesmo que as lembranças se valham da mesma fonte, a “singularidade” de cada cérebro humano faz com que eles não percorram necessariamente o mesmo itinerário.
Os atos de memória decididos coletivamente podem delimitar uma área de circulação de lembranças, sem que por isso seja determinada a via que cada um vai seguir. Algumas vias são objeto de uma adesão majoritária, mas memórias dissidentes preferirão caminhos transversais ou seguirão outros mal traçados. Assim, o compartilhamento memorial será fraco ou quase inexistente. (CANDAU, 2011, p. 35).
Não a esmo, Ecléa Bosi (1994, p. 39) registra com a argúcia que lhe é característica que “a memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento”. Utilizando-se de Halbwachs, a psicóloga brasileira (1994, p. 55) expõe que há uma imbricação entre a memória da pessoa à memória do grupo. A memória do grupo, por conseguinte, está amarrada à esfera maior da tradição, que por sua vez é a “memória coletiva” de cada sociedade. Isto posto, Candau (2011, p. 50) mostra que mesmo as representações atinentes a tais atos de memória que são corretamente comunicadas e transmitidas, não encontram a garantia de seu compartilhamento. A memória coletiva, portanto, à mesma feita da identidade da qual ela é provisão, “não existe se não diferencialmente, em uma relação sempre mutável mantida com o outro”.
O antropólogo Guilherme O. do Valle (2012, p. 92) em assertiva a seguir apresenta análoga compreensão, em diálogo com autores como Candau e Pollak:
Na vida social, as formas de manutenção e de permanência devem ser consideradas em articulação direta com as possibilidades de mudança e de recriação. Os membros dos grupos étnicos, tais como os indígenas ou os quilombolas, as comunidades religiosas e políticas, e mesmo os movimentos sociais, como os sexuais ou aqueles ligados à saúde/doença, entre os quais os grupos de ajuda mútua, trabalham, constroem e reconstroem ativamente sua memória e suas identidades, constituindo culturalmente certa estabilidade de suas próprias formas de entendimento. Trata-se de uma estabilidade que pode ser redimensionada, contestada ou disputada, tendo como base as relações com outros grupos sociais, que trabalham igualmente suas próprias memórias e identidades. Os antropólogos, portanto, têm assinalado, nos casos quer da memória, quer da identidade e da subjetividade, os usos e investimentos da construção cultural da permanência em estreita articulação com as ambiguidades que são criadas na vida social, imprimindo ao que é entendido pelas pessoas como estável, ou mesmo construído como imutável, a marca igualmente vivida da mudança.
Eric Hobsbawn, na introdução de obra organizada juntamente com Terence Ranger, por sua feita, considera que mesmo as “tradições” que parecem ou são consideradas antigas podem, amiúde, ser consideravelmente recentes, quando não até mesmo “inventadas”.
O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez. (HOBSBAWM & RANGER, 1984, p.9)
Para este historiador britânico (1984), cujos apontamentos apresentam razoável paralelo com as formulações de Gérard Lenclud, o objetivo primordial, nesse diapasão, não é estudar as chances de sobrevivência, mas sim o modo como as tradições surgiram e se estabeleceram, ao passo em que nem todas essas tradições perduram. Por “tradição inventada”, Hobsbawn entende um conjunto de práticas, geralmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas. Essas práticas, de natureza simbólica ou ritual, intentam inculcar certos valores e normas de comportamento por meio da repetição, implicando uma continuidade em relação ao passado. Na medida em que há referência a um passado histórico, as “tradições inventadas” se caracterizam por estabelecer com esse passado uma continuidade artificial. Em síntese, sob a pena do autor,
[…] são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelece seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória É o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social que torna a “invenção da tradição” um assunto tão interessante para os estudiosos da história contemporânea. (HOBSBAWM & RANGER, 1984, p.10)
Eric Hobsbawn (1984) destaca outro ponto chave na formulação de seu arcabouço: a ideia de “tradição” se diferencia de “costume”, uma vez que é a invariabilidade o objetivo e a característica das “tradições”, incluindo aí as inventadas. O passado forjado ou real a que as tradições apontam implicam práticas fixas, formalizadas, como a repetição. Já “costume” teria a “dupla função de motor e volante”, não obstando as inovações e podendo mudar em certa medida, embora estorvado pela exigência de não parecer incompatível ou diferente ao precedente. Percebe-se, portanto, uma imbricação, “Sua função, diz Hobsbawn (1984, p. 10), é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história”. Hobsbawn estabelece igualmente uma segunda diferença entre “tradição” e “convenção ou rotina”. Estas não possuem, destaca ele, nenhuma função simbólica nem ritual importante, apesar de poder adquiri-las eventualmente. A invenção das tradições é um processo de formalização e ritualização, cujo delineamento é traçado pelo passado, mesmo que tão somente pela imposição da repetição.
Provavelmente, não há lugar nem tempo investigados pelos historiadores onde não haja ocorrido a “invenção” de tradições neste sentido. Contudo, espera-se que ela ocorra com mais frequência: quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais as “velhas” tradições foram feitas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis; quando as velhas tradições, juntamente com seus promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptação e da flexibilidade; ou quando são eliminadas de outras formas. Em suma, inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta. (HOBSBAWM & RANGER, 1984, p. 11)
Mais adiante, o autor imprime que a utilização de elementos antigos na formulação de novas tradições inventadas sempre eclodem “para fins bastante originais”, embora não se ponha a analisar até que ponto as ditas novas tradições podem se utilizar de velhos elementos, serem forçadas a ampliar vocabulário simbólico ou a inventar novas linguagens e acessórios. De todo modo,
pode ser que muitas vezes se inventem tradições não porque os velhos costumes não estejam mais disponíveis nem sejam viáveis, mas porque eles deliberadamente não são usados, nem adaptados. Assim, ao colocar-se conscientemente contra a tradição e a favor das inovações radicais, a ideologia liberal da transformação social, no século passado, deixou de fornecer os vínculos sociais e hierárquicos aceitos nas sociedades precedentes, gerando vácuos que puderam ser preenchidos com tradições inventadas. (HOBSBAWM & RANGER, 1984, p.16)
Por outro viés, Hobsbawn (1984) argumenta que é preciso evitar algumas formas de raciocínio: a primeira é inferir que formas mais antigas de comunidade e autoridade, bem como as tradições a elas associadas, eram deveras rígidas e, em virtude disso, obsoletas se tornaram; a segunda é associar o irrompimento das “novas” tradições se dando em função de uma incapacidade de utilizar ou adaptar as velhas tradições.
O autor (1984) traz uma síntese com algumas observações gerais acerca das “tradições inventadas” desde a Revolução Industrial, a partir de três categorias superpostas:
a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e c) aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento. (HOBSBAWM & RANGER, 1984, p. 18)
Muito embora as tradições dos tipos b) e c) tenham sido inventadas, é possível pressupor que as que simbolizam ou estabelecem a coesão social, ou mesmo as condições de admissão tangentes a um grupo ou à comunidades artificiais ou reais (as tipo a) é que prevaleceram. As demais funções podem ser tomadas como derivadas ou implícitas de um “sentido de identificação”. Aponta a “nação” como ilustração. Ou seja, ao cabo, tal sentido de identificação se relaciona a uma “comunidade” e/ou às instituições que exercem representatividade, expressão ou função simbólica.
Para Bauman (2000), tradição se refere a uma situação opcional, e desperta a atenção mormente quando tem-se que optar por uma forma de conduta dentre outras tantas “possíveis, plausíveis e factíveis, sabidas ou adivinhadas”. É uma questão, por consequência, de escolha, acima de tudo, embora igualmente de raciocínio, pensamento, justificação. Bauman aventa Eric Hobsbawm mostrando ter sido o historiador que pautou o vocabulário com o conceito de “tradição inventada”:
os que aspiravam à liderança política de comunidades ainda informes comumente inventavam, como mostrou Hobsbawm, um passado comum que a seu ver mantém a comunidade unida e força essa união. Pegavam argumentos do passado para amarrar o futuro e o fato de não haver passado de onde extrair argumentos que se encaixassem no seu projeto não era obstáculo para eles; afinal, o que importa são o presente e o futuro comuns; a única importância de um passado comum é modelar o presente e o futuro e manter o curso com um pouco mais de facilidade. A “invenção”, porém, marca a origem apenas das tradições escolhidas. Em certo sentido, toda tradição, pelo menos toda tradição em nosso tipo de sociedade, tem que ser inventada e não pode ser senão inventada.
Inclusive, é possível observar, sob a verve de Hobsbawn, clara diferença entre as práticas “antigas” e as “inventadas”. As primeiras, para ele, eram práticas sociais específicas e com grande coercitividade. As inventadas esboçavam uma tendência a serem gerais e vagas no que concerne à natureza das obrigações, direitos e valores que pretendiam prescrever e incutir nos membros de um grupo determinado, tais como: “lealdade”, “dever”, “patriotismo”, “espírito escolar”, dentre outros. Entretanto, a despeito do conteúdo do patriotismo britânico ou norte-americano, por exemplo, fosse mal definido, segundo Hobsbawn (1984, p. 20), embora habitualmente detalhado em comentários relacionados a certas “ocasiões rituais”, “as práticas que o simbolizavam eram praticamente compulsórias”:
como, por exemplo, o levantar-se para cantar o hino nacional na Grã-Bretanha, o hasteamento da bandeira nas escolas norte-americanas. Parece que o elemento crucial foi a invenção de sinais de associação a uma agremiação que continham toda uma carga simbólica e emocional, ao invés da criação de estatutos e do estabelecimento de objetivos da associação. A importância destes sinais residia justamente em sua universalidade indefinida[…].
Voltando a Lenclud, essa concepção da tradição como mensagem cultural implica expor que as práticas e os enunciados observados e registrados pelos antropólogos não são necessariamente tradições, mas, sim, “expressões da tradição”.
Um mito, um ritual, um conto, um objeto constituiriam menos objetos tradicionais enquanto tais do que manifestações de representações, de ideias e de valores, que seriam, apenas eles, a tradição. Esta estaria escondida por detrás das palavras e dos gestos, orientando-os sub-repticiamente, mas permanecendo sempre a decifrar. […] A tradição seria esse núcleo duro, imaterial e intangível, em torno do qual se ordenariam as variações. (LENCLUD, 2013, p. 154).
Assim sendo, lembra Lenclud, a tradição, numa sociedade, seria o que, seria o que se reproduz geracionalmente por intermédio tão somente da “memória oral”. A memória se ergue aqui como elemento substantivo e cerne. Joël Candau (2011, p. 44) externaliza que uma “memória forte” é uma memória organizadora, no entendimento de que ela perfaz uma dimensão alentada da estruturação de um grupo, bem como da representação que o grupo terá de sua própria identidade.
Sumariamente, Gérard Lenclud conclui que as acepções de tradição que a tomam a partir de mero fato de permanência no tempo, como mensagem cultural imersa nas práticas ou como forma específica de transmissão, não tornarão possível distinguir com razoabilidade entre “fatos tradicionais e outros que não o seriam, nem de perceber onde se situariam exatamente os mecanismos de sua perpetuação. Definida nesses termos, a tradição não desvela nem sua natureza nem as fontes de sua autoridade social”. (LENCLUD, 2013, p. 156). Retomando o diálogo com Boyer e Pouillon, Lenclud (2013, p.157), na função, então, de esclarecer em que consistiria a tradição no presente, assinala que toda tradição se constitui do presente para o passado, elaborada como “retroprojeção” e instituindo uma “filiação inversa”: “ao contrário dos pais engendrarem os filhos, os pais nascem dos filhos. Não é o passado que produz o presente, mas o presente que molda o passado”. A tradição, nesse desenho intelectual lencludiano, é um “processo de reconhecimento de paternidade”.
Lenclud (2013), ao crepúsculo de seu texto, se questiona acerca de qual seria a diferença entre o “tradicional” das sociedades de tradição oral e o “tradicional” das sociedades de tradição escrita, debatendo o elemento da escrita e suas implicações. Evoca o exemplo da ortografia e a resistência francesa em reforma-la sob o argumento de não eclipsar ou comprometer a “perenidade da cultura francesa”. A ortografia seria um meio de conservação dos “valores do passado”, se configurando enquanto tradição no sentido de mensagem cultural. Em seguida, contra-argumenta reiterando as inconsistências dessa forma de compreensão de tradição e sentencia que quanto mais uma sociedade dispõe de meios para reproduzir com exatidão o passado, mais apta está a proceder com a mudança. No sentido inverso, todavia, quanto menos uma sociedade dispõe dos instrumentos e da preocupação referente a conservação do passado em termos literais, menos é capaz de empreender mudanças ou de projetá-la. A tradicionalidade é uma condição da mudança. Na ausência de tradição devidamente registrada, a tendência é a manutenção da tradição.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de consideração derradeira, e na esteira de Lenclud (2013), pode-se dizer que a proficuidade geral de uma tradição é avalizar o presente em relação ao que ele é, justificando sua situação contemporânea. A tradição de uma cultura se mostra principalmente através de suas referências, funcionalidade, seus testemunhos de moralidade, seu legado, sua herança, de tal modo que sua pujança não se mensura pela “régua da exatidão” diante do exercício de reconstituição da história. A tradição diz o “verdadeiro” mesmo quando profere o “falso”, buscando enunciar “proposições sustentadas”, tomadas pela coletividade, consensualmente, como verdadeiras, sem necessariamente corresponder a fatos reais, e constituindo parte vultosa dos elementos identitários e da “memória coletiva”.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Tradição e autonomia no mundo pós-moderno. In: Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 136-146.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CANDAU, Joël. Memória e identidade: do indivíduo às retóricas holistas. In: Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.
HOBSBAWM, E. Introdução: A invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. (Org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
LENCLUD, Gérard. A tradição não é mais o que era… Sobre as noções de tradição e de sociedade tradicional em etnologia. História, histórias, Brasília, vol. 1, n. 1, p. 148-163, 2013.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício do Papai Noel. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
VALLE, Carlos Guilherme O. do.Identidade e subjetividade. In: Antônio Carlos de Souza Lima (Coord.). Antropologia & Direito: temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de Janeiro/RJ: Contra Capa/Laced/Associação Brasileira de Antropologia, 2012.
1 Sociólogo e Professor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido – UFERSA. Líder-coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Humanidades e Saúde do Semiárido – NEPHUS. Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Universidade Federal Rural do Semi-Árido – UFERSA
E-mail: lazaro.souza@ufersa.edu.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3820-9024
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7589849232662157
2 Graduada em Letras Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.
Membra do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Humanidades e Saúde do Semiárido – NEPHUS
E-mail: thicianearaujo0@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9962813798235646