REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th1025012711226
Melissa Soares Pimentel1
RESUMO
O presente trabalho cuida de problemática envolvendo a questão de gênero e sexualidade que vem se exteriorizando de forma recorrente no ambiente escolar e para as quais inexistem diretrizes específicas de como proceder. Desta forma, surge- nos a questão: a escassez de parâmetros legais específicos sobre o uso do banheiro por estudantes trans justifica o óbice ao exercício dessa atividade fisiológica básica nos espaços escolares? No âmbito geral, é o que se pretende esmiuçar através de pesquisa com abordagem qualitativa, com pesquisa bibliográfica, documental e estudo de casos. O exame de jurisprudências recentes e artigos científicos sobre o tema embasaram as conclusões oriundas das análises realizadas. Ademais foram observados os dispositivos legais sobre a temática de gênero, sexualidade e educação o que nos levou ao entendimento de que a autodeterminação de gênero não pode ser um direito abstrato e a justiça brasileira não pode mais protelar as decisões que estabeleça uma normativa específica, com um entendimento jurídico consolidado sobre o tema.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Sexualidade; Educação; Parâmetros legais.
INTRODUÇÃO
O presente artigo cuida de problemática que vem se exteriorizando de forma recorrente nas escolas, onde passou a ser contumaz situação hermética envolvendo gênero e sexualidade para as quais inexistem diretrizes específicas de como proceder.
Trata-se da utilização, aliás, o óbice à utilização de banheiro por estudantes trans, que agem de acordo com as normas sociais relacionadas ao gênero oposto ao que lhe foi designado no nascimento. Situação esta, de onde sobressai à seguinte questão: a escassez de parâmetros legais específicos sobre o uso do banheiro por estudantes trans justifica o óbice ao exercício dessa atividade fisiológica básica nos espaços escolares?
No âmbito geral, é o que se pretende esmiuçar através do método qualitativo com pesquisa bibliográfica, documental e estudo de casos. O exame de jurisprudências recentes e artigos científicos sobre o tema embasaram as conclusões oriundas das observações feitas. Ademais foram analisados dispositivos legais sobre a temática de gênero, sexualidade e educação.
A pesquisa compreendeu, de início, um breve contexto das transformações sociais no que tange gênero e as sexualidades, em contraponto ao período de retomada do conservadorismo no país, pois é sabido que no recente contexto político, o Brasil vai a contramão dos preceitos fundamentais previstos constitucionalmente que elevam o direito à diferença a status de garantia fundamental.
É o que se extrai dos estudos de Furlan e Carvalho (2019), que prenunciam a retomada do poder pela extrema direita, que se imbui de dogmas religiosos e argumentos morais para justificar suas posturas retrógradas na regulação de políticas públicas e dos direitos de minorias sociais.
Também foi sobrepujado um bosquejo legislativo, onde se destacou que em que pese não haver disposição legal em específico e em vigência sobre o uso do banheiro por pessoas trans, é possível encontrar sustentáculo na legislação pátria que resguarde o uso.
Cuida-se dos princípios que asseguram o respeito à diversidade, à igualdade e ao inalienável respeito à dignidade humana, presentes na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Princípios de Yogyakarta e Plano Nacional da Educação.
Analisou-se também um caso concreto de origem do Foro de Matão- SP, julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo-TJ/SP, Estado onde se desenvolve esta pesquisa, onde fica demonstrado que os direitos e garantias fundamentais supracitados, são condições suficientes para a garantia de acesso às instalações sanitárias de acordo com o gênero que as pessoas se identificam.
E, antes de passar para as considerações finais, revelou-se que a questão também perpassa pela garantia da implantação e implementação de políticas públicas nos âmbitos sociais, de saúde, de educação, de cultura e de
trabalho digno. Necessitando de ações que possibilitem o diálogo sem violência, sem julgamentos, sem violação da dignidade humana alcançando setores públicos, privados e sociedade civil.
1 Escola, gênero e sexualidade: breve contexto da problemática interdisciplinar envolvendo o uso do banheiro por estudantes trans.
Das releituras de Paulo Freire feitas pelos autores Schram e Carvalho (S/D) na obra “O Pensar Educação em Paulo Freire: para uma Pedagogia de mudanças”2, extrai-se um conceito singular sobre a escola como um lugar de trabalho, de ensino, de aprendizagem. Um lugar em que a convivência permita estar continuamente se superando, porque a escola é o espaço privilegiado para pensar. Só assim, consoante os autores, a escola apresenta-se como instância da sociedade. (SCHRAM e CARVALHO, S/D in FREIRE, 1975)
Nesse enquadramento, Schram e Carvalho (S/D) destacam importantíssima lição de Paulo Freire de que “não é a educação que forma a sociedade de uma determinada maneira, senão que esta, tendo-se formado a si mesma de uma certa forma, estabelece a educação que está de acordo com os valores que guiam essa sociedade” (SCHRAM e CARVALHO, S/D in FREIRE, 1975, p. 30). Segundo os autores, com base no discorrido, Paulo Freire nos convida a reconhecer a presença do oprimido e do opressor, ao que alerta-nos sobre a necessidade (e urgência) dessa praxis, inicialmente pela libertação do opressor que reside em cada um para, então, conseguirmos pela marcha popular libertar todos os homens. (SCHRAM e CARVALHO, S/D in FREIRE, 1975)
A partir de tais conceitos, que catalogam a escola como instância da sociedade e relacionam a educação de acordo com os valores que guiam essa sociedade, indaga-se: hodiernamente, no Brasil, quais os valores que guiam a sociedade, os quais a educação está de acordo?
Questionamento que se faz mister ante as inúmeras mazelas do sistema educacional brasileiro, onde focalizamos esta pesquisa naquelas que envolvem gênero e sexualidade, especificadamente, a utilização de banheiro por estudantes trans.
2 SCHRAM, S. C.; CARVALHO, M. A. B. O pensar educação em Paulo Freire – para uma Pedagogia de mudanças. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/852-2.pdf. Acesso em: 20 abr. 2024.
Isso porque, são contumazes os relatos de estudantes trans impedidos por funcionários e educadores de utilizar o banheiro das escolas que frequentam de acordo com o gênero que se identificam.
Citamos, a título de exemplo, o infortúnio vivenciado pela estudante trans Michelly Almeida3, de 17 (dezessete) anos, impedida de utilizar o banheiro feminino da Escola de Referência em Ensino Médio Euridice Cadaval Gomes em Itapissuma, na Região Metropolitana do Recife-PE. Segundo a estudante, ela foi instruída por funcionário administrativo a sair do banheiro, sob o argumento de que era homem e não poderia estar ali. Ressaltou que o diretor também tentou “conscientizá-la” de seu “erro”, aduzindo que biologicamente a estudante era homem e que estava fazendo uma coisa errada.
O impedimento relatado é recorrente e parece ter sustentáculo legal, como se existisse uma disposição em lei que proibisse expressamente o uso do banheiro de acordo com o gênero que as pessoas se identificam. Todavia, não há disposição legal nesse sentido. Nem a favor, nem contra. O que existe, são projetos de lei.
Há projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados Federais, que proíbe a instalação e a adequação de banheiros, vestiários e assemelhados na modalidade unissex, nos espaços públicos, estabelecimentos comerciais e demais ambientes de trabalho. Trata-se do PL 4019/2021, de autoria do deputado federal Júlio Cesar Ribeiro – REPUBLICANOS/DF.
Em contrapartida, também tramita na Câmara dos Deputados Federais o PL 2431/2022 de autoria do deputado federal José Nelto – PP/GO, que estabelece a obrigatoriedade de instalação de banheiro assistencial unissex em ambientes coletivos, públicos ou privados.
3 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/10/29/estudante- trans-denuncia-homofobia-em-escola-publica-de-pernambuco.htm? Acesso em 13 de abril de 2023.
Em busca feita na plataforma “Normativas” do Ministério da Educação4, portal democrático de atos normativos de educação que visa dar transparência e otimizar a integração entre processos e diretrizes padronizados entre Conselhos de Educação, não foi localizada nenhuma referência para a busca “uso de banheiro por estudantes trans”.
No portal do Ministério da Educação foi encontrado apenas documento análogo exarado pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação- CNE, que define o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares sob o pretexto dos princípios que norteiam a legislação educacional no país e asseguram o respeito à diversidade, à proteção de crianças e adolescentes e ao inalienável respeito à dignidade humana. Trata-se da Resolução CNE/CP nº 1, de 19 de janeiro de 20185.
Ora, os mesmos princípios que norteiam a legislação educacional no país e asseguram o respeito à diversidade, à proteção de crianças e adolescentes e ao inalienável respeito à dignidade humana que asseguram a adoção do uso do nome social nas escolas através da Resolução CNE/CP nº 1, de 19 de janeiro de 2018, deveriam resguardar o uso do banheiro pelos alunos trans de acordo com o gênero que se identificam. No entanto, não é o que acontece.
De mais a mais, com as buscas legislativas sobre a temática abordada nesta pesquisa foi possível depreender que há no ordenamento pátrio certa escassez legal para situações herméticas envolvendo gênero e sexualidade experimentada no dia a dia.
E por falta de diretrizes específicas em situações tais, acredita-se que se perpetue dentro do ambiente escolar e a partir de uma atividade fisiológica básica (ir ao banheiro), uma verdadeira transfobia, que nos ensinamentos de PODESTÀ (2019) é um conceito em ascensão para designar e analisar as múltiplas violências contra pessoas trans – pessoas que vivem a transgeneridade. (p.1)
4 Disponível em: <https://www.gov.br/mec/pt-br/acesso-a- informacao/institucional/secretarias/secretaria-de-educacao-basica/programas-e- acoes/plataforma-normativas> Acesso em 13 de abril de 2024.
5 Resolução CNE/CP nº 1, de 19 de janeiro de 2018 – Define o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares.
Percebe-se através dos relatos contumazes de estudantes trans impedidos de utilizar o banheiro das escolas de acordo com o gênero que se identificam, que, na prática, nas escolas não há nenhum convite a libertação do opressor como preconizava Paulo Freire nas lições exaradas no ensaio de Schram e Carvalho (S/D).
A opressão continua e o ambiente escolar deixa de ser “um lugar em que a convivência permita estar continuamente se superando” e passa a ser um lugar de estigmas, violência e preconceitos. SCHRAM e CARVALHO (S/D).
Dessa forma, sopesando a conjuntura relatada, é possível responder ao questionamento feito no início deste tópico, que os valores que guiam a sociedade brasileira, na contemporaneidade, ainda são do conservadorismo, principalmente após a retomada do poder pela extrema direita, a partir de 2016. O recente contexto político revela que o Brasil foi a contramão dos preceitos fundamentais que asseguram a liberdade e a diversidade dos cidadãos. É o que se extrai dos estudos de Furlan e Carvalho (2019).
As autoras prenunciam de forma acertada a retomada do poder pela extrema direita, que se imbui de dogmas religiosos e argumentos morais para justificar suas posturas retrógradas na regulação de políticas públicas e dos direitos de minorias sociais. As autoras sinalizam que no Congresso Nacional, destacam-se a predominância da bancada conservadora, formada pelo agronegócio, armamento bélico, igrejas neopentecostais e católicas, interligados por um acalorado manifesto religioso contrário à ideologia de gênero.
As menções de gênero, diversidade cultural e sexual, pertencimento e desigualdades passaram a ser “apagadas” dos dispositivos legais. Nesse contexto, o legislativo contribuiu para formação de discursos de discriminação de gênero e das orientações sexuais, reiterando regras que fossem “aceitas socialmente”.
Nesta esteira, Furlan e Carvalho (2019) advertem sobre a disseminação de movimentos sociais conservadores, como Movimento Brasil Livre (MBL) e Escola sem Partido (ESP), que alinhados às investidas religiosas, passaram a propagar dispositivos de negação e controle a educação para os gêneros.
Conjectura que acarreta o que Polizel (2019) convencionou chamar o desejo “Cidadãos de bem” (p.45), fruto do “fluxo de uma pedagogia cultural que produz efeitos nos discursos sobre gêneros e sexualidades” (idem). Desejo este, produto de “cidadãos virtuosos” que, segundo o autor, ficam em suas “barracas” como num mercado, sendo “encenadores, barulhentos, gritam, esbravejam, oferecendo a cada dia uma crença nova para os apequenados, instáveis, que precisam de tais virtudes opináceas para uma boa noite de sono” (idem).
Discursos que, como o autor, acreditamos negar um importante campo de saber e de direitos subjetivos, pois negam as educações para sexualidade. Na tentativa de preservar a ordem, apelam a uma entidade mítica, que cria modelos e valores, discurso sacral, determinismos biológicos, colocando em circulação uma educação para sexualidade de acordo com sua verdade una e universal.
Destarte, não podemos desconsiderar que esses discursos são incorporados ao currículo que se pretende ensinar nas escolas. Conforme Gimeno Sacristan (2013), currículo este, compreendido como “uma seleção organizada dos conteúdos a aprender, os quais, por sua vez, regularão a prática didática que se desenvolve durante a escolaridade” (p.17).
Neste diapasão, acreditamos que a prática dialogada, por meio da reflexão social, seja o caminho, já defendido por Freire (2014), para uma educação que não deixe ninguém à margem da vida nacional. Um projeto coletivo, de responsabilidade do governo, sociedade civil, empresas e dos coletivos.
O autor salienta sobre o período histórico da transitividade que o Brasil percorre, compreendido como o choque entre os valores emergentes – que buscam se afirmar e plenificar e os valores tecnológicos, institucionais, organizacionais e sociais. Paulo Freire lutava pela transitividade crítica, capacitando o homem para um estado de mudança, de transição, que não fosse nem ingênua e nem desesperançosa. Assim argumentou:
A transitividade crítica […] a que chegaríamos com uma educação dialogal e ativa, voltada para responsabilidade social e política, se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de explicações mágicas por princípios causais […] Pela prática do dialogo e, não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque é novo, e pela não recusa ao velho, só porque é velho, mas pela aceitação de ambos enquanto válidos. Por se inclinar sempre a arguições. (FREIRE, 2014, p.84)
É sabido que tal argumento choca-se com os moldes dominantes pretendidos à educação no país. Polizel (2019) destaca o período de preocupação com a inocência e da necessidade de desenvolvimento de uma nova escrita e interpretação segundo o evangelho, para a sexualidade. O apelo não é apenas para moral da educação, mas de uma hibridização dessa modalidade servil com a elaboração de documentos administrativos- legislativos.
Desse modo, o autor, tal como Furlan e Carvalho (2019), ressalta a prática da supressão dos termos gênero, diversidade sexual dos planos de educação, ocasionando uma ausência de aportes legais que garantam as discussões sobre a temática.
Situação que reverbera a premente necessidade de espreitar as transformações sociais e romper com a ordem fixa das normas e com os paradigmas de desigualdade que estão se instalando no país. Neste ângulo, ressai a importância de um parâmetro educacional legal que oriente os educadores a acompanhar o ciclo mutável da história, da transitividade a que se refere Freire (2014).
À vista disso, somos favoráveis à percepção de Furlan e Carvalho (2019) ao asseverar que os educadores devem contribuir para construção de saberes, de propostas, de capacidades e habilidades que ajudem a desenvolver sociedades menos totalitárias e com um olhar para diferentes projetos de vida. Ou seja, é sobrelevada a importância da educação, como também das escolas e seus educadores, nos avanços de ordem moral e na defesa da liberdade de expressão, alteridade e diversidade.
Dessa forma, verifica-se a imprescindibilidade de estabelecer um parâmetro legal para os educadores tratar sobre gênero e sexualidade, bem como, asseverar a importância e pertinência de legislações abordando essa temática, sendo ponto chave para os avanços pretendidos.
Ainda nas considerações de Paulo Freire, os autores Schram e Carvalho (S/D) assinalam:
Você, eu, um sem-número de educadores sabemos todos que a educação não é a chave das transformações do mundo, mas sabemos também que as mudanças do mundo são um quefazer educativo em si mesmas. Sabemos que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. Sua força reside exatamente na sua fraqueza. Cabe a nós pôr sua força a serviço de nossos sonhos. (SCHRAM e CARVALHO, S/D, p. 126 in FREIRE, 1975)
Nesse sentido, os autores reverberam os ensinamentos de Paulo Freire de que “a transformação da educação não pode antecipar-se à transformação da sociedade, mas esta transformação necessita da educação” (1991, p. 84). E à semelhança dos autores, reputamos que essa afirmativa, conduz a realização de uma prática pedagógica não apenas ao nível da escola, mas também, da comunidade de inserção dos sujeitos. (SCHRAM e CARVALHO, S/D in FREIRE, 1975)
2 Do panorama normativo internacional e nacional
Em que pese não haver disposição legal em específico e em vigência sobre o uso do banheiro por pessoas trans, sobretudo no ambiente escolar, com um breve bosquejo na legislação pátria é possível encontrar sustentáculo que resguarde o uso.
Cuida-se das garantias que ratificam o respeito à diversidade, à igualdade e ao inalienável respeito à dignidade humana e que sustentaram o citado uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares através da Resolução CNE/CP nº 1, de 19 de janeiro de 2018.
Comecemos por citar a famigerada Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), reconhecida por meio da Resolução nº 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, do qual o Brasil é signatário, cujos art. 1ºe 7º propugnam que:
Artigo 1º. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. Artigo 7º. Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito à igual proteção da lei. Todos têm direito à proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Vale destacar que em 2006, na Indonésia, especialistas de 25 países consignaram os Princípios de Yogyakarta6 sobre a aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Nesse encontro, o Brasil esteve representado por Sonia Onufer Corrêa, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política e co-presidenta do encontro. Dos 29 princípios estabelecidos, houve o destaque para que os Estados assegurem o “direito ao gozo universal dos direitos humanos”, o “direito à igualdade e a não discriminação” e o “direito à educação”.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ressoando o mesmo espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu preâmbulo já declama a instituição de um Estado Democrático “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. (BRASIL, 1988)
Ato contínuo, a Constituição entoa em seu art. 1º a essencialidade da “dignidade da pessoa humana” como fundamento da República Federativa do Brasil e no art.3º, por sua vez, declara que é objetivo fundamental do país “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (IV);
Nossa Constituição expressa ainda no art. 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, destacando no inciso XLI que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
Já a Lei 8.069/1990, que promulgou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ressalta que:
6 Os princípios de Yogyakarta referem-se à aplicação dos direitos humanos previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) à comunidade LGBTQIAP+. Disponível em:<Prihttp://www.dhnet.org.br/direitos/sos/gays/principios_de_yogyakarta.pdf>, Acesso em: 20 abr. de 2024.
[…] a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral (…) assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” (art. 3º ). É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (art. 4º ). (BRASIL, 1990)
Conjecturada em valores análogos, a Lei nº 9.394/1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1996), no seu art. 3º, assinala que dentre os “princípios e fins da educação” fulguram:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
[…]
IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância. […] (BRASIL, 1996)
A Lei n° 13.005/2014 (BRASIL, 2014), que aprova o Plano Nacional de Educação – PNE, com vistas ao cumprimento do disposto no art. 214 da Constituição Federal, no que lhe concerne, determina em seu art. 2º como diretrizes da educação nacional a:
[…]
III – superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação;
VI – promoção do princípio da gestão democrática da educação pública;
VII – promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do país;
X – promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.(BRASIL, 2014)
O Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos dos Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais, por meio da Resolução nº 12, de 16 de janeiro de 2015, no seu artigo 1º, também dispõe:
Deve ser garantido pelas instituições e redes de ensino, em todos os níveis e modalidades, o reconhecimento e adoção do nome social àqueles e àquelas cuja identificação civil não reflita adequadamente sua identidade de gênero, mediante solicitação do próprio interessado. (BRASIL, 2015)
Isto posto, os direitos e garantias fundamentais supracitados, são condições suficientes para a garantia de acesso às instalações sanitárias de acordo com o gênero que se identificam. Inclusive, tal sustentáculo é utilizado pelo Poder judiciário no julgamento de demandas congêneres ao tema. Conjunção que será demonstrada no tópico a seguir.
3 Do julgamento pelo Poder Judiciário
Neste tópico será demonstrado como a problemática denunciada nesta pesquisa tem sido tratada pelo Poder Judiciário, em particular pelo Tribunal de Justiça de São Paulo-TJ/SP, Estado onde se desenvolve o estudo. Abordar-se- á um caso concreto de origem do Foro de Matão, cujo processo tramitou sem sigilo de justiça, estando disponível para acesso na plataforma e-SAJ7.
Trata-se de ação de obrigação de fazer cumulada com pedido de indenização por danos morais, Processo nº1002128-41.2019.8.26.0347, ajuizada pela estudante trans Melyssa da Silva dos Santos em face do Centro Educacional e Técnico de Araraquara-CETEC- S/S.
A estudante relatou em sua peça inaugural que é transexual e possuí características físicas e usa vestimentas tipicamente femininas, não deixando dúvidas acerca de sua opção de gênero, já que havia até realizado a alteração dos seus registros (Certidão de Nascimento e RG) perante os órgãos públicos competentes, nos termos da lei, o que lhe dá o direito de ser tratada como mulher.
Assinalou que na data de 20/02/2019, ao sair do banheiro feminino, foi abordada pela responsável da ré, que, sem qualquer justificativa, solicitou que ela não mais utilizasse o banheiro feminino e passasse a fazer uso do banheiro masculino. Imbróglio que causou a estudante intenso constrangimento e insegurança, motivando-a a acionar o Poder Judiciário.
7 O portal e-SAJ é uma solução que visa facilitar a troca de informações e agilizar o trâmite processual por meio de diversos serviços WEB voltados para os advogados, cidadãos e serventuários da justiça.
A estudante, nos pedidos elevados ao Judiciário, pugnou pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor à demanda e que a instituição de ensino ré fosse obrigada, inclusive em sede de tutela, a permitir a utilização do banheiro feminino. Requereu ainda que a ré fosse condenada a indenizá-la no equivalente a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), referentes aos danos morais suportados.
Em sede de contestação, a ré, por sua vez, negou os fatos relatos pela autora e pugnou pela improcedência total da ação.
Sobreveio sentença, julgando extinto sem resolução do mérito, nos moldes do artigo 485, inciso VI, do Código de Processo Civil, o pedido referente à obrigação de fazer, restando prejudicada a tutela de urgência deferida. Julgou procedente o pedido indenizatório, para condenar a ré ao pagamento, a título de danos morais à autora, no importe de R$5.000,00 (cinco mil reais), quantia a ser corrigida monetariamente desde a data da sentença e acrescida de juros a contar da data do ilícito. Em razão da sucumbência, a parte ré foi condenada a arcar com as custas e despesas processuais.
Irresignada, a ré interpôs o recurso de apelação aduzindo que a sentença deveria ser reformada, pois a autora não teria se desincumbido do ônus de provar que o fato descrito na inicial tenha ocorrido e que a condenação adveio de mera presunção, sem base em fatos comprovados, que as testemunhas não presenciaram a situação narrada, e, portanto, não poderiam os depoimentos servirem como fundamento para a condenação.
O recurso de apelação foi julgado em sessão permanente e virtual da 35ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que negou provimento ao recurso de conformidade com o voto do relator, o Desembargador Rodolfo César Milano. O julgamento teve a participação dos Desembargadores Morais Pucci, Flávio Abramovici e Mourão Neto e ficou assim ementado:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. AUTORA TRANSEXUAL, QUE FOI IMPEDIDA DE UTILIZAR SANITÁRIO FEMININO. SITUAÇÃO CONSTRANGEDORA, QUE ENSEJOU VIOLAÇÃO A DIREITOS DA PERSONALIDADE. DANO MORAL CONFIGURADO. PRECEDENTES. “QUANTUM” INDENIZATÓRIO BEM DIMENSIONADO PELO JUÍZO “A QUO”. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
Como fundamento do julgamento o Desembargador relator, iniciou seu voto ressaltando a complexidade da questão da transexualidade sob a perspectiva da saúde:
“(…) Sexo é biológico, gênero é social. E o gênero vai além do sexo: o que importa, na definição do que é ser homem ou mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital, mas a auto percepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente. Para algumas pessoas, a vivência de um gênero discordante do sexo é uma questão de identidade; é o caso das pessoas conhecidas como travestis e das transexuais, que são tratadas, coletivamente, como parte do grupo chamado de ‘transgênero’.” (Adriana MeloTeixeira, Francisco José da Silva Nóbrega Morais, Marileide Pereira Martins Teixeira; Transexualidade e travestilidade na saúde /Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Brasília: Ministério da Saúde, 2015, fls. 85/86).
Na continuidade, destacou ainda os estudos de Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho e João Walter Nery, os quais reproduzimos a seguir:
“As expressões tão comuns manifestadas pelos trans, como: “a cirurgia não vai me fazer homem, porque sempre o fui” ou “nasci preso num corpo errado”, refletem metáforas patologizantes da inversão de gênero e da metafísica do corpo, como prisão da alma, reguladas pelos saberes médicos, religiosos e jurídicos. Essa velha questão é abordada por Bourcier (2008, p. 67) quando se refere à necessidade da despatologização, sendo a nova tendência para a rearticulação do discurso sobre a transição e a transgressão. Ela cita as exibições de Buck Angel (Loren Cameron) para mostrar que “o ‘tornar-se homem que já se é’ não coincide mais com uma simples reinteriorização, mas articula novas externalizações”, legitimando um sexo diferente, transformador e visível por meio da mídia. A “construção do gênero ou os processos de identificação são muito mais complexos do que a cirurgia” (ÁRAN, 2010, p. 276-277). A cirurgia deixa de ser condição de “determinação” do que é ser trans-homem (ou trans-mulher).” (Transexualidade e travestilidade na saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Brasília: Ministério da Saúde, 2015, fls. 28/29).
Segundo o relator, o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu em consonância com o supracitado, em análise quanto à possibilidade de alteração do prenome e do sexo no registro civil da pessoa transgênero na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275 DF – DISTRITO FEDERAL nº. 0005730-88.2009.1.00.0000, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, publicada no Diário de Justiça Eletrônico em 07/03/2019.
Ainda destacou que o excelso pretório reconheceu, ao julgar caso análogo à presente lide, a repercussão geral da questão em apreço, em decisão (pendente de julgamento definitivo) assim ementada:
“TRANSEXUAL. PROIBIÇÃO DE USO DE BANHEIRO FEMININO EM SHOPPING CENTER. ALEGADA VIOLAÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A DIREITOS DA PERSONALIDADE. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL.
- O recurso busca discutir o enquadramento jurídico de fatos incontroversos: afastamento da Súmula 279/STF. Precedentes.
- Constitui questão constitucional saber se uma pessoa pode ou não ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente, pois a identidade sexual está diretamente ligada à dignidade da pessoa humana e a direitos da personalidade.
- Repercussão geral configurada, por envolver discussão sobre o alcance de direitos fundamentais de minorias uma das missões precípuas das Cortes Constitucionais contemporâneas, bem como por não se tratar de caso isolado.” (Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, Relator Min. Luís Roberto Barroso, RE 845779 SC SANTA CATARINA, nº 0057248-27.2013.8.24.0000, DJE: 10/03/2015)
Com fulcro nessas premissas e em que pese à inexistência de lei em específico, o relator reputou ser a identificação da apelada com o gênero feminino, a princípio, condição suficiente para a garantia de acesso às instalações sanitárias destinadas às mulheres, em respeito à dignidade da pessoa humana.
E que, embora tal situação seja de difícil comprovação, por não deixar vestígio material, o conjunto probatório é farto, e permite concluir, com segurança, pela efetiva ocorrência de conduta reprovável da preposta da ré. Por essa razão, negou provimento ao recurso da parte ré, apelante.
4 A necessidade do fomento de políticas públicas
Antes de concluir as razões suscitadas neste trabalho, importante abordar mais afinco os projetos de lei mencionados nos tópicos inicias e que ainda se encontram em fase introdutória na Câmara dos Deputados, não obstante a proposição ser feita há mais de dois anos.
Ao passo que outros projetos de leis adversos tramitam com prioridade, estando prontos para pauta no Plenário, como é o caso do PL 1904/2024, que equipara o aborto legal após 22 (vinte e duas) semanas ao crime de homicídio. Situação que nos remete a necessidade pontuar a importância do fomento de políticas públicas sobre gênero e sexualidade não só nas escolas, mas no contexto geral.
Como foi dito, há projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados Federais, que proíbe a instalação e a adequação de banheiros, vestiários e assemelhados na modalidade unissex, nos espaços públicos, estabelecimentos comerciais e demais ambientes de trabalho. Trata-se do PL 4019/2021, de autoria do Deputado Federal Júlio Cesar Ribeiro – REPUBLICANOS/DF.
Neste projeto, o Deputado Júlio Cesar Ribeiro, defende que os banheiros unissex aumentam o risco de violência sexual contra mulheres e crianças e justifica a proposição argumentando que o caminho correto para reduzir o desrespeito aos direitos da população LGBTQIA+ é através da família, sem interferência de atores externos.
O PL 4019/2021 foi apensado ao PL 4036/2021, que veda a adaptação, a implantação e a utilização de banheiros públicos que determinem o livre uso de pessoas de sexos biologicamente diferentes em estabelecimentos Públicos Federais, Estaduais ou Municipais ou estabelecimentos privados de circulação, permanência ou concentração de grande número de pessoas.
De igual forma, o PL 4019/2021 foi apensado ao PL 4682/2023, que disciplina o uso de banheiros e sanitários em ambientes Privados e Públicos no Brasil. Hodiernamente, todos aguardam a designação de relator(a) na Comissão de Desenvolvimento Urbano (CDU).
Em contrapartida, também tramita na Câmara dos Deputados Federais o PL 2431/2022 de autoria do deputado federal José Nelto – PP/GO, que estabelece a obrigatoriedade de instalação de banheiro assistencial unissex em ambientes coletivos, públicos ou privados.
O PL 2431/2022, por sua vez, se consubstancia em uma proposição que visa assegurar a pais e mães direitos simples e básicos, que irão diminuir o constrangimento de deixar seu filho usar um banheiro inadequado. Destaca a frequente evolução das famílias e do meio social.
Para além da questão de gênero e sexualidade, onde reverberou-se a dificuldade de mães ou pais solos em frequentar locais de grande movimentação com filhos de gêneros opostos, foi pontuada a premência da instalação de fraldários em ambientes coletivos, não só em espaços femininos, e de banheiro assistencial unissex para proporcionar a tranquilidade e comodidade necessária para pessoas com alguma deficiência que necessitam de apoio dos pais ou responsáveis legais nas atividades fisiológicas.
O PL 2431/2022 foi apensado ao PL1565/2007, que dispõe sobre a obrigatoriedade de banheiros públicos em agências bancárias e dá outras providências e aguardam parecer do(a) Relator(a) na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF).
No contexto descrito, ressai uma reflexão importante suscitada na justificativa do PL 4682/2023, onde explanou-se que a quantidade de Resoluções emitidas por conselhos federais usurpam o Poder Originário do Legislativo. O que vem causando constrangimentos, e incorre no dever dos deputados e/ou senadores tomar a iniciativa e por lei disciplinar o assunto.
Entrementes, a disciplina do tema, que é complexo, precisa ser analisado e considerado, não só pela garantia dos direitos fundamentais, inalienáveis, ao respeito à diversidade, à igualdade e à dignidade humana e à responsabilização de quem pratica os atos discriminatórios.
A questão também perpassa pela garantia da implantação e implementação de políticas públicas nos âmbitos sociais, de saúde, de educação, de cultura e de trabalho digno. Ações que possibilitem o diálogo sem violência, sem julgamentos, sem violação da dignidade humana alcançando setores públicos, privados e sociedade civil.
Um exemplo claro dessa problemática é o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 845779, que teve repercussão geral reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 2015 (Tema 778).
Não obstante, o Plenário do Supremo Tribunal Federal – STF, em 06/06/2024, isto é, quase dez anos após reconher a repercussão geral do tema, rejeitou a análise do Recurso Extraordinário – RE 845779, por entender que o caso não envolve matéria constitucional e, portanto, não deve ser julgado pela Corte. O que gerou grande revolta.
O advogado Paulo Iotti, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, que proferiu sustentação oral pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos – ABGLT, na sessão de 2015 e participou do julgamento de 06/06/2024, em matéria publicada no site oficial do Instituto afirmou que o plenário não quis julgar o mérito, mesmo reconhecendo que o tema voltará ao STF.8
Toda a circunstância relatada só reforça a complexidade da questão, pois, além da falta de políticas públicas diretivas e urgentes sobre a tese em questão, a falta de prioridade e empenho para salvaguardar direitos, ainda resvala na cultura homofóbica da sociedade brasileira e nos representantes políticos das alas conservadoras, favorecendo a desintegração social. Adversidade que precisa ser combatida.
Conclusão
Com o estudo da problemática foi possível depreender que a escassez de parâmetros legais específicos sobre uso do banheiro por estudantes trans não justifica o óbice ao exercício dessa atividade fisiológica básica nos espaços escolares.
Malgrado não haver disposição legal em específico e em vigência sobre o uso do banheiro por pessoas trans, mormente nas escolas, com um breve bosquejo na legislação pátria é possível encontrar sustentáculo que resguarde o uso.
Cuida-se das garantias que asseguram o respeito à diversidade, à igualdade e ao inalienável respeito à dignidade humana, presentes na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nos Princípios de Yogyakarta e no Plano Nacional da Educação e que sustentaram o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares através da Resolução CNE/CP nº 1, de 19 de janeiro de 2018.
8Disponível em:< https://ibdfam.org.br/noticias/11911/STF+n%C3%A3o+avan%C3%A7a+em+recurso+de+mulher+trans+s obre+acesso+a+banheiros+p%C3%BAblicos >, Acesso em: 10 de junho de 2024.
Inclusive, é oportuno exceler que tal sustentáculo é utilizado pelo Poder judiciário no julgamento de demandas sobre o tema. É o que foi visto ação de obrigação de fazer cumulada com pedido de indenização por danos morais nº 1002128-41.2019.8.26.0347, ajuizada pela estudante trans Melyssa da Silva dos Santos em face do Centro Educacional e Técnico de Araraquara-CETEC, onde o Desembargador relator reputou ser a identificação da apelada com o gênero feminino, a princípio, condição suficiente para a garantia de acesso às instalações sanitárias destinadas às mulheres, em respeito à dignidade da pessoa humana.
Portanto, a negativa contumaz denunciada por estudantes trans impedidos por funcionários e educadores de utilizar o banheiro das escolas que frequentam de acordo com o gênero que se identificam, pode ser interpretada como uma violação a direitos e garantias fundamentais e gerar a responsabilização dos opressores.
Sublima-se que a questão aqui apresentada, em nosso entendimento, precisa ser analisada e considerada, não só pela garantia dos direitos fundamentais, inalienáveis, ao respeito à diversidade, à igualdade e à dignidade humana e à responsabilização de quem pratica os atos discriminatórios.
Compreendemos que a questão também perpassa pela garantia da implantação e implementação de políticas públicas nos âmbitos sociais, de saúde, de educação, de cultura e de trabalho digno. Ações que possibilitem o diálogo sem violência, sem julgamentos, sem violação da dignidade humana alcançando setores públicos, privados e sociedade civil.
Ações como o Projeto de Lei (PL) 5.008/20209 que proíbe expressamente a discriminação baseada na orientação sexual ou identidade de gênero em banheiros, vestiários e assemelhados, nos espaços públicos, estabelecimentos comerciais e demais ambientes de trabalho. PL este, que altera o Código de Defesa do Usuário de Serviços Públicos, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei 9.029/95, sobre práticas discriminatórias no ambiente de trabalho e, desde 2020, está em análise na Câmara dos Deputados.
9 Fonte: Agência Câmara de Notícias
Outro exemplo a ser considerado é o Recurso Extraordinário – RE 845779, que questiona se transexuais podem usar o banheiro público designado para o gênero com o qual se identificam e que começou a ser julgado em 2015 no Supremo Tribunal Federal (STF). Depois de Luiz Roberto Barroso e Edson Fachin votarem a favor, em 06/06/2024 o plenário rejeitou a análise do Recurso, pois entendeu que o caso não envolve matéria constitucional e, portanto, não deve ser julgado pela Corte.
Exemplos que expõe a complexidade da questão, pois, além da falta de políticas públicas diretivas e urgentes sobre a tese em questão, a falta de prioridade e empenho político para salvaguardar direitos, ainda resvala na cultura homofóbica da sociedade brasileira e nos representantes políticos das alas conservadoras, favorecendo a desintegração social.
O respeito à identidade de cada um é preceito básico e constitucional. Poderíamos começar por aí, corroborando a necessidade de espreitar as transformações sociais e romper com a ordem fixa das normas e com os paradigmas de desigualdade que estão se instalando no país.
Nessa lógica, ressai a importância de um parâmetro educacional legal que oriente os educadores a acompanhar o ciclo mutável da história, da transitividade a que se refere Freire (2014) e à percepção de Furlan e Carvalho (2019) ao asseverar que os educadores devem contribuir para construção de saberes, de propostas, de capacidades e habilidades que ajudem a desenvolver sociedades menos totalitárias e com um olhar para diferentes projetos de vida.
Em suma, importante redizer que “a transformação da educação não pode antecipar-se à transformação da sociedade, mas esta transformação necessita da educação” (1991, p. 84). E à semelhança dos autores, reputamos que essa afirmativa, conduz a realização de uma prática pedagógica não apenas ao nível da escola, mas também, da comunidade de inserção dos sujeitos. (SCHRAM e CARVALHO, S/D in FREIRE, 1975)
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1 Advogada. Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP. Pós- graduada em Direito Constitucional Aplicado pela Escola Paulista da Magistratura-EPM e Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Armando Alvares Penteado-FAAP. Associada do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM. Professora Especialista da Faculdade da Fundação Educacional Araçatuba-FAC/FEA.