A APLICAÇÃO DO PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO EM AÇÕES TRIBUTÁRIAS: UMA BREVE ANÁLISE DO JULGAMENTO DA ADIN 5.422/DF E DO RE 576.967/PR PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th1025012711224


Melissa Soares Pimentel1


RESUMO

O presente trabalho teve como escopo demonstrar a viabilidade e a eficácia da aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em ações tributárias, demonstrando sua contribuição no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF, ambos sob julgo do Supremo Tribunal Federal. No âmbito geral, é o que se pretendeu esmiuçar através de pesquisa com abordagem qualitativa, com enfoque em pesquisa bibliográfica e documental. No início do estudo, abordou-se a serventia do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário. Após, foi discorrido, de forma sucinta, como o Supremo Tribunal Federal promove a igualdade em direitos e obrigações entre homens e mulheres. Na finalização do estudo apontou-se a viabilidade e a eficácia do Protocolo nos julgados indicados, concluindo que a sua aplicação contribuiu para que as mulheres não sofressem com uma incidência tributária desigual.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Protocolo; Tributário.

INTRODUÇÃO

Não obstante imperar no Brasil uma Constituição comprometida expressamente com a igualdade, o país foi e ainda é palco de discrepâncias sociais reiteradas por práticas políticas, culturais e institucionais. Nesta pesquisa o enfoque foi a desigualdade de gênero, fenômeno que não é recente, tampouco inexplorado.

O estudo teve como prisma o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero editado em 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça, com o escopo de orientar a magistratura brasileira para efetivação da equidade de gênero no julgamento de casos concretos, através de um diálogo multidisciplinar que envolve os sistemas nacionais e internacionais de proteção de direitos da mulher.

De forma específica, este trabalho procurou demonstrar a aplicação do referido Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em ações tributárias, demonstrando sua viabilidade e eficácia na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF e no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR, ambos sob julgo do Supremo Tribunal Federal, externando os meios empregados pela Corte brasileira para favorecer a igualdade de gênero na tributação.

No âmbito geral, é o que se pretendeu esmiuçar através de pesquisa com abordagem qualitativa, com pesquisa bibliográfica e documental. O exame de obras e decisões sobre o tema embasaram as conclusões oriundas das análises realizadas que, de início, buscou apresentar, de forma sucinta, o que seria o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, o seu conteúdo, embasamento e serventia.

Após, foi discorrido brevemente como o Supremo Tribunal Federal, apesar de ser uma Corte composta em sua maioria por ministros homens, promove a igualdade em direitos e obrigações entre homens e mulheres. No final do estudo apontou-se sobre a viabilidade e eficácia do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF e no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR.

O que restou proeminente, em ambos os julgados, no voto do Ministro Luís Roberto Barroso, que denunciou a divisão sexual do trabalho, consubstanciada no dever de cuidado, socialmente construído e atribuído às mulheres, declarando ser inconstitucional que, em contrapartida aos cuidados dos filhos, a mulher seja penalizada com uma incidência tributária desigual.

O Ministro denunciou em seus votos a violação à isonomia sob o viés da desigualdade de gênero, potencializada pela incidência do imposto de renda sobre pensão alimentícia e da contribuição previdenciária sobre o salário maternidade. Incidência que acaba por penalizar ainda mais as mulheres, que além de criar, assistir e educar os filhos, ainda deve arcar com ônus tributários superiores ao dos homens. O que, no entendimento do Ministro (e no nosso), configura regra discriminatória que não encontra respaldo no texto constitucional.

Portanto, foi possível concluir que, além de ser possível aplicar, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em ações tributárias, sua

incidência em casos tais é eficaz, pois, ressalta o impacto da tributação sobre o gênero feminino, conferindo a discussão o status constitucional que ela merece, tal como foi feito de forma celebre pelo Ministro Luís Roberto Barroso nos casos citados.

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero

Cuida-se de um instrumento editado no ano de 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça, a partir da pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Trabalho instituído pela Portaria CNJ nº 27, de 2 de fevereiro de 2021, com vistas a implementar as políticas nacionais estabelecidas pelas Resoluções CNJ nº 254 e   nº  255, ambas       de   4          de     setembro     de   2018, que        correspondem, respectivamente, aos Programas “Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário” e; “Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário”. O protocolo é dividido em três partes e consubstancia-se em um mecanismo para alcançar a igualdade de gênero, Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS 5 da Agenda 2030 da ONU, à qual se comprometeram o

Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça.

A primeira parte do Protocolo relaciona uma gama de conceitos considerados primordiais para abordagem prática do tema, onde os autores sinalizam que o primeiro passo para julgar com perspectiva de gênero é entender o significado de sexo, gênero, sexualidade e identidade de gênero e como esses conceitos se diferem e se relacionam.

Outro ponto chave desta primeira seção é o fato da desigualdade ser fruto da existência de hierarquias sociais estruturais, ponderando que não existe uma desigualdade de gênero única e universal. Os autores explicitaram que múltiplos marcadores sociais contribuem para propagação das desigualdades de gênero, destacando a imposição da chamada “divisão sexual do trabalho” (CNJ, 2021, p. 24)

Apurou-se que na sociedade capitalista é atribuído aos homens o trabalho produtivo, “que se dá na esfera pública, é remunerado, tem reconhecido valor social e por meio do qual se obtém renda suficiente para corresponder ao papel do gênero masculino de provedor” (CNJ, 2018, p. 24). Em contrapartida, a mulher foi atribuída “à responsabilidade, única ou prioritariamente, pelo trabalho reprodutivo, ou de cuidado (remunerado e não remunerado), isto é, o trabalho de manutenção da vida e de reprodução da sociedade”. Trabalho este que é desvalorizado e invisibilizado (Idem, p. 25)

Nesse interim, vale antecipar que a divisão sexual do trabalho, tal como sobrepujado acima, foi fator preponderante no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, como será mais a frente esmiuçada.

Apresentados os conceitos ditos primordiais, na segunda parte do protocolo foi conjecturado um guia para magistradas e magistrados. Nesta seção, o Grupo de Trabalho, alertou às magistradas e aos magistrados para existência das chamadas “normas indiretamente discriminatórias”, entendidas como aquelas que parecem neutras, mas, na realidade, impactam negativamente as mulheres nos contextos em que estão inseridas, onde muitas têm sua produtividade afetada por serem cuidadoras primárias dos filhos (CNJ, 2021, p. 53).

É o que foi observado, por exemplo, na conjunção discutida da supradita Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF e no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR, ambos, objeto de análise específica nos tópicos seguintes. Em razão dessas circunstâncias, no arremate da segunda parte, os autores do Protocolo arquitetaram um breve passo a passo para guiar as magistradas e os magistrados.

Por fim, na terceira e última parte, abordou-se questões específicas de gênero nos diferentes ramos da justiça, ilustrando questões e problemáticas recorrentes de cada segmento. Nesta seção, ressaltamos o tópico destinado especificadamente ao Direito Civil, Administrativo, Tributário e Ambiental, já que o julgamento sob a perspectiva de gênero em ações da seara tributária constitui objeto deste artigo (CNJ, 2021, p. 81).

Nos processos relacionados a estas áreas do Direito, os autores destacam os impactos da discriminação direta, indireta e institucional na vida das mulheres. Citam trechos de decisões do Supremo Tribunal Federal que vedam entendimentos e interpretações que, a título de aplicação neutra da legislação, tornam a maternidade um ônus às mulheres. Em um dos casos apresentados, utilizaram como exemplo o Recurso Extraordinário nº 576.967/PR, discorrido a seguir (CNJ, 2021, p. 82).

Entrementes, antes de expor a aplicação do Protocolo de julgamento sob a Perspectiva de Gênero no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF, ambos sob julgo do Supremo Tribunal Federal, oportuno externar outros meios empregados pela Suprema Corte brasileira para favorecer a igualdade de gênero.

Igualdade de Gênero e o STF

Para além da aplicação do Protocolo de Julgamento sob a Perspectiva de Gênero, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Carta Magna, promove anualmente ações com vistas a enfatizar o artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, que garante a homens e mulheres igualdade em direitos e obrigações.

No ano de 2023, citamos a mostra “O STF e os Direitos das Mulheres”, exposição, aberta em 08 de março em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, que seguiu instalada até o final de maio e rememorou decisões emblemáticas do Tribunal com impacto direto na vida das mulheres, relacionadas ao combate à violência de gênero, entre outros2. A prenunciada Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF, objeto deste estudo, fez parte deste evento.

Na mesma data também foi realizada uma mesa redonda denominada “O Olhar Delas”, onde as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia discutiram o papel feminino nos dias atuais, bem como as decisões do STF que garantiram os direitos das mulheres3.

Ainda em alusão ao mês da mulher, a Suprema Corte lançou o novo volume da série “Bibliografia, Legislação e Jurisprudência Temática”, cujo tema foi os direitos das mulheres. A obra consiste em uma compilação bibliográfica, legislativa e jurisprudencial, alinhada com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), que visa alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas4.


2 Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=503722&ori=1> Acesso em: 22 de novembro de 2023.

3 Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=503599&ori=1> Acesso em: 22 de novembro de 2023.

Não obstante o esforço hercúleo do Supremo Tribunal Federal para fomentar a igualdade de gênero com supedâneo no compromisso assumido perante a Organização das Nações Unidas (ONU), a própria composição da Corte denuncia uma desigualdade de gênero institucional no Tribunal, cuja predominância é, e sempre foi de ministros homens.

Desigualdade que ficou mais escancarada com a aposentadoria da ministra Rosa Weber, haja vista que a indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para substituí-la foi o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino5, muito embora a expectativa fosse pela indicação histórica de mulher negra para sucedê-la.

Isso significa que, as pautas discutidas na Corte Suprema seguem sob o império do julgo masculino, fato que só reforça que ainda estarmos muito distantes de uma perspectiva de igualdade plena entre os sexos nas instituições de poder, assim como foi denunciado no Protocolo ora discutido.

Conquanto, com a edição do documento com vistas a guiar as magistradas e os magistrados para o julgamento sob a perspectiva de gênero, as desigualdades, que antes eram mais proeminentes em decisões judiciais, passaram a ser mitigadas.

E em que pese os tribunais serem compostos, em sua maioria, por homens, e aqui apontamos o Supremo Tribunal Federal, nas decisões exaradas, os ministros estão sobreluzindo o histórico das desigualdades de gênero com o intuito de cessá-lo. Inclusive, em ações envolvendo Direito Tributário. É o que podemos depreender na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF e no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR, comentadas na sequência.


4 Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=503960&ori=1> Acesso em: 22 de novembro de 2023.

5 Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=520861&ori=1> Acesso em: 22 de novembro de 2023.

Recurso Extraordinário nº 576.967/PR

Iniciamos a exposição com o estudo do Recurso Extraordinário nº 576.967/PR, pois seu julgamento antecedeu o da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF.

Trata-se de Recurso Extraordinário interposto pelo Hospital Vita Batel S/A em face de acórdão do TRF da 4ª Região, que entendeu pela constitucionalidade da incidência da contribuição previdenciária patronal sobre o salário-maternidade. O recurso tem como parte recorrida a União e foi julgado em agosto de 2020, sob relatoria do Ministro Roberto Barroso.

O Hospital recorrente sustentava em suas razões recursais afronta a isonomia e a proteção constitucional conferida à maternidade. A União recorrida, por sua vez, sobrelevou que a empregada em gozo de licença-maternidade permanecia na folha de salários durante o período de afastamento, de modo que o empregador devia remunerá-la nos termos da legislação. Aduziu ainda que o salário-maternidade é considerado salário de contribuição pela lei, e, consequentemente, sobre ele deveria incidir contribuição previdenciária.

Em desfecho, por maioria de votos, acordaram os Ministros do Supremo Tribunal Federal, apreciando o Tema 72 da repercussão geral, em dar provimento ao recurso extraordinário, para declarar, incidentalmente, a inconstitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre o salário maternidade, prevista no art. 28, §2º, da Leinº 8.212/91, e a parte final do seu § 9º, alínea a, em que se lê “salvo o salário-maternidade”, nos termos do voto do Relator. Restaram vencidos os votos dos Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli (Presidente), que negavam provimento ao recurso.

Com o julgado, foi fixada a seguinte tese de repercussão geral: “É inconstitucional a incidência da contribuição previdenciária a cargo do empregador sobre o salário maternidade”.

O provimento do recurso teve como respaldo o entendimento de que o salário-maternidade é prestação previdenciária paga pela Previdência Social à segurada e não uma contraprestação ou de retribuição em razão do contrato de trabalho. E, como consequência, não poderia compor a base de cálculo da contribuição previdenciária a cargo do empregador, não encontrando fundamento no art. 195, I, a, da Constituição.

O Ministro Relator rememorou que qualquer incidência não prevista no referido dispositivo constitucional configura fonte de custeio alternativa, devendo estar prevista em lei complementar (art. 195, §4º). Inconstitucionalidade formal do art. 28, §2º, e da parte final da alínea a, do §9º, da Lei nº 8.212/91.

O Relator destacou ainda que, no presente caso, as normas impugnadas, ao imporem tributação que incide somente quando a trabalhadora é mulher e mãe, cria obstáculo geral à contratação de mulheres, por questões exclusivamente biológicas, uma vez que torna a maternidade um ônus.

Complementou aduzindo que a discriminação não encontra amparo na Constituição, que, ao contrário, estabelece isonomia entre homens e mulheres, bem como, a proteção à maternidade, à família e à inclusão da mulher no mercado de trabalho.

O voto do Ministro Roberto Barroso, foi dividido em três partes, como consta expressamente no acórdão. Na primeira parte, o Ministro abordou o histórico da legislação relacionada ao salário-maternidade. Na segunda, apresentou as razões pelas quais o benefícion ão deve integrar a base de cálculo da contribuição previdenciária. Já na terceira, tratou da violação à isonomia, considerando a discriminação da mulher no mercado de trabalho, potencializada pela incidência do tributo, bem como a necessidade da proteção à maternidade. Para os fins específicos deste estudo, que aborda o Protocolo de Julgamento sob a Perspectiva de Gênero no recurso, o enfoque foi à última parte do voto do Ministro Roberto Barroso, que tratou da violação à isonomia, considerando a discriminação da mulher no mercado de trabalho, potencializada pela incidência do tributo.

O Ministro iniciou a parte final de seu voto enfatizando a existência da divisão sexual do trabalho, tal como sugerido pelo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, de modo que a decisão proferida pudesse alcançar soluções protetivas e emancipatórias para as mulheres.

Demonstrou em números à realidade da mulher no mercado de trabalho através do censo apresentado pelo programa ONU Mulheres, do estudo realizado pelo Banco Mundial e dos dados obtidos pela OIT, após pesquisa abrangendo cinco países da América Latina, dentre eles o Brasil, que denunciou que os custos adicionais para o empregador correspondem a 1,2% da remuneração bruta mensal da mulher.

Além da pesquisa quantitativa, o Ministro promoveu verdadeiro controle de convencionalidade na exposição de suas razões, seguindo o guia conjecturado na segunda parte do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Compatibilizou os atos normativos internos com as normas, os princípios e as decisões produzidas no âmbito dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos.

Correlacionou, por exemplo, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, da Organização das Nações Unidas, de 1979, ratificada pelo Brasil, inicialmente com reservas, por meio do Decreto n° 89.460, de20 de março de 1984, posteriormente, ratificada sem reservas pelo Decreton° 4.377, de 30 de julho de 2002. Para só então, concluir que:

Uma incidência tributária que recai somente sobre a contratação de funcionárias mulheres e mães é tornar sua condição biológica, por si só, um fator de desequiparação de tratamento em relação aos homens, desestimulando a maternidade ou, ao menos, incutindo culpa, questionamentos, reflexões e medos em grande parcela da população, pelo simples fato de ter nascido mulher (STF, 2020, p.21).

Não obtante, destacou que a renúncia de receita também onera toda a sociedade. Entretanto, no presente caso, defendeu o afastamento da tributação sobre o salário-maternidade em privilegio a isonomia, a proteção da maternidade e da família, e a diminuição de discriminação entre homens e mulheres no mercado de trabalho.

Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF

Trata-se de ação, com pedido de medida cautelar, ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), tendo por objeto o pedido de inconstitucionalidade do art. 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88 e os arts. 5º e 54 do Decreto nº 3.000/99.

A ação foi julgada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em junho de 2022, sob relatoria do Ministro Dias Toffoli e, por maioria de votos, foi dada procedência ao pedido formulado, de modo a dar ao art. 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88, aos arts. 4º e 46 do Anexo do Decreto nº 9.580/18 e aos arts. 3º, caput e § 1º; e 4º do Decreto-lei nº 1.301/73 interpretação conforme à Constituição Federal para se afastar a incidência do imposto de renda sobre valores decorrentes do direito de família, percebidos pelos alimentados a título de alimentos ou de pensões alimentícias.

Foram vencidos parcialmente os votos dos Ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Nunes Marques, que sustentavam que as pensões alimentícias decorrentes do direito de família deveriam ser somadas aos valores de seu responsável legal aplicando-se a tabela progressiva do imposto de renda para cada dependente, ressalvando a possibilidade de o alimentando realizar isoladamente a declaração de imposto de renda.

A inconstitucionalidade suscitada foi limitada à incidência do imposto de renda sobre os valores percebidos a título de alimentos ou de pensões alimentícias oriundos do direito de família. Isso porque, nos termos da fundamentação do acórdão, estes alimentos não configuram renda nem proventos de qualquer natureza da parte credora (alimentado), mas montante retirado dos acréscimos patrimoniais recebidos pelo devedor (alimentante) para ser dado ao alimentado. Portanto, restou decidido que a percepção desses valores pelo alimentado não representa riqueza nova, estando fora, portanto, da hipótese de incidência do imposto.

Na ementa do acórdão, foi exposto parte do voto-vista do Ministro Roberto Barroso, que conta com a perspectiva de gênero, enfatizando que a incidência do imposto de renda sobre pensão alimentícia acaba por afrontar a igualdade de gênero, visto que, penaliza ainda mais as mulheres. Pois, além de criar, assistir e educar os filhos, as mulheres ainda devem arcar com ônus tributários dos valores recebidos a título de alimentos, os quais foram fixados justamente para atender às necessidades básicas da criança ou do adolescente. Assim, como na observação do acórdão exarado no julgamento do Recurso Extraordinário nº 576.967/PR, na análise desta Ação Direta de Inconstitucionalidade, foi dada a predileção ao voto-vista do Ministro Roberto Barroso que validou em suas considerações, o Protocolo de Julgamento sob a Perspectiva de Gênero.

Esta validação ocorreu de forma proeminente na parte final do voto do Ministro, que também foi dividido em três partes. Na primeira parte, abordou a legislação civil constitucional relacionada à pensão alimentícia. Na segunda parte, apresentou as razões de direito tributário pelas quais entendeu que não deve incidir imposto de renda sobre pensão alimentícia. Na terceira, tratou da violação à isonomia sob o viés da desigualdade de gênero, potencializada pela incidência do tributo, que foi considerada para fins desta exploração.

Neste julgado o Ministro seguiu linha de raciocínio análoga à apresentada em suas alegações no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR. O que demonstra uma uniformidade em sua linha de pensamento, bem como, o desejo de promoção da igualdade de gênero em atenção ao princípio constitucional da isonomia. Tanto é que, citou o próprio voto proferido no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR na argumentação apresentada na oportunidade.

De igual forma, partiu da premissa que existe a divisão sexual do trabalho, onde é inconteste o dever de cuidado, socialmente construído e atribuído às mulheres, declarando ser inconstitucional que, em contrapartida aos cuidados dos filhos, a mulher sofra oneração por parte do Estado.

Considerando essa disparidade, reforçou ser necessário conferir à discussão sobre o impacto da tributação sobre o gênero feminino o status constitucional que ela merece.

O Ministro respaldou suas alegações em dados obtidos na pesquisa realizada pelo IBGE em 2019, onde se constatou que em 66,91% dos divórcios concedidos em primeira instância a casais com filhos menores de idade, coube à mulher a guarda do(s) filho(s). E, em apenas 4,37% dos divórcios, a guarda foi atribuída ao pai.

Isto é, em 66,91% dos divórcios registrados, o pagamento da pensão alimentícia aos filhos será feito pelo homem, que com supedâneo no art. 4º, II, da Lei nº 9.250/1995, poderia abater da base de cálculo de seu imposto de renda a integralidade desses valores.

Em contrapartida, em 66,91% dos casos, a mulher, responsável civil e tributária pela criança ou adolescente, deveria declarar aquela quantia como rendimento recebido, o qual se somará a seus outros rendimentos para fins de incidência do imposto de renda.

Situação que o Ministro denominou como anacrônica e anti-isonômica. Para demonstrar o anacronismo dessa incidência, citou julgado de 1935, da Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Douglas vs. Willcuts que, há 87 anos atrás, já havia decidido que os pagamentos feitos por um homem a sua ex- esposa, a título de pensão alimentícia, decorrem do dever de sustento e não poderiam ser considerados renda e nem seriam passíveis de tributação quando por ela recebidos.

E anti-isonômica, pois consubstancia circunstância que vai ao desencontro dos ditames da Constituição Federal de 1988, que em seu art. 5°, I, dispõe que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações e em seu art. 229 atribui ao pai e à mãe, em igualdade de condições, o dever de assistir, criar e educar os filhos menores.

Por essas razões, o Ministro sustentou que a previsão da legislação acerca da incidência do imposto de renda sobre pensão alimentícia, do mesmo modo que a contribuição previdenciária sobre o salário maternidade acaba por penalizar ainda mais as mulheres, que além de criar, assistir e educar os filhos, ainda deve arcar com ônus tributários dos valores recebidos a título de alimentos. O que, configura regra discriminatória que não encontra respaldo no texto constitucional.

Portanto, ficou patente à existência e eficácia da perspectiva de gênero no julgamento apresentado, com o desígnio de fomentar a igualdade de gênero em atenção ao princípio constitucional da isonomia.

Conclusão

Como foi prenunciado, este trabalho teve como escopo demonstrar a aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em ações tributárias, demonstrando sua viabilidade e eficácia na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF e no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR, ambos sob julgo do Supremo Tribunal Federal, externando os meios empregados pela Corte brasileira para favorecer a igualdade de gênero na tributação. No âmbito geral, é o que se pretendeu esmiuçar através de pesquisa com abordagem qualitativa, com pesquisa bibliográfica e documental.

A partir das análises realizadas, foi possível concluir que, além de ser passível de aplicação, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero é eficaz em ações tributárias que abordam o impacto da tributação sobre o gênero feminino, conferindo a discussão o status constitucional que ela merece, tal como foi feito de forma celebre pelo Ministro Luís Roberto Barroso, nos casos citados.

Sem prejuízo a promoção de outras Políticas Públicas específicas, o Poder Judiciário deve não só sugerir, mas impor as magistradas e aos magistrados uma contínua capacitação para compreender e julgar considerando as perspectivas de gênero.

A atuação, com perspectiva interseccional de gênero propõe a atenção em todas as etapas do procedimento judicial, como reiteradamente destacado no protocolo, auxiliando no afastamento de estereótipos, preconceitos e problemas estruturais. Circunstância que minimiza a perpetuação da violência institucional de gênero.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 576.967/PR. Plenário, sessão virtual. Relator: Min. Roberto Barroso. Julgamento: 05/08/2020. Disponível                                                                                                            em:https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754147264. Acesso em: 20/11/2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422/DF. Plenário, sessão virtual. Relator: Min. Dias Toffoli. Julgamento: 06/06/2022.                                        Disponível                                                         em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=762441882. Acesso em: 20/11/2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, [2021]. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo- 18-10-2021-final.pdf>. Acesso em: 20/11/2023.


1 Advogada. Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP. Pós- graduada em Direito Constitucional Aplicado pela Escola Paulista da Magistratura-EPM e Pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Armando Alvares Penteado-FAAP. Associada do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM. Professora Especialista da Faculdade da Fundação Educacional Araçatuba-FAC/FEA.