A (IN)EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO AOS PORTADORES DO TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA – TEA: CENÁRIOS E INCERTEZAS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102412101207


Diego Duque de Carvalho[1]
Márcio Pereira Dias[2]


Resumo: o Transtorno do Espectro Autista – TEA, é uma questão de saúde pública complexa que vem emergindo nos últimos anos, criando mazela social em significativa parcela da população mundial. Hoje, temos cerca de 2 milhões de autistas no Brasil. Os elevados custos da reabilitação, com tratamentos multidisciplinares, vêm se tornando um desafio para o Estado, sobretudo pela inexistência de tratamento adequado para grande parte da população atingida. Os direitos fundamentais das pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade, clamam pelo Estado, no intuito de buscar sua efetivação. O presente estudo buscar evidenciar os atores sociais e as decisões que impulsionam a alteração do atual cenário. Os julgados vêm servindo como motor ao poder-dever do Estado, pressionando Legislativo e Executivo a promoverem Políticas Públicas efetivas que busquem o tratamento, a reabilitação dos portadores de TEA e a consequente redução das desigualdades sociais.

Palavras-chave: políticas públicas;autismo; desigualdades sociais.

Abstract: Autism Spectrum Disorder – ASD is a complex public health issue that has been emerging in recent years, creating social ill in a significant portion of the world’s population. Today, we have about 2 million autistic people in Brazil. The high costs of rehabilitation, with multidisciplinary treatments, have become a challenge for the State, especially due to the lack of adequate treatment for a large part of the affected population. The fundamental rights of people who are in a situation of vulnerability cry out to the State, in order to seek their effectiveness. The present study seeks to highlight the social actors and decisions that drive the change in the current scenario. The judgments have been serving as an engine for the power-duty of the State, pressuring the Legislative and Executive to promote effective Public Policies that seek the treatment, rehabilitation of people with ASD and the consequent reduction of social inequalities.

Keywords: public policies; autismo; social inequalities.

1 INTRODUÇÃO

O objeto deste trabalho é analisar os atores sociais que se tornaram aliados na luta pelo tratamento e reabilitação de um grupo extremamente vulnerável: a família de crianças com Transtorno do Espectro Autista – TEA. Importa pontuar que a família está no mesmo patamar do núcleo do espectro (o autista), pois inúmeros fatores são considerados aos indivíduos que integram o desafio dessa parcela da população.

O autismo ou transtorno do espectro autista tornou-se um tema muito debatido, sobretudo pelo elevado crescimento de diagnósticos nos últimos anos. A criança com TEA, a depender do seu estágio, necessita de cuidados e acompanhamentos especiais, bem como de tratamentos multidisciplinares, o que demanda um apoio quase em caráter de exclusividade da família. De acordo com Marciel et al. (2022)[3] o tratamento consiste em intensivas terapias, o que é conhecido pela medicina como processo de mentalização buscando uma reestruturação cognitiva, variando sua intensidade de acordo com as necessidades de cada criança no intuito de propiciar a reabilitação a uma vida quotidiana produtiva e/ou autônoma.

Diante disso, para efeitos da pesquisa, surgem várias indagações: Quais os problemas enfrentados pelas famílias de portadores de TEA? Como esses problemas estão se apresentando para o Estado? Como o Estado vem administrando a situação dessas pessoas? Existem tratamentos oferecidos pelo poder público em escala suficiente para suprir as demandas da população? Quais as medidas estão sendo tomadas pelo Estado a fim de reduzir o ônus dessas famílias? Está havendo real interação entre os atores sociais?

Neste trabalho abordaremos de forma singela estas questões, com o objetivo de esclarecer a atuação do Poder Judiciário, como impulsionador, a fim de dar clareza à situação emergencial vivenciada no Brasil com o aumento exponencial dos casos de autismo. Destacamos o Poder Judiciário pelo fato de haver um significativo aumento do número de processos e decisões judiciais. O Poder Judiciário tornou-se o espaço da defesa dos direitos de parcela das pessoas com autismo.

No entanto, análises dessas decisões mostram que apenas o Poder Judiciário não é capaz de sanar a questão social, sobretudo pelo fato de que as decisões são personalíssimas e não atingem maior parte das pessoas com TEA. Por outro lado, balizam a atuação do Estado, direcionando esforços e permitindo uma noção sobre a profundidade da crise instalada.

Debateremos sobre a crise e seus impactos sociais. Para tanto, torna-se necessário abordar o espectro, suas características, e os impactos sofridos e causados pelos atores.

2 O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

O termo autismo infantil foi proposto por Kanner[4], em 1943, para designar aspecto do distúrbio autístico do contato afetivo, como uma condicionalidade que afeta as relações específicas e possui manifestações comportamentais tais como: perturbações das relações afetivas com o meio, solidão autística, inabilidade no uso da linguagem para comunicação, presença de boas potencialidades cognitivas, aspecto físico aparentemente, normal, comportamentos ritualísticos, início precoce e incidência predominante no sexo masculino (Tamanaha; Perissinoto; Chiari, 2008).

Em muitos casos, estes atrasos significam a comunicação tardia ou mesmo a ausência total de articulação verbal atingindo diretamente a saúde da criança. No entanto, estes problemas vão muito além da interação social. A infância do autista é muito mais difícil do que da criança típica. Amizades e brincadeiras dependem de comunicação e este é ponto fraco do TEA. Crianças autistas que não se comunicam são solitárias, tendem a afastar-se das pessoas e acabam atrasando seu desenvolvimento diante das condições do TEA.

Como o objeto deste trabalho não é explicar causas do autismo, mas a interação dos atores sociais na busca pela melhoria de vida das pessoas que são acometidas pelo espectro, não adentraremos nas questões médicas e psicológica, mas na importância da recuperação do indivíduo por meio de iniciativas sociais, promovidas pela efetivação das garantias fundamentais e de políticas públicas de proteção.

O número de crianças diagnosticadas com autismo só tem aumentado. Até 2011, 25 a cada 10.000. (1 a cada 400) crianças até 8 anos apresentavam algum grau de autismo, em 2017 esse número aumentou consideravelmente sendo 1 a cada 160 crianças, em 2024 este número chegou a incríveis 1 a cada 36 nascimentos[5] (FROTA 2022)[6].

Estes dados se devem tanto a fatores idiopáticos como a fatores conhecidos como aumento no número de médicos especializados, melhor difusão dos conceitos, formas de diagnósticos, extrema amplitude da síndrome autística e a pesquisa, trazendo cada vez mais compreensão do que vem a ser o autismo (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019 p. 1).

Naturalmente, a busca pela cura ou melhora nas condições de vida através do tratamento precoce tem levado pais, cada vez mais cedo, a investigar eventuais desacertos cognitivos das crianças, situação que justifica o aumento no número de diagnósticos. Quanto mais cedo houver a intervenção, maiores são as chances de retirar a criança do espectro autista, pois, “retardar a estimulação significa perder o período ótimo de estimular a aquisição de cada habilidade da criança” (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019 p. 2).

O primeiro desafio enfrentado pelos pais é conseguir um diagnóstico para um problema que começa a ser percebido simplesmente como comportamentos inadequado ou atraso no desenvolvimento da criança. Atualmente, no brasil, o atendimento público com neuropediatra pode demorar até dois meses[7], diante da pouca oferta de profissionais e da grande demanda. Após o diagnóstico, a comunidade médica vem recomendando o tratamento precoce como o tratamento adequado para o TEA (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019, p. 4).

Por outro lado, os tratamentos são onerosos e contínuos[8], trazendo ao Estado e às famílias dispendiosa obrigação financeira em prol da saúde dessas crianças. A carga horária de tratamento pode chegar a 40 (quarenta) horas semanais[9] por meio de terapias intensivas utilizando os métodos mais aceitos na medicina tais como ABA (Applied Nehavior Analysis), TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Communication Handicapped Children), modelo ESDM (Modelo DENVER de Estimulação precoce), e o PECS (The Picture Exchange Communication System), a diferença dos métodos é explicada pela Sociedade Brasileira De Pediatria, 2019 p. 16, cabendo ao profissional que a acompanha traçar um plano individualizado de intervenção com base nesses métodos.

A insuficiente oferta no tratamento por parte do Poder Executivo justificou o amparo pelo Judiciário, intervindo por meio de obrigações e sanções impostas aos demais poderes. Com o advento dessas obrigações surgiram sanções que passaram a onerar o orçamento dos entes públicos. Delegando uma grande missão ao Estado: cumprir os preceitos Constitucionais. A inexistência de estabelecimentos especializados, números de profissionais limitados ou sem a capacitação específica necessária e a burocracia para atendimento são alguns dos problemas que o poder público deve corrigir.

Seguindo Sarlet (2010) “o indivíduo deve poder levar uma vida que corresponda às exigências do princípio da dignidade da pessoa humana”[10]. Com fulcro nessa garantia, é forçoso dizer que a simples falha da prestação à saúde, por sua ineficácia ou inoperância relativa, viola os direitos humanos e fundamentais das pessoas com Autismo.

3 DOS NOVOS ATORES

Com o crescimento do número de diagnósticos, incide a necessidade de tratamentos. Conforme pontua a neuropediatra Isis Mariana, “a demanda por tratamento é desesperadora e mesmo as clínicas particulares não possuem condições de oferecer a todos que precisam”. Ou seja, não existem postos ou espaços públicos e particulares suficientes para atender a quantidade de pessoas que necessitam dos tratamentos.

Pais abdicam das demais dimensões da vida pessoal para traçarem um plano de evolução do quadro clínico dos seus filhos, se lançando no tratamento como interventores, ou ficando de suporte para administrar as crianças que não podem permanecer em creches que não dispõem de profissionais capacitados para atendê-las.

Com isso, observou-se a crescente luta de pais e familiares de pessoas com TEA tanto em movimentos sociais, como na esfera judicial. Em todo o Brasil, o descontentamento trouxe a união de um grupo, que não luta apenas por seus direitos, mas pelos que amam e não podem expressar sua indignação.

Se para Ingo Sarlet os direitos fundamentais são simultaneamente pressuposto, garantia e instrumento do princípio democrático de autodeterminação do povo por intermédio de cada indivíduo, é de igual modo direito e garantia a luta pela igualdade entre os indivíduos típicos e atípicos. Clinicamente, esta igualdade pode ser alcançada por meio de cuidados continuados da família, dos profissionais da área de saúde, da sociedade e área da educação (Barro; Sales; Piovesan, 2018).

Ulrich Beck, esclarece que a sociedade moderna e industrial “é definida como sociedade de grandes grupos, no sentido de uma sociedade de classes e camadas sociais” (Beck, 2010, p. 16). A formação da camada “autista” tomou força nos últimos anos, devendo ser considerada pelo sentimento de distribuição de riscos.  

Essa mobilização levou a questão social às esferas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Segundo estudo, a insegurança jurídica diante da busca por tratamentos para o TEA tem forçado o legislativo a criar alternativas de resolver o problema por meio de propostas. Somente no primeiro semestre de 2021, três diferentes propostas foram apresentadas ao Congresso Nacional, o PL 630[11], o PL 1505[12] e o PL 1917[13].

Não é demasiado dizer que estamos passando por uma revolução social e jurídica indispensável para evitar a crise que pode ser provocada pelo colapso de milhões de famílias no Brasil. Não se tem como falar de direito à saúde sem comentar os ensinamentos de Sarlet e Figueiredo (2007)[14] que já constatavam em 2007 o aumento dos casos de judicialização no sentido de provocar cobrança cada vez mais arrojada por parte dos aplicadores do direito, para ver a efetividade do direito fundamental à saúde.

Consoante se observa da evidência de problemas enfrentados pelo surgimento dessa sensível camada, desencadeando uma crise que vem forçando os poderes a agirem cada vez mais rápido, destacamos a necessidade de observar o trabalho de Ricardo Lobo Torres (1989, apud Sarlet, 2007)[15] e Sarlet sobre o que seria um “mínimo existencial” para um portador de TEA a fim de traçar a linha onde a pressão deve ser exercida.

Primeiramente, estamos diante de uma pessoa com diversas “camadas de vulnerabilidade”[16], camadas estas que impedem o indivíduo de exercer as faculdades da própria dignidade humana, tal como a comunicação. Não é forçoso dizer que somente após retiradas as finas camadas que compõem as comorbidades do TEA, a criança começa a vislumbrar os problemas das pessoas típicas. Ou seja, a dignidade humana do autista deve ser encarada como o desdobramento de conquistas (capabilities[17] ou capacity approach nos ensinamentos de Amartya Sen, 1985) em suas capacidades obtidas, principalmente, com tratamentos precoces que visam sua reabilitação.

Neste ponto, citamos o importante ensinamento de Amartya Sen, quanto ao conceito de desenvolvimento humano baseado na expansão das capacidades das pessoas, traduzindo a busca e o caminho perseguido pelos atores que buscam a integração social das crianças autistas. Interessante trabalho sobre a análise conceitual do que vem a ser as capacidades para o alcance do desenvolvimento humano foi desenvolvido por Thais Cavalcanti. Para a autora, é na filosofia que o termo capacidade adquire um significado amplo e complexo relacionado à potencialidade do indivíduo (Cavalcanti, 2019, p. 173). Este entendimento é necessário, pois o autista, na maioria dos casos, acumula atrasos que o impedem de fazer até mesmo as coisas mais básicas (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019 p. 13).

Diante desse cenário, resta às famílias a busca por suporte especializado para aplicar os tratamentos que visam desenvolver as capacidades das crianças. Desta forma, passaram a buscar o poder judiciário, diante da inefetividade dos demais poderes.

O Conselho Nacional de Justiça, registrou um aumento significativo no número de ações judiciais relacionadas ao autismo. A judicialização tornou-se a única forma encontrada pelos responsáveis para garantir o acesso às intervenções essenciais que não são disponibilizadas de forma adequada pelo Sistema Único de Saúde – SUS.

3.1 Efeitos no Poder Judiciário

Com a elevação do número de portadores de TEA,  surgiram grupos sensíveis ao tema. O Judiciário, vanguardista da aplicação da força dos direitos dos autistas, tornou regra rogar à Constituição Federal em prol do custeio integral do tratamento para pessoas que não tem condições de pagá-lo. As decisões se pautam essencialmente no artigo 5º e 6º da Constituição (direito à vida e à saúde), além do art. 18 da lei 13.146[18].

Se por um lado a sociedade é, para Aristóteles (1999) onde o homem alcança sua mais alta virtude e perfeição se tornando cidadão, onde aquele que é incapaz de vivê-la é um animal ou Deus, por outro, a noção de obrigação para com os demais cidadãos é para o Estado um compromisso da sua própria existência.

É, pois, daquele representante do Estado a obrigação de dividir os conflitos, amarguras, ciúmes e fricções, cumprindo a todos viver de acordo com a Constituição. A questão social é: embora o Judiciário esteja diligente em termos de avanços na iniciativa de melhoria das condições de vida da pessoa com autismo e sua família, pouco pode fazer quanto à indisponibilidade orçamentária para o custeio do tratamento, senão obrigar os demais poderes a instituí-la e forçando-o por meio de sanções.

Com efeito, a pressão exercida pelo Poder Judiciário, originada pela grande quantidade de ações propostas pelos atores, tem atingido o fortalecimento do tema em escala nacional. Quanto mais decisões favoráveis à causa dos autistas, melhores serão as perspectivas tanto no sentido de reabilitação, como na constituição de políticas públicas de proteção.

Um grande avanço foi o acesso facilitado à justiça por meio da gratuidade às crianças que enfrentavam problemas para requerer seu direito e viviam atrasos na concessão de liminares. Em muitos casos, os juízes de primeira instância deixavam de conceder à liminar para intimar os pais acerca da condição financeira, o que esbarra em uma questão de direito e vulnerabilidade. Os tribunais já firmaram entendimento no sentido que a criança quando pleiteia direito próprio, a ela cabe a gratuidade, ainda que representada por seus pais com condições financeiras. Tal entendimento tornou-se regra nos últimos anos com precedentes do STJ (Brasil, 2022).

Cada vez mais crianças estão conseguindo tratamento por meio de liminares, forçando o poder público a se mover por receio da sanção judicial. A condição de ser criança com necessidades especiais tornou-se uma porta aberta para concessão de direitos.

O Conselho Nacional de Justiça – CNJ[19], tem atuado pressionando os atores a agirem em prol da evolução dos pacientes. Prova disso foi a instituição da portaria nº. 315, que elaborou estudos e materiais destinados à orientação e ao treinamento no atendimento e na atuação diante de pessoas com TEA.  

Quanto à questão social da situação financeira das famílias com TEA, surgem dois pontos cruciais, o cumprimento de custeio de necessidades além das terapias e a preocupação com o futuro dessas crianças devido a sua limitação para a independência (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019 p. 20).

Com a implementação do Benefício de Prestação Continuada – BPC[20], houve um aumento significativo na judicialização por pessoas com autismo. Com o aumento das concessões, a publicização e massificação da informação aumentou o número de ações. Mas, ao contrário do que possa parecer, o aumento exponencial é fator positivo, pois, o que se busca é “zerar” a quantidade de TEA que necessitem e não tenham qualquer amparo financeiro pela autarquia previdenciária.

Segundo dados apanhados pelo INSS, triplicou a liberação de BPC[21] para pessoas com autismo, o que chamou a atenção das autoridades, que passaram a realizar um “pente fino” reavaliando os casos para aplicação de cortes, revelando a outra face do problema, o embate entre Executivo e Judiciário.

Importa aqui, asseverar os ensinamentos de Sarlet e Figueiredo (2007) pontuando que a doutrina e jurisprudência alemãs partem da premissa que existem várias maneiras de realizar garantias e obrigações de prestações vinculadas ao mínimo existencial, incumbindo ao legislador a função de dispor sobre o tema da forma de fruição, seu montante, as condições para fruição, podendo os tribunais decidir sobre este padrão existencial mínimo.

Ainda para Sarlet, (2007) a dignidade da pessoa humana somente estará assegurada – em termos de condições básicas a serem garantidas pelo Estado e pela sociedade – onde a todos e a qualquer um estiver garantida, nem mais nem menor do que uma vida saudável. Este entendimento, é precioso e coaduna com o cenário jurídico atual, onde se busca sopesar a saúde como fator anterior à dignidade plena, afinal, é com saúde que se atinge a dignidade.

Mesmo com os inúmeros reconhecimentos dos direitos dos autistas pelo STF[22], vê-se cada vez mais “travas” na luta pela defesa dos interesses dos portadores de TEA, sobretudo em face de questões orçamentárias oriundas de ausências de políticas públicas voltadas para a efetivação do direito a saúde e digna humana.

Importante destacar que até agora só discorremos sobre o acesso ao tratamento e suporte à vida. Os valores sociais do trabalho e dignidade, consuetudinários da vida moderna, representam outro problema social a ser observado. O desenvolvimento da ampliação das liberdades individuais desse grupo vulnerável substitui o foco da renda pelo desenvolvimento das capacidades. Ciente da possibilidade de reabilitação, a dúvida sobre se é mais oneroso tratar o TEA por alguns anos ou arcar eternamente com uma possível invalidez, deixa óbvia a escolha e expõe aqueles que a ela se opõem.

3.2 Políticas Públicas e os Poderes Legislativo e Executivo

As decisões judiciais favoráveis ao pleito dos autistas tem elevado o risco financeiro do Estado, conforme demonstra a pesquisa supracitada, revelando a inoperância do Poder Público em aplicar as garantias constitucionais (Silva, 2023). Em contrapartida, o tratamento oneroso e continuo tem de igual modo preocupado os legisladores pela necessidade de regulamentação dos direitos dessa camada da sociedade.

Pela primeira vez na história o CENSO (2022) trouxe questionamento sobre o diagnóstico de TEA dentre seus entrevistados, trouxe também a dimensão do desafio a ser enfrentado. Tal fato foi um grande passo para entendermos a dimensão da questão social sob o qual devem recair as políticas públicas.

Enquanto as famílias dos portadores de TEA se conformarem com leis genéricas, ficarão desguarnecidas pela inefetividade das políticas públicas. Aliado a essas questões, cresce o empobrecimento dessas famílias (Sociedade Brasileira de Psiquiatria, 2019, p. 20)

Como o Judiciário ampliou as possibilidades do acesso à justiça, com a portaria nº.  315 do CNJ, o Legislativo, ainda que tardiamente, editou o Projeto de Lei 630/21 que obriga o poder público a investir em projetos específicos para pessoa com autismo, o que é um grande avanço na luta por políticas públicas e sua efetivação. Para o autor do projeto, Deputado Glaustin da Fokus (GO) Esse ‘acesso’ vem sendo garantido sem as necessárias adaptações que compreendam as peculiaridades do autismo e que incorporem os avanços científicos nessa área” (Agência Câmara de Notícias, 2023).

Como a maior parte dos processos judicializados ainda repousa dentre os titulares de planos de saúde, com condições financeiras mais confortáveis, há uma pressão por parte do sistema de seguros de saúde, que vê o elevado custeio determinado por decisões judiciais como risco a existência do negócio. Encontra-se em votação o Projeto de Lei 1917/2021 que obriga planos e seguros de saúde a fornecerem atendimento multiprofissional, inclusive terapias baseadas na Análise do Comportamento Aplicada, sob a sistemática composta por supervisor e assistente terapêutico, a crianças diagnosticadas com TEA.

Enquanto o Estado se atenta a judicialização, esquece do fato que o judicializado é apenas uma pequena parcela da população TEA. A questão social repousa nos 2 milhões de autistas do Brasil[23] e não nos milhares que buscaram a via judicial.

O avanço alcançado pelo Legislativo, com a criação do Benefício de Prestação Continuada – BPC, apesar de representar um marco histórico na vida das famílias de TEA, faz parte do dilema desenvolvido no tópico anterior. Embora existam políticas públicas para o tratamento de doenças, levantando sempre a bandeira da saúde pública, quando se fala de autismo em crianças, deve-se levar em consideração o fato de que o transtorno é algo a ser enfrentado de forma plena e irrestrita. Os dados do portal da transparência mostram que R$ 180,83 bilhões de reais são destinados a saúde, mas infelizmente não há qualquer direcionamento de parte significativa desses recursos para o enfrentamento do autismo (Brasil, 2024).

Alvo direto das manifestações, o Poder Executivo está em ritmo lento acerca da efetivação de políticas públicas. Quando um surto de tuberculose, meningite, sarampo ou qualquer outra crise de saúde sanitária surgem, há erradicação, vacinação e o tratamento é realizado para a população. Porém, quando se fala em TEA, o aumento do número de processos judiciais, leis ou benefícios é compreendido como fator orçamentário negativo. A discussão política se estende além do Judiciário, nas iniciativas que visam obrigar o Estado a promover as necessidades básicas de dignidade e saúde da pessoa portadora de TEA.

Enquanto a falta de recursos e infraestrutura, em todos os ambientes necessários (casa, clínica e escola), é uma realidade, a inércia executiva vem forçando o Judiciário com ações para que as crianças tenham o mínimo adequado para se desenvolverem. Decisões como a proferida na Apelação nº 5009050-52.2020.4.04.7004 (Brasil, 2020) são um alento para quem ainda sofre com a inércia do poder executivo (Federal, Estadual e Municipal). Outro marco para esta década foram as válidas iniciativas de conscientização.

4 A INTERAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS

Para Touraine (1998, p. 37), o ator social é “alguém que, engajado em relações concretas, profissionais, econômicas, mas também igualmente ligado à nacionalidade ou gênero, procura aumentar sua autonomia, controlar o tempo e suas condições de trabalho ou existência”. A maioria dos autistas não tem como lutar por seus direitos, pois são crianças e adolescentes em desenvolvimento de suas capacidades.

O desenvolvimento das interações entre as famílias, poderes Judiciário, Legislativo e Executivo tem alcançado conquistas, embora ainda insuficientes diante da complexidade do cenário. Esse paradoxo reflete o quão delicada é a situação, sobretudo pela inefetivação de políticas públicas de proteção das famílias vulneráveis, ainda dependentes de medidas paliativas como o recurso ao Judiciário.

A (in)efetividade das políticas públicas, em face dos contingentes excluídos, focalizada na vulnerabilidade de pessoas ou grupos, muitos dos quais se denominou de ´invisíveis´, corrobora o entendimento de que o Brasil não caminha em bom ritmo para a proteção da comunidade autista. Pode-se observar que os poderes estão passando por modificações. Fica evidenciada a necessidade de implementação de políticas públicas que assegurem à comunidade TEA o mínimo científico e não o genérico de sempre.

Enquanto o empoderamento da família TEA significa mais atuação na causa, mais relevância e melhores expectativas para as crianças autistas, torna-se evidente o quão despreparado se encontra o Estado para atender as demandas sociais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A complexidade da interação entre os atores sociais, diante do fenômeno do TEA, deve ser encarada como um objetivo a ser resolvido, delimitando a atuação de cada poder, o que aliviaria o judiciário, vanguardista na luta pela efetivação dos direitos fundamentais dos autistas.

À luz das fontes pesquisadas restou claro que o maior dilema é a extensão nacional do TEA, ainda velada pelo receio dos representantes públicos em enfrentarem a real dimensão da questão social, através de iniciativas efetivas para a melhoria da vida das pessoas.

Uma série de evidências indicam que o Executivo busca evitar a publicização e a convocação geral para diagnósticos desse grupo, assim como é feito nas epidemias. Se o fizesse, teríamos o cenário real para enfrentamento do problema e a dimensão concreta de sua complexidade. Diante da forma como encaram a questão orçamentária ocasionada pelas decisões judiciais, não seria exagero falarmos em uma “pandemia de autismo”.

A implantação e efetivação de políticas públicas de proteção aos portadores de TEA é um imperativo. A criação de centros de tratamento para o desenvolvimento de crianças e adolescentes com autismo é uma necessidade. A elaboração de políticas que visem a acolher toda a população TEA, com propostas orçamentárias para tratamento, pesquisa e desenvolvimento de pessoas com autismo, dando-se condições à existência digna e plena.

Observa-se como a intervenção dos atores sociais tem se dado de forma descompassada com as expectativas das famílias com TEA, de modo que a inefetividade acompanha esse desarranjo, afetando o tratamento e desenvolvimento da criança e a vida das famílias. A crise financeira advinda da ausência de suporte adequado de grande parte das famílias que possuem pessoas com TEA é uma realidade.  Embora alguns avanços tenham sido alcançados, a ineficácia e inexistência de políticas públicas tem ocasionado a intervenção do Judiciário.

Nota-se que medidas necessárias para a constituição e efetivação de políticas públicas colocariam o poder público fechado contra uma crise que afeta todas as esferas da sociedade. Estamos diante de um horizonte de incertezas.

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[1] Advogado. Especialista em Ciências Criminais e Direito Civil (UCAM), Perito Judicial pelo CONPEJ (Conselho Nacional dos Peritos Judiciais da República Federativa do Brasil), Mestrando em Direito pela Universidade Católica do Salvador  (UCSAL)

[2] Pós-doutorado em Direitos Sociais e Novos Direitos, Construção dos Sujeitos e Cidadania (UCSAL), Doutor em Ciências Sociais (UNISINOS), Mestre em Direito (UNISC), Especialista em Educação (UFRJ), Bacharel em Direito (URCAMP). Professor Permanente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica do Salvador.

[3] Trata-se de obra literária científica organizada por Gislei Frota Aragão, Professor do Curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará, com temas selecionados exclusivamente sobre o autismo, com um vasto repertório de artigos que tratam de diversas questões enfrentadas pelas crianças com TEA, pelas famílias TEA e profissionais da área de saúde.

[4] Conhecido como o pai do autismo, Chaskel Leib Kanner, também conhecido como Leo Kanner, foi um psiquiatra, médico e ativista social austro-americano, referenciado por seu trabalho relacionado ao autismo infantil. Fez importante contribuições ao campo do autismo, tais como o notável estudo “Problemas de Nosologia e Psicodinâmica do Autismo Infantil Precoce”, onde estuda o autismo infantil precoce e sua sintomatologia.

[5] Estes dados foram confirmados em 2017 e registrado o aumento em 2021 pelo CDC (Centers for Desease Control and Prevention – Centro de Controle e Prevenção de doenças), órgão governamental dos EUA que vem monitorando o aumento dos casos de autismo nos EUA e no mundo. Através do ADDM (Autism and Developmental Disabilities Monitoring), programa financiado pela CDC para coletar dados, pode-se entender melhor o número e as características de crianças com TEA. O órgão vem monitorando este aumento desde 2000, quando estabeleceu o ADDM, identificando sinais importantes reconhecidos no meio científico, sendo citado pela maioria dos estudos nesta linha de pesquisa.

[6] Professor da Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Brasil.

[7] Fizemos tentativas de realização da consulta junto à APAE e outros médicos pelo SUS em unidades de Salvador-Bahia, sendo informado prazo superior a 2 meses para realização do serviço, sendo em lista de espera diante de grande demanda.

[8] Fizemos orçamentos em 5 clínicas diferentes que tratam crianças com autismo na cidade de Salvador-Bahia e os valores variam entre R$180,00 à R$300,00 por sessão (45 min – 1 hora), a depender do profissional.

[9] Por tratar-se de crianças em fases das chamadas “podas neurais”, os menores passam por tratamentos intensivos, a medicina majoritária vem aplicando o uso de terapias intensivas no tratamento de crianças com TEA, este estudo confirmou vultuoso volume de decisões judiciais neste sentido, a exemplo do AI: 22088405420188260000 SP 2208840-54.2018.8.26.0000, Relator: Alcides Leopoldo.

[10] O Ilustre Autor, Ingo Sarlet, aborda os direitos fundamentais à luz da teoria do mínimo existencial, sob a qual traça um paralelo entre a dignidade da pessoa humana e a assistência social de modo a promovê-la e protegê-la (a dignidade).

[11] Altera a Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, para obrigar o poder público a fomentar projetos e programas específicos de atenção à saúde e educação especializada para pessoas com Transtorno do Espectro Autista

[12] Estabelece os mecanismos de estímulo ao desenvolvimento e fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde brasileiro no âmbito da Política Nacional de Inovação Tecnológica em Saúde e dá outras providências.

[13] Obriga os planos e seguros de saúde a fornecer atendimento multiprofissional, inclusive com terapias baseadas na Análise do Comportamento Aplicada sob a sistemática composta por supervisor e assistente terapêutico, à criança diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista – TEA ou que possua atrasos no seu desenvolvimento que indiquem risco de TEA.

[14] Importante trabalho, demonstrando sua atualidade diante dos problemas constitucionais de afirmação dos direitos sociais, em especial à saúde.

[15] Citado por Sarlet e Figueiredo como, ao que se sabe, ser autor do primeiro ensaio especialmente dedicado ao tema no Brasil.

[16] Conceito trazido pela ilustre dra. Florência Luna onde a Autora explora a ideia de camadas de vulnerabilidade sobrepondo-se as mais expostas às mais ocultas, simplificando o tratamento do conceito de vulnerabilidade.

[17] Teoria traçada pelo renomado professor e filósofo Amartya Sen, que consiste em dar o significado moral da capacidade dos indivíduos de alcançar o tipo de vida que eles têm razão para valorizar. 

[18] Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando a sua inclusão e cidadania.

[19] Disponível em https://www.cnj.jus.br/autismo-reconhecimento-conscientizacao-e-respeito-as-leis-ainda-sao-desafios/

[20] Previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, é devido ao grupo familiar cuja renda per capita seja igual ou inferior à ¼ do salário mínimo.

[21] Dados levantados pela inédita pesquisa realizada pelo UOL em parceria com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a reportagem, embasada em pesquisa inédita, trouxe dados precisos e importantes para a comunidade autista, sendo citada em diversos trabalhos científicos sobre o tema. governo-lula.htm

[22] Dentre algumas delas, podemos citar as ADIs 4.275, 5.337 e o RE 1.063.405.

[23] Dados com referências nas pesquisas apuradas pelo CDC, conforme alhures demonstrado em rodapé.