REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202412080942
Isabella Reis Ristov1
Matheus Bernardes Souza (Orientador)2
Resumo
O diabetes mellitus tipo II é uma doença crônica não transmissível em que há hiperglicemia devido à disfunção pancreática e/ou resistência à ação da insulina, gerando dano tecidual, com complicações a longo prazo. Atualmente, a literatura médica embasa tratamentos não farmacológicos e farmacológicos para o manejo da doença, com o objetivo de atingir a meta terapêutica de hemoglobina glicada com melhor evidência de redução de complicações crônicas. O principal objetivo deste estudo é realizar o relato de um caso clínico abordando o impacto do tratamento do diabetes mellitus tipo II por meio de medidas não farmacológicas baseadas em mudança dos hábitos da paciente (alimentação saudável e realização de atividades físicas de moderada intensidade). Trata-se de um estudo observacional descritivo realizado por meio de acompanhamento médico em consultório e análise posterior do prontuário digital de uma paciente que foi acompanhada em uma Unidade Básica de Saúde, vinculada a uma instituição terceirizada. Foi realizada uma avaliação crítica da literatura por meio das bases de dados PubMed, Scielo e Medline, tendo sido selecionados os artigos mais relevantes para a discussão do caso clínico, visando compreender sua relevância e contextualização dentro do que há de mais recente na literatura médica acerca deste assunto. O caso relatado aborda o acompanhamento de uma mulher, 53 anos, com diagnóstico de diabetes mellitus tipo II, que apresentou remissão da doença, um fenômeno relativamente raro. A remissão foi mantida através de tratamento não medicamentoso, baseado em alimentação com restrição calórica e prática de atividade física regular. Após 7 meses de tratamento, a paciente apresentou perda de 22 kg em relação ao peso inicial, apresentando remissão da doença, e mantendo-se em remissão há 15 anos, cursando com valores de hemoglobina glicada inferiores aos considerados para o diagnóstico de pré-diabetes. O tratamento do diabetes mellitus tipo II objetiva prevenir, tratar ou até mesmo reverter as complicações da doença, melhorando a qualidade de vida do paciente. O relato deste caso clínico visa contribuir com a literatura médica através da reflexão do impacto das medidas não farmacológicas no tratamento do diabetes mellitus tipo II.
Palavras-chave: Diabetes Mellitus tipo II; Estilo de Vida Saudável; Redução de Peso.
Abstract
Type II diabetes mellitus is a chronic non-communicable disease characterized by hyperglycemia due to pancreatic dysfunction and/or insulin resistance, leading to tissue damage and long-term complications. Currently, the medical literature supports non-pharmacological and pharmacological treatments for managing the disease, with the goal of achieving the therapeutic target of glycated hemoglobin with better evidence of reducing chronic complications. The main objective of this study is to present a case report addressing the impact of type II diabetes mellitus treatment through non-pharmacological measures based on lifestyle changes (healthy eating and moderate-intensity physical activity). This is a descriptive observational study conducted through medical follow-up in the office and subsequent analysis of the digital medical record of a patient who was followed up at a Basic Health Unit, affiliated with a third-party institution. A critical literature review was conducted using the PubMed, Scielo, and Medline databases, selecting the most relevant articles for the discussion of the clinical case, aiming to understand its relevance and contextualization within the most recent medical literature on this subject. The reported case involves the follow-up of a 53-year-old woman diagnosed with type II diabetes mellitus, who achieved disease remission through non- pharmacological treatment based on calorie-restricted diet and regular physical activity. After 7 months of treatment, the patient lost 22 kg compared to her initial weight, presenting remission of the disease and remaining in remission for 15 years, with glycated hemoglobin values below those considered for the diagnosis of pre- diabetes. The treatment of type II diabetes mellitus aims to prevent, treat, or even reverse disease complications, improving the patient’s quality of life. This case report aims to contribute to the medical literature by reflecting on the impact of non-pharmacological measures in the treatment of type II diabetes mellitus.
Keywords: Type II Diabetes Mellitus; Healthy lifestyle; Weight Loss.
Introdução
O Diabetes Mellitus tipo II (DM2) é uma doença crônica não transmissível que representa um desafio significativo para os sistemas de saúde no Brasil e no mundo. Sua prevalência tem crescido de forma alarmante nas últimas décadas, acompanhando o aumento da obesidade e do sedentarismo, que são fatores de risco primários para o desenvolvimento da doença.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Diabetes, mais de 12 milhões de brasileiros convivem com diabetes, e a tendência é de crescimento, especialmente devido ao envelhecimento populacional e aos estilos de vida pouco saudáveis. No cenário global, a Federação Internacional de Diabetes estima que mais de 537 milhões de adultos em todo o mundo vivem com DM2, com projeções que indicam que esse número pode chegar a 700 milhões até 2045.
Segundo García-Molina et al., o diabetes mellitus tipo II é caracterizado pela hiperglicemia crônica, resultante da resistência à insulina e/ou disfunção na secreção de insulina pelas células beta do pâncreas. Essa disfunção metabólica está associada a uma série de complicações microvasculares e macrovasculares, incluindo retinopatia, nefropatia, neuropatia, doenças cardiovasculares e, em casos mais graves, amputações de membros inferiores. A complexidade do DM2 reside em sua etiologia multifatorial, que envolve não apenas fatores genéticos, mas também comportamentais e ambientais, como padrões alimentares inadequados, falta de atividade física e estresse crônico.
A epidemia de obesidade que acomete grande parte dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, incluindo o Brasil, é um dos principais motores por trás do aumento da incidência de DM2. Segundo a SBD, a obesidade, especialmente a obesidade visceral, é um fator de risco independente para o desenvolvimento de DM2, pois contribui significativamente para a resistência à insulina, um dos principais mecanismos patogênicos da doença.
Os mecanismos pelos quais a obesidade induz a resistência à insulina incluem a lipotoxicidade, a inflamação crônica de baixo grau e a disfunção mitocondrial. O tecido adiposo excessivo, particularmente o visceral, secreta uma série de adipocinas pró-inflamatórias, como o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) e a interleucina-6 (IL- 6), que interferem na sinalização da insulina, exacerbando a hiperglicemia.
Paralelamente, segundo Lear et al., a prática regular de atividade física tem sido amplamente recomendada como uma intervenção eficaz no controle do DM2. A atividade física regular melhora a captação de glicose pelos músculos, independentemente da ação da insulina, e contribui para a perda de peso, o que é crucial para a melhoria da sensibilidade à insulina. Estudos longitudinais, como o Look AHEAD, que se iniciou em 2003, e estudos como o ELSA BRASIL, com início em 2009, vêm demonstrando que a combinação de dieta e exercício físico não só melhora o controle glicêmico, mas também reduz significativamente o risco de complicações cardiovasculares em pacientes com DM2.
No entanto, a realidade clínica mostra que a adesão às mudanças no estilo de vida pode ser desafiadora, especialmente a longo prazo. Fatores como a falta de suporte social, barreiras psicológicas e limitações socioeconômicas podem dificultar a implementação sustentada dessas intervenções. Por isso, abordagens motivacionais e programas de suporte contínuo são essenciais para ajudar os pacientes a superar essas barreiras e alcançar sucesso no manejo do DM2. A combinação de intervenções comportamentais com um suporte adequado pode aumentar a adesão ao tratamento e melhorar os resultados a longo prazo (MAULA et al., 2020; POWERS et al., 2020).
Neste contexto, o presente trabalho tem como objetivo relatar o caso de uma paciente com DM2 que inicialmente fez uso de medicação antidiabética em conjunto com mudanças no estilo de vida, mas que alcançou e manteve a remissão da doença exclusivamente através da modificação dos hábitos de vida, após a desprescrição dos medicamentos. Este relato de caso busca contribuir com a literatura, reforçando a importância de estratégias integradas que combinem dieta, atividade física e apoio psicossocial para o sucesso do tratamento a longo prazo.
disso, a infiltração de macrófagos no tecido adiposo contribui para o estado inflamatório crônico, que é uma característica marcante da obesidade e do DM2 (GONG et al., 2019; MESINOVIC et al., 2019).
Frente a esses desafios, o manejo do DM2 tem evoluído para incluir uma abordagem mais integrada e multidisciplinar, onde as mudanças no estilo de vida desempenham um papel central. A diretriz da SBD recomenda que intervenções não farmacológicas, como a modificação da dieta e a introdução de um regime regular de exercícios físicos, sejam a primeira linha de tratamento para a maioria dos pacientes com DM2, especialmente aqueles recém-diagnosticados. Essas intervenções são eficazes não apenas na melhoria do controle glicêmico, mas também na redução do risco cardiovascular e na prevenção das complicações a longo prazo associadas à doença.
A mudança no estilo de vida como estratégia terapêutica para o DM2 é amplamente sustentada por evidências científicas brasileiras e internacionais. Estudos como o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto e o Diabetes Prevention Program têm demonstrado que a perda de peso moderada (5-7% do peso corporal inicial) e o aumento da atividade física (150 minutos de atividade moderada por semana) podem reduzir significativamente a incidência de DM2 em indivíduos com pré-diabetes. De forma semelhante, o Finnish Diabetes Prevention Study encontrou uma redução significativa na incidência de DM2 após a implementação de um programa intensivo de modificação do estilo de vida, reforçando a eficácia dessas intervenções.
O papel da nutrição no manejo do DM2 tem sido cada vez mais enfatizado nas diretrizes brasileiras e internacionais de tratamento. Estudos recentes destacam que uma dieta rica em fibras, com baixo índice glicêmico e balanceada em macronutrientes, é fundamental para o controle da glicemia e a prevenção das complicações. No Brasil, a inclusão de alimentos integrais, frutas, vegetais e proteínas magras, em detrimento de carboidratos refinados e gorduras saturadas, tem mostrado benefícios significativos no perfil glicêmico e lipídico dos pacientes. Além disso, a suplementação de dietas com proteínas de alta qualidade, como as provenientes de leguminosas e peixes, pode ajudar a preservar a massa muscular e melhorar a sensibilidade à insulina, aspectos críticos para o manejo do DM2 (GARCÍA-MOLINA et al., 2020; REYNOLDS et al., 2020).
Metodologia
Trata-se de um relato de caso de uma paciente de 53 anos, portadora de diabetes mellitus tipo II, que obteve a remissão de sua doença por meio de uma associação inicial de tratamento farmacológico e não farmacológico, e posterior manutenção da meta terapêutica somente com alimentação saudável e atividade física, após perda ponderal de 22 quilos.
Este estudo observacional descritivo utilizou como instrumento para a coleta de dados as consultas de acompanhamento realizadas durante um ano e meio e análise posterior do prontuário digital de uma paciente que realizou acompanhamento em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), gerida por uma instituição terceirizada.
Inicialmente, foi realizado convite de participação à paciente por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), tendo esta consentido total acesso ao seu prontuário digital, onde estão contidas as informações fornecidas no seguimento das consultas e a descrição dos resultados dos exames apresentados. Foi assegurada, por meio do TCLE, completa confidencialidade e privacidade dos dados e orientados riscos e benefícios desta pesquisa.
Para avaliação do caso clínico frente às evidências científicas mais atualizadas sobre o tratamento do Diabetes Mellitus tipo II (DM2), realizou-se pesquisa e avaliação crítica da literatura nas bases de dados PubMed, Scielo e Medline. Os artigos considerados mais relevantes e atuais foram selecionados a fim de dar base à discussão envolvida neste relato de caso. Além disso, foi realizada criteriosa revisão das diretrizes nacionais e internacionais acerca do tratamento do DM2.
Após revisão da literatura, foi realizada discussão com o objetivo de avaliar as evidências obtidas quando em comparação com o caso relatado e seus resultados.
Relato do Caso
Mulher, 53 anos, com diagnóstico de diabetes mellitus tipo II, obesidade grau I e síndrome metabólica aos 38 anos (2009), cursa com remissão dessas doenças crônicas há 15 anos após a perda de 22 quilos, no mesmo ano do diagnóstico (2009), através de mudanças do estilo de vida.
A paciente iniciou o acompanhamento em consultório no início de 2023, para seguimento no tratamento das doenças crônicas que possui e relatou a remissão de suas patologias, que foi confirmada através de exames laboratoriais. Em sua primeira consulta, foi colhida sua história patológica pregressa, comprovando os diagnósticos com exames de 2009, medicações que fez uso e como realizou o tratamento farmacológico e não farmacológico relatado a seguir – tendo sido todas essas informações retiradas do prontuário digital das consultas realizadas.
O diagnóstico de diabetes mellitus tipo II foi dado mediante glicemia de jejum de 252 mg/dL e hemoglobina glicada (HbA1c) de 8,2%. O diagnóstico de obesidade foi dado mediante cálculo do IMC (valor de 31,02 kg/m²; com peso inicial de 75,4 kg e altura de 1,56 m²). E, por fim, o diagnóstico de síndrome metabólica foi dado mediante presença de três critérios (sendo suficientes, para o diagnóstico, presença de três dos cinco critérios), sendo eles: presença de obesidade central, com circunferência da cintura superior maior que 88 cm (102 cm na primeira consulta), diagnóstico de diabetes e pressão arterial sistólica maior que 130 e/ou pressão arterial diastólica maior que 85 (PAS de 150 mmhg e PAD 100 mmhg, em aferição realizada na primeira consulta).
Foi proposto, para o diabetes, como tratamento inicial, associação entre tratamento não medicamentoso (alimentação hipocalórica e exercícios físicos de intensidade moderada) e medicamentoso (dupla terapia). Como tratamento não medicamentoso foi proposto dieta hipocalórica baseada em quatro refeições por dia, sem orientação de profissional especializado em nutrição, totalizando aproximadamente 1200 kcal/dia, considerando ingesta equilibrada de macronutrientes (carboidratos, lipídios e gorduras – quantidades e grupos alimentares especificados na tabela 1), com orientações de fácil compreensão acerca dos grupos alimentares (fornecida tabela de substituições com calorias equivalentes) e das medidas dos alimentos (um copo americano; uma xícara de chá; uma colher de sopa e uma colher de chá, com os alimentos sendo medidos após o cozimento) e com recomendações sobre alimentos hipercalóricos e ultraprocessados a serem evitados (açúcar, balas, chocolates, bombons, mel, bolos, tortas, geleias, leite condensado, refrigerantes, cerveja, vinho, champanhe, alimentos fritos, maionese, massas – recomendações individualizadas, de acordo com o hábito de consumo prévio da paciente). Não foi indicado uso de nenhuma suplementação alimentar.
Também como parte do tratamento não medicamentoso foi orientada a realização de exercícios físicos de intensidade moderada, tendo a paciente optado por realizar exercício resistido (musculação) e aeróbico (corrida), durante duas horas, com uma hora para cada modalidade, cinco vezes por semana, sem acompanhamento com profissional de educação física.
Como tratamento medicamentoso, inicialmente foi proposto uso de dupla terapia com antidiabéticos, tendo sido prescrita metformina 500 mg, um comprimido após o café da manhã e um comprimido após o jantar, e glicazida 30 mg, um comprimido antes do café da manhã. Não foi proposto nenhum medicamento para tratamento da obesidade.
Tabela 1 – Padrão de consumo energético e macronutrientes propostos em tratamento não medicamentoso (valores aproximados)
Parâmetros | Consumo diário |
Calorias (kcal/dia) | 1200 |
Carboidratos (g/dia) | 75g |
Proteínas (g/dia) | 112g |
Gorduras (g/dia) | 75g |
A paciente persistiu com ambos os tratamentos, desafiando-se a criar novos hábitos e encontrando neles prazer. Obteve por meio da constância dos novos comportamentos a perda de aproximadamente 22 kg em 7 meses.
Durante a progressão da perda de peso, após 10,1 kg perdidos, no 4º mês de tratamento, a paciente passou a apresentar episódios de hipoglicemia, tendo sido desprescrita, inicialmente, a medicação glicazida, porém mantendo-se a metformina, obtendo novo controle glicêmico. Após a perda de mais 6,7 kg, a paciente passou a apresentar novamente sintomas de hipoglicemia, com nova desprescrição de metade da dosagem de metformina proposta inicialmente, mantendo-se somente um comprimido de metformina pela manhã. Por fim, com mais 5,4 kg perdidos, totalizando aproximadamente 22 kg, a paciente apresentou novamente sintomas hipoglicêmicos, o que justificou a retirada completa da medicação e manutenção somente do tratamento não medicamentoso.
Foram realizadas três consultas durante o primeiro ano (2009) e uma consulta no início do ano posterior (2010), tendo sido possível comparar o peso inicial e final, alteração do IMC, bem como os valores de glicemia de jejum e hemoglobina glicada antes e depois do tratamento instituído, conforme tabela 2.
Posteriormente à perda de peso e melhora dos parâmetros de controle evidenciados por meio dos exames laboratoriais, a paciente refere ter perdido o seguimento inicial em consultório, por desafios pessoais e familiares, retornando às consultas de acompanhamento semestral de diabetes, para avaliação da meta terapêutica por meio de HbA1c, somente vários anos depois, em 2023. Apesar da perda do seguimento, refere ter conseguido manter os novos hábitos aprendidos, bem como seu peso final (aproximadamente 53 kg), após todas as mudanças comportamentais.
Tabela 2 – Parâmetros da paciente avaliados no início e após 12 meses de tratamento (2009)
Parâmetros avaliados | 1ª Consulta | 2ª consulta | 3ª consulta | 4ª consulta |
Peso (kg) | 75,4 | 65,3 | 58,6 | 53,2 |
IMC (kg/m2) | 31,02 | 26,87 | 24,11 | 21,89 |
Hemoglobina glicada (%) | 8,2% | 7,0% | 6,5% | 6,1% |
Nas últimas três consultas, durante um ano e meio de seguimento, a paciente segue com bom controle glicêmico, evidenciados por meio de exames laboratoriais (tabela 3), mesmo sem uso de medicações.
Tabela 3 – Valores de HbA1c demonstrados em consultório, com consultas de 6 em 6 meses
Datas dos exames realizados | Valores de HbA1c |
1ª consulta | 5,6% |
2ª consulta | 5,4% |
3ª consulta | 5,3% |
Como benefícios secundários, a paciente também obteve redução da circunferência da cintura superior para 76 cm, e normalização pressórica, com médias abaixo de 130 mmhg de PAS e 85 mmhg de PAD, obtendo remissão da síndrome metabólica.
Discussão
O caso da paciente, que alcançou e manteve a remissão do Diabetes Mellitus tipo II (DM2) através de mudanças no estilo de vida, é exemplar para compreender o potencial das intervenções não farmacológicas no manejo dessa condição crônica. Inicialmente tratada com medicamentos antidiabéticos em conjunto com modificações no estilo de vida, a paciente conseguiu, após a desprescrição dos medicamentos, manter a normoglicemia exclusivamente por meio de uma dieta hipocalórica e prática regular de atividade física.
O estudo de Lean et al. demonstrou que a perda de peso substancial, na ordem de 10-15%, pode levar a melhorias significativas na função das células beta pancreáticas e na sensibilidade à insulina. Essa perda de peso é fundamental para a reversão do quadro de hiperglicemia, um dos pilares da remissão do DM2. A paciente deste estudo perdeu aproximadamente 29% do seu peso corporal inicial, superando os índices médios relatados em muitos estudos, o que sugere uma correlação direta entre a magnitude da perda de peso e a durabilidade da remissão. Evert et al. reforça que perdas de peso mais elevadas estão associadas a melhores desfechos clínicos, incluindo a possibilidade de remissão prolongada.
Além da perda de peso, a dieta adotada pela paciente, rica em fibras e com baixo índice glicêmico, desempenhou um papel crucial no controle glicêmico. Dietas com essas características têm sido associadas a melhorias nos marcadores metabólicos e à redução do risco de complicações cardiovasculares em pacientes com DM2. A inclusão de alimentos integrais, frutas, vegetais e proteínas magras, como seguidos pela paciente, está alinhada com as recomendações das diretrizes nutricionais mais recentes. A importância da qualidade dos carboidratos consumidos é especialmente relevante no manejo do DM2, dado que a substituição de carboidratos refinados por opções de baixo índice glicêmico pode melhorar o perfil glicêmico e reduzir a necessidade de medicamentos (DROUIN-CHARTIER et. al, 2019; REYNOLDS et al., 2020).
A atividade física, outro pilar no tratamento da paciente, é amplamente reconhecida por seus benefícios na melhora da sensibilidade à insulina e na redução da glicemia. Estudos longitudinais, como o Look AHEAD, indicam que a combinação de exercícios aeróbicos e resistidos é eficaz não apenas para o controle glicêmico,
mas também para a redução de complicações cardiovasculares, que são prevalentes em pacientes com DM2. Segundo Lear et al., a prática regular de atividade física, como a adotada pela paciente, melhora a captação de glicose pelos músculos, independentemente da ação da insulina, o que é crucial para a manutenção da normoglicemia em pacientes com resistência à insulina.
Outro aspecto importante deste caso é a transição bem-sucedida do tratamento farmacológico para o não farmacológico. Inicialmente, a paciente utilizou medicamentos antidiabéticos em conjunto com mudanças no estilo de vida, o que é uma prática comum para alcançar um controle glicêmico rápido e eficaz. No entanto, com a melhora na sensibilidade à insulina e a perda de peso, foi possível descontinuar os medicamentos, mantendo o controle da glicemia apenas com a dieta e o exercício físico. Essa abordagem gradual foi recomendada pela American Diabetes Association para evitar complicações como hipoglicemia e para permitir uma adaptação segura do organismo às novas condições metabólicas.
Apesar dos resultados positivos, é importante reconhecer os desafios associados à manutenção das mudanças no estilo de vida a longo prazo. A adesão a dietas restritivas e a um regime regular de exercícios pode ser difícil de sustentar, especialmente sem suporte contínuo. Fatores como suporte social, motivação intrínseca e acompanhamento médico são cruciais para garantir a continuidade das práticas saudáveis adotadas pela paciente. O estudo de Maula et al. destaca a importância de intervenções comportamentais e suporte psicossocial no manejo do DM2, sugerindo que a personalização do acompanhamento pode ser a chave para o sucesso a longo prazo.
O sucesso observado no caso da paciente também ressalta a necessidade de uma abordagem integrada e multidisciplinar no manejo do DM2. Além da dieta e do exercício físico, o suporte psicológico e educacional desempenhou um papel fundamental na manutenção das mudanças no estilo de vida. A educação continuada sobre o DM2 e suas complicações, juntamente com a motivação constante para a adoção de hábitos saudáveis, pode ajudar a prevenir recaídas e promover a remissão sustentada da doença. Powers et al. reforça a importância de programas de educação e suporte no manejo do DM2, destacando que intervenções desse tipo estão associadas a melhores desfechos clínicos e a uma maior qualidade de vida para os pacientes.
Em resumo, o caso relatado exemplifica como a combinação de perda de peso, dieta adequada e atividade física pode levar à remissão do DM2, mesmo em pacientes que inicialmente necessitavam de tratamento farmacológico. A literatura atual apoia fortemente essa abordagem, sugerindo que, para muitos pacientes, a remissão do DM2 é uma meta alcançável desde que haja comprometimento com as mudanças no estilo de vida e suporte contínuo. Este relato contribui para a literatura existente ao reforçar a viabilidade e a eficácia das intervenções não farmacológicas no tratamento do DM2, especialmente quando suportadas por uma abordagem multidisciplinar.
Considerações Finais
O presente trabalho apresenta o relato de caso de uma paciente com Diabetes Mellitus tipo II (DM2) que alcançou e manteve a remissão da doença exclusivamente por meio de intervenções não farmacológicas, após a desprescrição dos medicamentos antidiabéticos. Este caso exemplifica a eficácia das mudanças no estilo de vida, incluindo uma dieta hipocalórica rica em fibras e de baixo índice glicêmico, associada à prática regular de atividade física, no manejo e controle do DM2.
A literatura científica atual reforça que, embora o DM2 seja uma doença crônica, a remissão é uma meta viável para muitos pacientes, desde que haja um compromisso contínuo com intervenções comportamentais e um suporte multidisciplinar adequado. O sucesso obtido pela paciente, com uma perda de peso significativa e o consequente controle glicêmico sustentado, destaca a importância de abordagens personalizadas que combinam dieta, exercício físico e acompanhamento psicológico.
Além disso, este relato de caso contribui para a literatura ao evidenciar que a remissão do DM2 pode ser alcançada em cenários clínicos reais, reforçando a importância das intervenções não farmacológicas como uma alternativa eficaz ao tratamento medicamentoso.
Diante disso, é essencial reconhecer que, para a manutenção da remissão do DM2 a longo prazo, é necessário um acompanhamento contínuo, suporte psicológico e programas educacionais que incentivem a adesão às mudanças no estilo de vida. A experiência da paciente relatada sugere que, com o suporte adequado, é possível não apenas controlar, mas também reverter o DM2, proporcionando uma melhoria significativa na qualidade de vida.
Referências
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1 Médica Residente em Medicina de Família e Comunidade pela Universidade Evangélica de Goiás. E-mail: dra.isabellaristov@gmail.com
2 Médico Especialista em Medicina de Família e Comunidade e preceptor do Programa de Residência de Medicina de Família e Comunidade da Universidade Evangélica de Goiás. E-mail: medicodefamilia10@gmail.com