REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102412071552
Laysa Gabrielle Fonseca Sales ¹
Bento Herculano Duarte Neto ²
RESUMO
O trabalho rural, historicamente, possui traços de desvalorização e negligência quando comparado às atividades laborais urbanas. Esse descaso também foi percebido na legislação brasileira durante anos, uma vez que esse tipo de trabalho apenas foi observado e regulamentado décadas depois da promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Este trabalho aborda a evolução do ordenamento jurídico brasileiro em relação aos direitos dos trabalhadores rurais, considerando os obstáculos e os impasses históricos enfrentados. O objetivo geral do presente trabalho, por sua vez, circunda em relatar a importância jurídica da legislação trabalhista, sobretudo no que diz respeito às questões fiscalizatórias e protecionistas; enquanto os objetivos específicos se moldam nas dificuldades sociais enfrentadas por esses trabalhadores. A metodologia utilizada nesse artigo é baseada em legislações e pesquisas acadêmicas e científicas que se destacam ao tema, sendo, portanto, uma pesquisa de cunho bibliográfico.
Palavras–Chaves: Trabalho rural; Legislação.
1 INTRODUÇÃO
O ato de trabalhar, para alguns pensadores históricos, é tido como uma atividade pertencente unicamente aos seres humanos, visto que requer habilidades as quais não são encontradas em outras espécies de animais. Segundo o filósofo e economista do século XIX, Karl Marx, “[…] o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade.”.
O que se observa é que o ser humano, antes de realizar a atividade propriamente dita, já havia pensado e formulado todo o trabalho previamente em sua mente; ao contrário dos animais que desempenham apenas por instinto. Essa premissa criada por Marx há dois séculos ainda é estudada e debatida na atualidade, sobretudo porque sustenta a concepção de que o trabalhador necessita de empenho mental para desenvolver seu trabalho, ainda que seja uma atividade prioritariamente braçal. Esse esforço desprendido pelo trabalhador recebe, em contrapartida, a garantia de direitos e de normas protecionistas para resguardá-lo de abusos, independentemente de qual seja a atividade laboral. Essa ideia, em tese, também deveria ser aplicada ao trabalho rural, mas não foi esse o pensamento da legislação brasileira durante décadas.
A atividade no campo demorou anos para ser considerada trabalho, isto é, sequer era reconhecida como ofício pelo ordenamento jurídico. Essa negligência ignora o pensamento de Marx e desmerece o conhecimento e a dedicação desses trabalhadores, porquanto minimiza o fato de que compreender as nuances da vida rural é uma tarefa difícil, demorada e peculiar que requer experiência e conhecimento prático os quais, possivelmente, jamais seriam aprendidos em meio urbano.
Em uma análise histórica, nota-se que o período colonial brasileiro, marcado pelos trabalhos agrícola e pecuarista, é um importante marco para o desenvolvimento do labor rural no país. A preponderância dessas atividades na época não foi suficiente para torná-las honrosa, já que eram vistas como forma de exploração e de punição, nunca como trabalho digno. Sendo assim, os senhores de engenhos e os homens brancos jamais desempenharam essas ocupações.
“O trabalho nesses engenhos deveria ser realizado de maneira compulsória. Por quê? Primeiro, porque, como bem explica Caio Prado, se tratava de uma colonização que visava a exploração, a obtenção de lucros, com isso quanto mais se trabalhasse maior eles seriam; e segundo porque a qualidade técnica dos equipamentos era baixa, sobrecarregando o trabalho humano. Com isso, se tornava necessária a mão-de-obra escrava.” (BRASIL ESCOLA).
A atividade rural, naquele período, não era reconhecida como profissão e, por esse motivo, não havia qualquer tipo de preocupação com o limite de horas diárias trabalhadas, a prevenção contra acidentes e, muito menos, o salário. Em virtude do desprezo, apenas pessoas escravizadas exerciam essas atribuições, já que o cenário da época não permitia que homens bem sucedidos “perdessem o prestígio dentro do campo”.
As dificuldades que circundam o trabalho rural, nota-se, não são questões hodiernas. Apesar dos avanços na legislação, ainda há traços fortes de negligência e de desrespeito que permeiam desde a colonização. A exploração dessa atividade tem raízes profundas e ainda é uma realidade no Brasil. As dificuldades de acesso ao conhecimento, a deficiência da educação e os impasses enfrentados pela fiscalização são pilares fortes que contribuem para a permanência ou o aumento da exploração e do desrespeito ao trabalhador rural.
2 A HISTÓRIA DA REGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO RURAL NO BRASIL
O Brasil tornou-se independente de Portugal em 07 de setembro de 1822 e “Há 201 anos, […], Dom Pedro de Alcântara de Bragança – à época príncipe regente do Brasil – proferiu o célebre grito “Independência ou morte!”, às margens do Rio Ipiranga.” (TRE – PR).
Dentre as décadas da história brasileira, algumas merecem destaque quando se trata de trabalho. Apesar dos mais de 200 anos de independência, apenas em 1º de maio de 1943, no governo do então Presidente Getúlio Vargas, houve a promulgação de uma lei que se destinava exclusivamente a regulamentar o trabalho no Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – Decreto-Lei Nº 5.452. A legislação trouxe importantes direitos e deveres aos empregados e empregadores, porém de forma restrita e explícita ao trabalho urbano.
“Em 1943, ano do advento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o Brasil era um país essencialmente agrário. A maior parte de sua população vivia no campo, e sua economia dependia quase que integralmente do esforço agrícola. Não obstante esta realidade, o capítulo VII da primeira redação da CLT excluía categoricamente o trabalhador rural da aplicação de seus preceitos, conferindo-lhe tratamento diferenciado em relação ao trabalhador urbano.” (Ministério do Trabalho e Emprego).
A CLT, portanto, determinou expressamente que não haveria a aplicação dos seus dispositivos para o trabalho rural:
Art. 7º Os preceitos constantes da presente Consolidação salvo quando fôr em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam : (Redação dada pelo Decreto-lei nº 8.079, 11.10.1945)
b) aos trabalhadores rurais, assim considerados aqueles que, exercendo funções diretamente ligadas à agricultura e à pecuária, não sejam empregados em atividades que, pelos métodos de execução dos respectivos trabalhos ou pela finalidade de suas operações, se classifiquem como industriais ou comerciais;
Segundo a Justiça do Trabalho, “A Consolidação unificou toda a legislação trabalhista então existente no Brasil e foi um marco por inserir, de forma definitiva, os direitos trabalhistas na legislação brasileira. Seu objetivo principal é regulamentar as relações individuais e coletivas do trabalho, nela previstas. Ela surgiu como uma necessidade constitucional, após a criação da Justiça do Trabalho.” Apesar disso, esse dispositivo normativo trouxe como exceção aos seus preceitos o trabalho rural que, por sua vez, ainda não possuía legislação própria. Esse cenário também reproduz, possivelmente, os ideais sociais e políticos daquele momento da história, os quais poderiam considerar o trabalho urbano como a única forma de labor relevante. “Tal situação perdurou até o ano de 1963, quando entrou em vigor o Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado pela Lei nº 4.214, de 02 de março de 1963, que revogou a citada disposição, revogação esta convalidada no artigo 1º da Lei nº 5.889, de 08 de junho de 1973, que regula, atualmente, as relações do trabalho rural.” (Ministério do Trabalho e Emprego). Apenas em 1973, 30 anos após a publicação da CLT, foi promulgada a Lei Nº 5.889 que instituiu normas reguladoras do trabalho rural e que permanece até os dias hodiernos.
A partir da instituição de uma nova legislação voltada exclusivamente ao trabalho rural, houve a necessidade de definir quem é considerado empregado e empregador rural, assim como há no trabalho urbano. Essa conceituação também é importante para evitar que haja caracterização indevida, isto é, qualificar o trabalhador de modo equivocado, retirando-o algum direito que teria garantido ou concedendo-o sem o merecimento jurídico. De acordo com a Lei Nº 5.889/73:
“Art. 2º Empregado rural é toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural, sob a dependência deste e mediante salário.
Art. 3º – Considera-se empregador, rural, para os efeitos desta Lei, a pessoa física ou jurídica, proprietário ou não, que explore atividade agro-econômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de prepostos e com auxílio de empregados.
§ 1o Inclui-se na atividade econômica referida no caput deste artigo, além da exploração industrial em estabelecimento agrário não compreendido na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, a exploração do turismo rural ancilar à exploração agroeconômica. (Redação dada pela Lei nº 13.171, de 2015).
Art. 4º – Equipara-se ao empregador rural, a pessoa física ou jurídica que, habitualmente, em caráter profissional, e por conta de terceiros, execute serviços de natureza agrária, mediante utilização do trabalho de outrem. (Vide Lei nº 6.260, de 1975).”
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também trouxe dispositivos, por meio da Convenção Nº 141, que caracterizam o trabalho rural.
Convenção 141 – OIT
“Art. 2º – 1. Para efeito da presente Convenção, a expressão “trabalhadores rurais” abrange todas as pessoas dedicadas, nas regiões rurais, a tarefas agrícolas ou artesanais ou a ocupações similares ou conexas, tanto se se trata de assalariados como, ressalvadas as disposições do parágrafo 2 deste artigo, de pessoas que trabalhem por conta própria, como arrendatários, parceiros e pequenos proprietários.”
“Já de início, vê-se que a própria Convenção da OIT distingue, no mínimo, duas espécies distintas de trabalhadores rurais. Trata-se, portanto, de expressão genérica, que engloba tanto o empregado rural como aquele que se dedica, por conta própria, ao labor rural, seja como arrendatário, parceiro, meeiro ou em sua própria propriedade.” (Instituto de Estudos Previdenciários, Trabalhistas e Tributários – EIPREV).
A preocupação da lei em trazer a definição para esses partícipes é garantir que nem toda pessoa que realize atividade em ambiente rural seja considerada trabalhador rural. De acordo com um documento publicado pela Receita Federal, “Não se considera atividade rural o beneficiamento ou a industrialização de pescado in natura; a industrialização de produtos, tais como bebidas alcoólicas em geral, óleos essenciais, arroz beneficiado em máquinas industriais, o beneficiamento de café (por implicar a alteração da composição e característica do produto); a intermediação de negócios com animais e produtos agrícolas (comercialização de produtos rurais de terceiros); a compra e venda de rebanho com permanência em poder do contribuinte em prazo inferior a 52 (cinquenta e dois) dias, quando em regime de confinamento, ou 138 (cento e trinta e oito) dias, nos demais casos (o período considerado pela lei tem em vista o tempo suficiente para descaracterizar a simples intermediação, pois o período de permanência inferior àquele estabelecido legalmente configura simples comércio de animais); compra e venda de sementes; revenda de pintos de um dia e de animais destinados ao corte; o arrendamento ou aluguel de bens empregados na atividade rural (máquinas, equipamentos agrícolas, pastagens); prestação de serviços de transporte de produtos de terceiros etc.”.
Resta claro que não são todas as atividades realizadas em ambiente rural que são consideradas como trabalho no campo. O Ministério do Trabalho e Emprego; ao publicar a Norma Regulamentadora do Trabalho Nº 31 (NR – 31) que trata da Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, Pecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Aquicultura; delimitou, pelo próprio título da norma, quais áreas serão consideradas como atividade rural para efeito de aplicação dessa norma.
NR – 31
“31.2.1 Esta Norma se aplica a quaisquer atividades da agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura, verificadas as formas de relações de trabalho e emprego e o local das atividades.”
A preocupação com a saúde e a segurança dos trabalhadores rurais veio à tona apenas em 2005, com a publicação da NR 31, isto porque, antes de 1988, essas questões não eram reparadas e muito menos debatidas em ambientes rurais, sendo tratadas à margem da economia e da sociedade. O marco temporal de 1988 tem destaque pela sua importância política, visto que foi o ano da promulgação da atual Constituição Federal, a qual mudou a visão que era tida sobre o trabalho rural brasileiro até então. A Carta Magna dispôs que, a partir daquele momento, os trabalhadores urbanos e rurais teriam os mesmos direitos, deveres e tratamentos.
“Em 1988, a Constituição da República equiparou os direitos trabalhistas e previdenciários de trabalhadores rurais aos dos urbanos, entre eles a extensão do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). O prazo prescricional só foi equiparado mais tarde, com a Emenda Constitucional 28/2000.” (Tribunal Superior do Trabalho).
A Constituição Federal, ao estender ao trabalhador rural todos os direitos que já eram garantidos ao urbano, reconhece a importância e a valorização do ambiente rural para a economia e para o desenvolvimento, além de trazer dignidade ao trabalhador.
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”. (Constituição Federal).
Essa demora legislativa em reconhecer o mérito do trabalho rural denota o ideal político e social que vigorava, em tese, até 1988. Embora haja reconhecimento constitucional, o presente trabalho tem o objetivo de debater as dificuldades sociais e fiscalizatórias atuais que cercam essa atividade, as quais ainda refletem traços de preconceito trazidos do passado.
3 AS DIFICULDADES SOCIAS ENFRENTADAS NO CAMPO
A atividade rural é cercada por dificuldades desde a sua origem, dentre elas o preconceito. Apesar da evolução legislativa e social, ainda há desrespeito e menosprezo pelo labor rural que perdura até a atualidade. Há apenas 35 anos, período extremamente curto quando se trata de história, os direitos dos trabalhadores rurais foram equiparados aos dos urbanos, ratificando a demora jurídica e legislativa em relação à garantia de prerrogativas para esse setor. Essa lentidão é reflexo de um imaginário social e político de desvalorização da atividade rural a qual é impulsionada, sobretudo, pelas dificuldades educacionais e financeiras que circundam o ambiente rural.
O nível de escolarização está intimamente relacionado ao tamanho da renda de uma pessoa, isto porque quanto maior o grau de estudo, maior tende a ser sua retribuição salarial. Em um ambiente rural, não é raro deparar-se com relatos de péssimas condições de infraestrutura das escolas, as quais dificultam a permanência dos estudantes nos colégios e contribui para alavancar as taxas de evasão.
“[…] No ensino fundamental no Brasil, as maiores taxas de defasagem escolar são encontradas nas áreas rurais (24,9% de estudantes brasileiros de escolas rurais e 14,9% de escolas urbanas), conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira […]. Ressalta-se que nos anos finais do ensino fundamental, a taxa de defasagem escolar sobe para 36,3% nas escolas rurais brasileiras.” (Fundação Carlos Chagas).
O trabalho rural, como já foi tratado, ainda é pouco reconhecido e valorizado. Sabendo disso, não é difícil compreender os motivos que contribuem para o aumento da evasão escolar nesses ambientes. Famílias que dependem da atividade rural para sobreviver não podem dedicar-se aos estudos como gostariam, uma vez que a necessidade de comida é mais urgente que a sonhada formação escolar. A contraprestação que é paga a esses trabalhadores é, por vezes, estreita e escassa, logo a opção de trabalhar menos e estudar mais não existe para essas pessoas. Essa realidade diminui a capacidade social dos indivíduos de compreender seus direitos, em especial quando se trata de trabalho, levando-os a exercer qualquer tipo de labor em troca de uma retribuição salarial injusta e desproporcional, além de se sujeitar a péssimas condições de trabalho. A pouca qualificação somada à urgência de alimento e itens domiciliares básicos conduzem essas pessoas ao trabalho rural precário, porquanto se torna a única alternativa frente às opções que encontram.
Por outro lado, existe um problema ainda mais grave que ultrapassa a seara trabalhista, a escravidão contemporânea. Submeter alguém a trabalho análogo à escravidão é crime de acordo com o Código Penal Brasileiro:
“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1 o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 2 o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I – contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)”
É importante ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui entendimento de que não é necessário que haja a restrição de liberdade para a caracterização do crime de escravidão, isto é, a pessoa pode até mesmo dormir todos os dias em sua residência, mas, se houver a presença de outros agravantes listados no artigo 149 do Código Penal, haverá o crime.
“A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento a recurso do Ministério Público Federal (MPF) para restabelecer a condenação de um fazendeiro do Pará pelo delito de submissão de trabalhadores a condição análoga à de escravo. O colegiado reafirmou a jurisprudência segundo a qual o crime pode ser configurado independentemente de haver restrição à liberdade de ir e vir dos trabalhadores. Segundo o ministro Nefi Cordeiro, relator, nos termos da jurisprudência do STJ, a configuração do crime está condicionada à demonstração de submissão a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou condições degradantes – situações que foram comprovadas no processo em análise.” (Superior Tribunal de Justiça).
A escravidão contemporânea é uma realidade frequente em ambientes rurais, os quais são, por vezes, distantes de regiões mais povoadas, o que dificulta a realização de denúncias e o trabalho da fiscalização. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, obtidos pelo Canal G1, “As vítimas resgatadas de trabalho análogo à escravidão no campo chegaram a 1.408 no primeiro semestre de 2023, um recorde para o período em 10 anos e um aumento de 44% em relação a iguais meses de 2022.”. Ainda de acordo com esse veículo de comunicação, em 2023, “Os resgates de vítimas de trabalho escravo em áreas rurais já haviam disparado e batido recorde no início do ano, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)”.
O número de resgates aumenta porque o índice de pessoas escravizadas também se eleva, ou seja, embora haja uma maior porcentagem de indivíduos retirados dessas condições, o número de pessoas que permanecem nessa realidade ainda é preocupante.
Manter-se em situação análoga à escravidão é uma obrigatoriedade e uma necessidade para essas pessoas, porque não enxergam outra alternativa de sobrevivência na realidade em que vivem. O trabalho, que deveria ser objeto de dignidade ao homem conforme expressou o sociólogo alemão Max Weber, destrói a autoestima e a vida das pessoas quando são submetidas a trabalho escravo. O sofrimento físico e psicológico causados por punições severas como agressões físicas, falta de alimento, ameaças, retenção de documentos pessoais e dívidas incessantes com os patrões são alguns exemplos da violência sofrida por esses trabalhadores, os quais são obrigados a permanecer nessas condições, seja porque não há outra escolha, seja porque é impedindo de deixar as atividades pelo patrão.
Ainda há um pensamento social muito forte de que as pessoas optam por esse sofrimento, porquanto não há nada, em tese, que as impeçam de deixar esse labor. Todavia, muitos são os motivos que impõem essa realidade para esses cidadãos. O primeiro e mais visível é a proibição de locomoção, ou seja, impedir que o trabalhador deixe o local do labor e, caso ele tente fugir, é morto ou recebe punições graves como a ausência de comida. Dentre as demais questões, citam-se as dívidas contraídas com os patrões, as quais nunca são quitadas e o trabalhador praticamente paga para trabalhar; e o desespero de não ter outra opção para sobreviver, já que a baixa escolarização e qualificação reduzem drasticamente as oportunidades de emprego digno.
“Um dos casos de grande repercussão neste ano ocorreu durante a safra de uva, em fevereiro, quando 207 trabalhadores foram encontrados em situações degradantes de trabalho, no município de Bento Gonçalves (RS). Eles eram contratados pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA, que prestava serviços a três grandes vinícolas da região: Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton. As plantações de uva são consideradas lavouras permanentes, a 2ª maior atividade rural com vítimas resgatadas (331) de trabalho análogo à escravidão, no 1º semestre de 2023. Elas só perderam para as lavouras de cana-de-açúcar, onde 532 pessoas foram resgatadas. Uma das grandes operações ocorreu em março, em Goiás, quando o MTE flagrou 212 trabalhadores em condições degradantes, em fazendas de cana que iam do sul de Goiás até a cidade de Araporã, em Minas Gerais.”. (Comissão Pastoral da Terra).
As atribuições do Ministério do Trabalho e Emprego, por meio dos Auditores-Fiscais do Trabalho (AFT), são essenciais para combater essa violência e resgatar os trabalhadores. Para auxiliar essas pessoas e combater a crueldade à que são submetidas; o Decreto Nº 4.552/2002, que regulamenta a inspeção do trabalho; determinou que compete ao AFT, além da lavratura do auto de infração contra os empregadores, o encaminhamento à autoridade cabível sobre as infrações à legislação, nesse caso o descumprimento do Código Penal.
“Decreto Nº 4.552/02
Art. 18. Compete aos Auditores-Fiscais do Trabalho, em todo o território nacional:
[…]
XVIII – lavrar autos de infração por inobservância de disposições legais;
XXII – levar ao conhecimento da autoridade competente, por escrito, as deficiências ou abusos que não estejam especificamente compreendidos nas disposições legais;”
A importância da fiscalização e do resgate de pessoas escravizadas é indiscutível e indispensável, entretanto a necessidade de amparar esses cidadãos após todo o sofrimento é crucial. Sabendo disso, o ordenamento editou normas que garantem direitos a pessoas que foram libertadas de trabalhos análogos à escravidão, como o Seguro-Desemprego, assegurado pela Lei Nº 7.998 de 1990.
Lei Nº 7.998/90
“Art. 2º O programa do seguro-desemprego tem por finalidade: (Redação dada pela Lei nº 8.900, de 30.06.94)
I – prover assistência financeira temporária ao trabalhador desempregado em virtude de dispensa sem justa causa, inclusive a indireta, e ao trabalhador comprovadamente resgatado de regime de trabalho forçado ou da condição análoga à de escravo; (Redação dada pela Lei nº 10.608, de 20.12.2002)”
Nesses casos, não há necessidade de anotação e registro na Carteira de Trabalho e Previdência Social para ter o direito garantido. O ordenamento jurídico brasileiro entendeu que proporcionar esse benefício é uma forma de reparar, pelo menos de imediato, o valor do trabalho que foi feito e, sobretudo, impedir que essas pessoas voltem ao cenário de violência. Assegurar essa proteção às vítimas pode garantir a tranquilidade de ter tempo e condições para procurar um trabalho que as valorize e que seja reconhecido pela lei. Um dos principais objetivos de políticas assistenciais, nesse âmbito, é evitar que as pessoas voltem a se tornar escravas contemporâneas, seja em ambiente urbano ou rural.
4 AS DIFICULDADES FISCALIZATÓRIAS NO AMBIENTE RURAL
O trabalho rural, como já tratado, possui características específicas para que seja considerado como tal. Nesse sentido, nota-se que o exercício desse ofício ocorre prioritariamente em ambientes mais afastados dos centros urbanos, em locais com pouca habitação e sem grandes áreas de acesso, sobretudo pelas peculiaridades que essas atividades podem exigir. Não é difícil compreender que o cultivo da agricultura e a criação de gado, por exemplo, possuem maior eficiência longe da região urbana, seja pela necessidade de extensão territorial, seja pelas características do solo.
Essa distância, por vezes necessária, “acaba ofuscando a importância do trabalho das pessoas do campo. Segundo o último Censo Agropecuário, realizado em 2006, a agricultura familiar representa mais de 80% dos estabelecimentos agropecuários do Brasil. Além disso, ela é a grande responsável pela maioria dos alimentos consumidos no País, cerca de 70%.”. (UEG – Universidade Estadual de Goiás).
Apesar de a Constituição Federal equiparar os trabalhadores urbanos e rurais quanto aos direitos trabalhistas, igualar ambas as atividades sem considerar as peculiaridades de cada uma não é o meio mais adequado para assegurar, de fato, a equiparação dita pela Carta Magna.
“O trabalho no campo requer muito esforço físico, é uma labuta pesada, rústica e contínua. A grande parte das atividades precisa de um cuidado diário e não espera. A professora Divina Aparecida Leonel, do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (Teccer/UEG), destaca que, no campo, o período do não-trabalho não quer dizer ociosidade, o dia de folga ou feriado não ocorre na mesma lógica que na cidade. De acordo com a professora “O não-trabalho do sujeito na lavoura, por exemplo, significa que ele está cuidando das suas criações, da sua casa ou do seu pomar, é uma lida constante. No setor leiteiro, por exemplo, que é a atividade produtiva mais importante na agricultura familiar no Brasil, o trabalho é diário. Tanto é que, quando o homem ou a mulher ficam doentes, quem os socorrem são os vizinhos da sua comunidade rural; o leite precisa ser tirado, porque existem perdas se aquele trabalho não for feito” analisa Divina Aparecida. A professora observa que, muitas vezes, nos acostumamos a enxergar o campo pela ótica romanceada, bucólica, como um lugar lindo e de descanso. No entanto, a realidade do homem e da mulher do campo é dura, e o seu trabalho deveria ser muito mais valorizado por quem vive na cidade.” (UEG – Universidade Estadual de Goiás).
A sociedade ainda não reconhece o trabalho rural com o mérito devido, mas a legislação caminha para que essa realidade seja alterada, a exemplo da Lei Nº 4.338 de 1964 que instituiu o dia 25 de maio como a data comemorativa do trabalhador rural.
“Lei Nº 4.338/64
Art. 1º É fixado o dia 25 de maio como a data comemorativa do trabalhador rural.”
O trabalho rural é, portanto, esquecido e, quando lembrado, romantizado. As atividades são diárias e o descanso é um luxo extremamente raro em virtude das condições que o trabalho impõe. O descanso pode até ocorrer em determinada atividade, mas há outra que necessita de cuidado, ou seja, o desligamento das obrigações nunca é completo. Todo esse cenário, somado à distância física e social do ambiente rural, contribue para dificultar e reduzir as fiscalizações trabalhistas. A Justiça do Trabalho, por óbvio, possui a maior obrigação quando se trata de fiscalização desse setor, entretanto outros mecanismos também auxiliam nessa conjuntura. O maior exemplo é a mídia que, desde o período do rádio, possui grande influência sobre o caminhar da sociedade, além de auxiliar na mudança situacional, de pensamento e de paradigmas. A mídia busca expor questões que estão próximas da maioria dos ouvintes ou que estão em destaque no cenário nacional ou mundial, e o trabalho rural, por sua vez, dificilmente se encaixa nesses critérios, sendo deixado de lado por esses instrumentos de comunicação.
Todas essas adversidades contribuem, indiretamente, para minimizar e reduzir as fiscalizações do trabalho rural pela Justiça do Trabalho e Emprego, ainda que seja uma obrigação desse instituto. Questões com impacto social, em sua maioria, tendem a ganhar maior destaque político e jurídico. A legislação brasileira dispõe sobre a necessidade de fiscalização das atividades que são consideradas trabalho, isto é, não as que são necessariamente assalariadas, uma vez que existe o trabalho escravo e sem remuneração, como já foi tratado nesse trabalho; mas aquelas que cumpram os requisitos para serem consideradas como tal.
Dentre todas as barreiras encontradas pela fiscalização do trabalho para salvaguardar os direitos dos trabalhadores, as tentativas de driblar ou até mesmo de sabotar essa supervisão são as mais desafiadoras. Casos em que os Auditores-Fiscais do Trabalho, ao cumprirem sua função de inspecionar as relações de trabalho, são violenta e criminalmente rechaçados, como o fato que ocorreu na região rural de Unaí – Minas Gerais em 2004. De acordo com o Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho, “O crime que ficou conhecido nacional e internacionalmente como Chacina de Unaí ocorreu em 28 de janeiro de 2004. Foram vítimas de emboscada na região rural de Unaí (MG) os Auditores-Fiscais do Trabalho Eratóstenes de Almeida Gonsalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e o motorista Ailton Pereira de Oliveira. A fiscalização foi considerada pela Delegacia Regional do Trabalho de Minas Gerais (hoje Superintendência) uma operação de rotina, embora houvesse muitas denúncias de exploração de trabalhadores na região. A Polícia Federal e o Ministério Público Federal fizeram as investigações e, em julho de 2004, anunciaram o desvendamento do caso, indiciando nove pessoas envolvidas como mandantes, intermediários e executores. O processo começou a correr no Tribunal Regional Federal da 1º Região, em Belo Horizonte.”.
A chacina de Unaí é um retrato do desrespeito aos trabalhadores, sejam aqueles que estavam sendo vítimas dos proprietários na região fazendária, sejam os Auditores-Fiscais do Trabalho que foram alvo de uma ação criminosa por realizar suas tarefas. Apenas “Em setembro de 2023, o Superior Tribunal de Justiça – STJ determinou a execução provisória das penas de Norberto Mânica, José Alberto de Castro e Hugo Alves Pimenta. O Tribunal Regional Federal de 6º Região (TRF 6) expediu, por sua vez, mandados de prisão para Antério Mânica e também Noberto Mânica. José Alberto de Castro, acusado de contratar os executores do crime, foi preso, no dia 13 de setembro e o principal mandante da Chacina de Unaí, Antério Mânica, apresentou-se, no dia 16 de setembro, na Sede da Polícia Federal, em Brasília.” (Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho).
A lenta resposta do Judiciário frente ao crime cometido contra os Auditores-Fiscais do Trabalho no desempenho de suas funções é mais um item da significativa lista de dificuldades e de embaraços que rodeiam a atividade fiscalizatória no país, sobretudo quando se trata do trabalho rural.
A legislação tenta preencher uma lacuna que está aberta desde o período colonial no Brasil, o desrespeito ao trabalhador. Todos os direitos que foram arduamente conquistados fazem parte dessa luta por reconhecimento e por valorização de uma classe essencial para o desenvolvimento de um país. Sabendo disso, a fiscalização do trabalho ganha destaque entre todas as garantias alcançadas pelos trabalhadores, uma vez que esse instituto é o instrumento que busca equilíbrio entre o bem-estar do trabalhador e o lucro econômico do empregador, sem que hajam abusos, principalmente advindos dos patrões, elo mais forte da relação de emprego.
5 CONCLUSÃO
A discussão acerca dos direitos conquistados e dos embaraços enfrentados pelo trabalho rural é ampla e longínqua. A regulamentação das legislações trabalhistas contemplou um nicho significativo de atividades consideradas trabalho, mas demorou algumas décadas para incluir o labor rural nessa seara. Durante séculos não houve interesse político e social em enxergar o trabalhador do campo como digno e necessário, porquanto havia um ideal que renegava e desvalorizava esse ofício, julgando-o como obrigação ou punição.
No final do século XX, iniciaram as primeiras tentativas de normatizar os direitos desses trabalhadores de forma tímida e retardatária. Nota-se que a luta por reconhecimento e valorização da atividade rural ainda é hodierna, visto que essas garantias são extremamente recentes em termos de história, sendo, não raro, ainda desmerecidas e negligenciadas. Nesse sentido, o atraso normativo é apenas um reflexo da concepção social e política de menosprezo pelo labor rural. Essa análise torna-se necessária para compreender que, embora tardiamente, o ordenamento jurídico enxergou o retrocesso legislativo que vivenciava e passou a editar deveres e, sobretudo, direitos aos trabalhadores rurais.
A regulamentação das leis trabalhistas trouxe consigo o enfoque para outros problemas que circundam esse tema, as dificuldades sociais e fiscalizatórias desse setor. O presente trabalho expôs, de forma sucinta, os principais impasses correlatos a essa temática que são enfrentados pelos trabalhadores rurais, dentre eles o baixo nível de escolaridade, a necessidade imediata por sobrevivência e as emboscadas contra a fiscalização do trabalho.
Portanto, o debate acerca da legislação trabalhista rural é necessário e crucial para compreender o tamanho da importância desses regulamentos, bem como observar o impacto que esses normativos produzem na vida das pessoas. É por meio da legislação que casos de abuso, violência e escravidão contemporânea são rechaçados e punidos devidamente. A magnitude do alcance territorial e social que a lei proporciona é difícil de mensurar, mas é percebida facilmente, ratificando a importância da elaboração e da revisão periódica desses institutos.
Por fim, toda a pesquisa debatida neste trabalho é relevante para aumentar a discussão sobre a atividade rural, bem como compreender a importância da legislação na proteção dos direitos desses trabalhadores. Este trabalho abordou o protagonismo do labor no campo frente ao desenvolvimento econômico do país e expôs a desvalorização e o desrespeito que recebe em contrapartida, oferecendo uma análise crítica e uma reflexão sobre a atual conjuntura trabalhista brasileira.
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