REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202411301023
Jânderson de Medeiros Cardoso1;
Gabriela Moretto dos Santos1;
Hugo Eduardo Peixoto2;
Erton Massamitsu Miyasawa3;
Luis Eduardo Marques Padovan4;
Valdir Gouveia Garcia4
RESUMO
Pacientes com comunicação buconasal enfrentam diversos desafios que comprometem sua qualidade de vida, incluindo dificuldades alimentares devido ao escape de líquidos e alimentos para a cavidade nasal. A fala também pode ser prejudicada, apresentando uma ressonância nasal acentuada, o que compromete a comunicação. Além disso, dependendo da gravidade do caso, podem ocorrer alterações na aparência facial, como no sorriso, no volume dos lábios e na harmonia estética. Este artigo trata-se de um relato clínico descreve uma reabilitação funcional e estética realizada por meio de implantes osseointegrados e uma prótese do tipo protocolo, combinados com uma prótese obturadora de palato removível fixada por encaixes de precisão, em uma paciente com sequela de fissura palatina causada por um acidente automobilístico.
Palavras-chave: Comunicação buconasal; prótese obturadora; implantes osseointegrados.
ABSTRACT
Patients with oro-nasal communication face numerous challenges that compromise their quality of life, including difficulties with eating due to the leakage of liquids and food into the nasal cavity. Speech can also be affected, often presenting with pronounced nasal resonance, which hinders effective communication. Additionally, depending on the severity of the case, facial appearance may be altered, impacting the smile, lip volume, and overall aesthetic harmony. This article presents a clinical case report describing a functional and aesthetic rehabilitation using osseointegrated implants and a protocol-type prosthesis, combined with a removable palatal obturator prosthesis retained by precision attachments, in a patient with sequelae of a cleft palate caused by a car accident.
Keywords: Buconasal communication; obturator prosthesis; osseointegrated implants.
INTRODUÇÃO
A fissura labiopalatina é a malformação congênita mais frequente na população humana, ocorre entre a 4 e a 7 semana gestacional. No Brasil ocorre uma média de 1 indivíduo afetado para cada 650 nascimentos.1
A fissura labiopalatina e a disfunção velo faríngea podem causar distúrbios da comunicação de muitas formas diferentes na articulação, ressonância, voz e linguagem.2 O manejo de pacientes com FLP (Fissura Lábio Palatina) é um desafio para médicos e dentistas. Além disso, os pacientes com FLP frequentemente apresentam problemas psicológicos além de complicações físicas.3 A fisiologia da deglutição compreende um processo coordenado que garante o transporte do bolo alimentar, líquidos ou saliva da cavidade oral até o estômago. Esse mecanismo envolve ações sincronizadas das estruturas orais, faríngeas e esofágicas, organizadas em três fases principais: a fase oral (voluntária), a fase faríngea (reflexa) e a fase esofágica (automática), todas controladas por complexas interações neuromusculares. A deglutição é um ato contínuo onde lábios, língua, arcada dentária, palato, e as bochechas executam movimento sincrônico e necessita de uma integridade tecidual para que não ocorra escapes de alimentos 4. A fase faríngea da deglutição é uma sequência complexa e integrada de eventos fisiológicos, que propiciam uma adequada passagem do alimento para o esôfago, e evita que o bolo se desvie e vá para a nasofaringe ou tome o caminho da árvore respiratória. 5 Quando o selamento velofaríngeo não é adequado, estabelece-se uma comunicação anormal entre a orofaringe e a nasofaringe, resultando em alterações nas funções de fonação, alimentação e audição. Na deglutição, essa falha pode levar a episódios de engasgos e refluxo nasal do alimento ou líquido ingerido.6
A fisiologia da fala envolve três processos sequenciais essenciais: a respiração, a fonação (gerada pelas cordas vocais na laringe) e a ressonância, que ocorre nas cavidades supraglóticas, como a cavidade oral e as fossas nasais. Essas cavidades funcionam como ressoadores, modificando e amplificando o som produzido na laringe. Para uma produção vocal adequada, é crucial que a vedação velofaríngea esteja intacta. Esta vedação é responsável por direcionar o fluxo de ar e as vibrações acústicas para a cavidade oral, durante a articulação dos sons orais, e para a cavidade nasal, nos sons nasais. Anormalidades, como aquelas causadas por fissuras palatinas, podem levar a distúrbios na fala, incluindo hipernasalidade, dificuldades na articulação e emissão de ar audível durante a fala.7
O objetivo deste relato de caso é apresentar a reabilitação funcional e estética de uma paciente com sequelas de fissura palatina, resultante de um acidente automobilístico, por meio da utilização de implantes osseointegrados e prótese do tipo protocolo, associada a uma prótese obturadora de palato removível, fixada com encaixes de precisão. O tratamento visou restaurar a função mastigatória, a estética facial e a qualidade de vida da paciente, proporcionando uma solução personalizada e eficaz para os desafios apresentados pela condição.
CASO CLÍNICO
Paciente feminina de 45 anos, compareceu ao serviço odontológico da Faculdade Tuiuti para tratamento com implantes dentais. Na história clínica informou que no ano de 2014 sofreu um acidente automobilístico onde ocorreu uma queda de motocicleta onde estava sendo conduzida pelo irmão, e nesta queda foi lançada com a face diretamente ao meio fio da calçada, onde já no local houve várias perdas dentárias e fraturas múltiplas da face. (Figura 1A – 1C)
Figura 1 – Avaliação clínica da paciente pré-tratamento: A. Fotografia Frontal; B. Fotografia de Perfil em repouso; C. Fotografia de perfil sorrindo
Após atendimento de emergência e recuperação, devido a gravidade do acidente, o seu quadro clínico resultou em uma comunicação buconasal e perda dos elementos dentários no primeiro quadrante e com perda significativa do processo alveolar (Figura 2, 3 e 4). Na avaliação clínica inicial, a paciente portava uma prótese parcial removível com palato para o fechamento da comunicação. Apresentava um perfil côncavo classe III, devido afundamento do terço médio da face e relação de mordida cruzada anterior com overjet negativo (Figuras 1 e 2).
Figura 2 – A. Radiografia PA pré-tratamento B. Telerradiografia de perfil pré-tratamento;
Figura 3 – Reconstrução panorâmica de tomografia pré-tratamento com as linhas de corte coronais
Figura 4 – Cortes coronais tomográficos pré-tratamento evidenciando as fraturas e a comunicação buco nasal (rompimento)
O plano de tratamento proposto e aprovado pela paciente foi a remoção dos dentes do segundo quadrante, devido comprometimento ósseo e endodôntico, instalação de implantes, confecção de uma prótese tipo protocolo com encaixes para fixação de uma prótese removível de palato. Também aprovado pela paciente, confeccionou-se um pequeno tampão de silicona de adição para evitar algum desconforto para a paciente durante o procedimento cirúrgico devido a risco de engasgo por escorrimento de líquidos na comunicação oronasal. O procedimento cirúrgico iniciou com bloqueios do nervo infraorbitário bilateralmente, do nervo alveolar superior posterior lado esquerdo, nasopalatino e anestesias infiltrativas na região posterior do palato e alveolar posterior do lado direito. Foi usada Lidocaína (Alphacaine 100, DFL, Rio de Janeiro, RJ, Brasil) para os bloqueios e complementado com Articaína (Articaíne 100, DFL, Rio de Janeiro, RJ, Brasil) para as infiltrativas. Após realizar todas as exodontias realizou-se a osteotomia para regularização óssea e instalação de 5 implantes Helix GM (Neodent®, Curitiba, PR, Brasil) 2 no primeiro quadrante (região dos dentes 13 e 14), anteriores a região onde houve perda de estrutura óssea da maxila, e 3 no segundo quadrante (região dos dentes 22, 24 e 26), os gaps foram preenchidos com biomaterial (Cerabone Straumann®, Curitiba, PR, Brasil) hidratado com iPRF (Fibrina Rica em plaquetas).8 O procedimento de sutura foi realizado com fechamento primário dos tecidos. Foi aplicado o laser de baixa potência no momento pós cirúrgico imediato (3J por vestibular e 3J por palatino na região de cada implante, e 3 J na região de cada elemento removido), com o intuito de otimizar a cicatrização e moderar a inflamação local. 9 Optou-se pela técnica de dois estágios cirúrgicos com os implantes sepultados para aguardar a cicatrização dos alvéolos e remodelação óssea. Como medicação pós-operatória, a paciente foi medicada com Amoxicilina 875mg durante 7 dias, e dipirona 500mg por 3 dias.
Após um período de 4 meses, foi realizada a reabertura sob anestesia infiltrativa com Articaína (Articaíne 100, DFL, Rio de Janeiro, RJ, Brasil). Foram instalados intermediários protéticos (mini pilares Neodent®, Curitiba, Paraná, Brasil) (Figuras 5, 6, 7), feito escaneamento destes com Transfer de escaneamento de mini pilar (Neodent®, Curitiba, PR, Brasil) para planejamento digital e moldagem convencional para a confecção das próteses. Foi utilizado a Técnica do Assentamento Passivo Neodent®, para se obter maior precisão na adaptação da barra aos mini pilares.
Figura 5 – A. Visão frontal do protocolo e palato obliterador removível; B. Visão oclusal da prótese protocolo e dos encaixes SR 3.0; C. Visão do palato obturador removível adaptado aos encaixes
Figura 6 – A. Mini pilares instalados; B. Prótese tipo Protocolo instalada; C. Prótese tipo Protocolo com prótese de palato obliterador instalado
Para a prótese obturadora removível do palato foi utilizado um encaixe de precisão com trava mecânica modelo SR 3.0 da empresa CNG (São Paulo, SP, Brasil). A remoção da parte móvel se faz com uso de um instrumento que se adapta a dois pequenos orifícios próximos ao componente SR 3.0 (Figura 7 A e B). A paciente foi treinada para colocação e remoção adequada da prótese de palato e foi orientada sobre procedimentos de higiene bucal e manutenção correta da prótese.
Figura 7 – A. Encaixe de precisão com trava mecânica modelo SR 3.0 da empresa CNG; B. Fêmea do encaixe instalado no palato obliterador mais visão do orifício usado para remoção da peça obliteradora.
Após a instalação da prótese tipo protocolo e a da placa obturadora removível, foi possível observar a reabilitação da paciente em vários aspectos, como estético, funcional, fonético. (Figura 8 A-D)
Figura 8 – A. Face em repouso pós cirurgia e instalação de protocolo; B. Face com sorriso pós cirurgia e instalação de protocolo; C. Perfil em repouso pós cirurgia e instalação de protocolo; D. Perfil sorrindo pós cirurgia e instalação de protocolo
DISCUSSÃO
A comunicação oronasal adquirida após um acidente e múltiplas intervenções cirúrgicas acarreta significativos desconfortos estéticos e funcionais para os pacientes. Diversas abordagens terapêuticas poderiam ser consideradas, sendo o fechamento cirúrgico da comunicação uma das opções principais. No entanto, além dessa correção, seriam necessários procedimentos adicionais para tratar o afundamento do terço médio da face, complicação agravada pela presença de várias fraturas não consolidadas, mesmo após oito anos do trauma inicial.
Em casos cuidadosamente selecionados, os implantes dentários podem contribuir para a retenção, estabilidade e função oclusal de próteses, promovendo uma reabilitação mais eficaz. A fístula palatina, uma complicação comum do reparo cirúrgico da fissura palatina descrita em diferentes estudos, frequentemente requer intervenções complementares. Nesse contexto, a reabilitação protética com obturador representa um tratamento auxiliar ou complementar às intervenções cirúrgicas. Um obturador removível fixo, como a ponte de Andrews, oferece suporte funcional e estético, restaurando tecidos de suporte perdidos e proporcionando benefícios psicossociais importantes para o paciente. 10
Adicionalmente, a utilização de i-PRF (fibrina rica em plaquetas injetável) associado a enxertos particulados representa uma alternativa inovadora para potencializar a regeneração tecidual em casos como este. O i-PRF promove a liberação controlada de fatores de crescimento, otimizando a neoformação óssea e a cicatrização dos tecidos moles. Quando combinado com enxertos particulados, pode contribuir significativamente para a estabilização do enxerto e a reparação das áreas afetadas.8 Paralelamente, a laserterapia de baixa potência (LLLT) desempenha um papel importante na modulação inflamatória, redução da dor pós-operatória e aceleração da cicatrização, sendo particularmente útil em casos com múltiplos sítios cirúrgicos ou áreas de difícil reparação. 9
Esse tipo de abordagem promove não apenas a recuperação física, mas também o bem-estar psicológico, contribuindo para uma melhora estética e funcional significativa. Como resultado, o uso da ponte de Andrews em casos de fístula oronasal demonstrou impactar positivamente a qualidade de vida dos pacientes, aumentando a confiança e o conforto psicológico.
Por outro lado, a fabricação de barras suportadas por implantes para retenção e suporte de sobredentaduras tem a vantagem de distribuir de maneira uniforme as cargas oclusais entre os implantes. No entanto, essa abordagem apresenta desvantagens, como o aumento da área de superfície para o acúmulo de placa, custos adicionais para o paciente e um curso de tratamento prolongado.11
CONCLUSÃO
O plano de tratamento proposto e realizado minimizou as limitações funcionais e estéticas e atendeu plenamente às expectativas da paciente, que relatou grande satisfação com os resultados.
REFERÊNCIAS
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1Mestre e Doutor em Implantodontia pela Faculdade ILAPEO;
2Mestre em Implantodontia pela Faculdade ILAPEO, Doutor pelo Programa de Pós-graduação da Faculdade São Leopoldo Mandic;
3Professor Doutor Colaborador do Programa de Pós-Graduação da Faculdade ILAPEO;
4Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação da Faculdade ILAPEO