ESTRUTURAÇÃO DO PROCESSO DE TRABALHO E APLICAÇÃO DA ANDRAGOGIA NA CAPACITAÇÃO EM RESSUSCITAÇÃO CARDIOPULMONAR EXTRA-HOSPITALAR EM UMA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202412052010


Juliana da Luz Araújo Ichii
Raphael Ulhoa Florêncio de Morais
Kellen Bruna de Sousa Leite
Fernando Antônio de Lima Pires
Jordana Viana Torres Camelo de França
Rafael de Souza Bueno
Orientadora: Gabriela Miguel Vieira


RESUMO:

Este relato de experiência descreve a implementação de uma capacitação em ressuscitação cardiopulmonar no ambiente extra-hospitalar (RCPEH) em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), utilizando documentos criados para estruturar o processo de trabalho e princípios de andragogia como metodologia de ensino-aprendizagem. Os resultados indicam que a integração de documentos organizacionais bem estruturados com uma abordagem educacional centrada no adulto promoveu um aumento significativo na confiança e competência dos profissionais em lidar com situações de PCREH, revelando-se uma estratégia eficaz em contextos educacionais de saúde. Este estudo destaca a importância da educação continuada amparada pela andragogia e da organização do processo de trabalho como facilitadores do cuidado qualificado à saúde.

Palavras-chave: andragogia; modelos educacionais; política de educação permanente em saúde; organização dos processos de trabalho na atenção primária à saúde;  parada cardiorrespiratória na atenção primária à saúde; ACLS; BLS.

1 INTRODUÇÃO

A Atenção Primária à Saúde (APS), também conhecida como Atenção Básica (AB), foi estruturada pelo Ministério da Saúde como a porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS)¹,². É um ponto estratégico na Rede de Atenção à Saúde (RAS), proporcionando atendimento integral aos usuários. Desde 2003, com a implantação da Política Nacional de Atenção às Urgências, a APS tornou-se parte da Rede de Atenção às Urgências, atuando como um componente fixo do Atendimento Pré-Hospitalar (APH). Nesse papel, a APS deve oferecer suporte básico de vida (SBV) até que o usuário possa ser transferido com segurança para outro nível de cuidado dentro da RAS.¹,²,³,⁴.

Estima-se que ocorrem anualmente cerca de 200 mil paradas cardiorrespiratórias (PCR) no Brasil, com uma significativa proporção delas ocorrendo em contextos de APH². A PCR, caracterizada pela interrupção súbita da atividade cardiorrespiratória efetiva, pode levar a danos cerebrais irreversíveis e morte em curto espaço de tempo¹,². A sobrevida em APH pode triplicar com o reconhecimento precoce dos sinais clínicos e a execução adequada das manobras de ressuscitação cardiopulmonar (RCP). ¹,²,⁴,⁹.

No entanto, muitos profissionais na APS relatam sentir-se despreparados para detectar e manejar PCRs, demonstrando insegurança em prestar esse tipo de assistência. Este cenário é preocupante, dada a probabilidade de enfrentar uma PCR a qualquer momento¹,²,⁵. Os principais fatores associados a esse despreparo incluem a falta de protocolos organizados e a carência de educação permanente⁵. Por outro lado, estudos mostram que intervenções educativas aumentam a autoconfiança e as habilidades dos profissionais em RCP.²,⁵,6,7,8, ⁹,

Este estudo tem como objetivo relatar a experiência de uma capacitação em ressuscitação cardiopulmonar no ambiente extra-hospitalar (RCPEH) realizada em uma unidade básica de saúde (UBS). A capacitação utilizou documentos organizacionais e metodologia ativa fundamentada nos princípios da andragogia como recursos de ensino-aprendizagem.

2. OBJETIVOS

Este estudo tem como objetivo relatar a experiência de uma capacitação em ressuscitação cardiopulmonar no ambiente extra-hospitalar (RCPEH) realizada em uma unidade básica de saúde (UBS). A capacitação utilizou documentos organizacionais e metodologia ativa fundamentada nos princípios da andragogia como recursos de ensino-aprendizagem.

3. MÉTODO

A Unidade Básica de Saúde (UBS) selecionada para este estudo opera de segunda a sexta-feira e conta com três equipes que trabalham das 7h às 16h e outras três das 13h às 22h. Cada equipe é composta por um médico, uma enfermeira, uma técnica de enfermagem, um odontólogo e um assistente de saúde bucal. Além disso, a UBS também conta com duas recepcionistas, duas farmacêuticas e duas auxiliares de serviços gerais.

A capacitação foi programada para introduzir e praticar uma nova proposta de organização do processo de trabalho em PCR. Para otimizar a participação, foram realizadas duas sessões: uma para a equipe que começava o turno às 7h e outra para a equipe que iniciava às 13h, sem distinção na programação.

Quatro documentos foram elaborados para facilitar o processo de trabalho:

  1. Ficha de Reanimação Cardiopulmonar Adulto: Facilita a identificação e otimiza a coleta de informações relevantes para esclarecer a causa da PCR e determinar condutas (Anexo 1)
  2. Time de Resposta Rápida e Suas Atribuições: Lista todos os profissionais do time de resposta rápida (TRR), descrevendo claramente suas funções considerando as habilidades e atribuições profissionais de cada um. (Anexo 2)
  3. Ficha de Manobras e Medicações RCP Adulto: Permite o registro adequado de todas as manobras e medicações realizadas, incluindo o nome do profissional responsável e os horários. (Anexo 3)
  4. Algoritmo de RCP Adulto em UBS sem DEA: Estruturado para lembrar as atribuições de cada profissional do TRR, a sequência correta de atendimento e as características de manobras de qualidade. Devido à indisponibilidade do DEA e de antiarrítmicos na UBS, este algoritmo foi adaptado do algoritmo PCREH da AHA 2020, mantendo a administração de epinefrina, disponível na maleta de emergências da UBS, devido às suas propriedades crono e inotrópicas positivas.9, 10(ANEXO 4)

Visando as características do aprendizado adulto, o auditório da UBS foi organizado de forma a criar um ambiente informal e confortável, facilitando o diálogo. As cadeiras foram dispostas em semicírculo, próximas a uma mesa com notebook, cânulas de Guedel (CG) e dispositivo bolsa-válvula máscara (BVM) acessíveis na UBS. No espaço central do auditório, foi colocado o kit básico de RCP (manequim adulto, CG, e BVM).

A capacitação foi dividida em três fases:

  1. Briefing: Envolveu um diálogo inicial para aferir o conhecimento prévio dos participantes sobre o tema; contextualização da APS na Rede de Urgência e Emergência (RUE) e motivação para a busca do conhecimento em PCREH; explanação teórica breve sobre PCREH e técnicas de reanimação; e introdução aos documentos elaborados para organizar o processo de trabalho.
  2. Estação Prática: Incluiu a demonstração da sequência correta de atendimento e das manobras de RCP, oferecendo experiências individuais supervisionadas para verificar responsividade, pulso e respiração, além da execução de compressões e ventilações. Durante as manobras, as necessidades de aprendizado dos profissionais foram diagnosticadas, dúvidas esclarecidas, melhorias sugeridas e pontos positivos incentivados.
  3. Debriefing: Baseado no G.A.S debriefing, envolveu a coleta de informações e tranquilização dos participantes, análise da experiência em relação ao referencial teórico de ressuscitação cardiopulmonar, e síntese de informações e reflexões para a prática futura. Durante essa fase, os participantes discutiram força e fragilidades individuais e da equipe, além de contribuições para melhorar os documentos e as atividades realizadas.11,12

Quadro 1 – Fases s do structured and supported debriefing

Fonte: NASCIMENTO JGS, et al., 2021. 

Essas atividades visaram não só a melhoria técnica, mas também a criação de um plano de ação para melhorar a assistência à PCR na UBS, incluindo a estrutura física e a educação continuada, destacando a importância do TRR e dos debriefings estruturados.11,12

Resultado e Discussão

A maioria dos profissionais relatou desconhecimento sobre a atribuição da APS dentro da Rede de Urgência e Emergência (RUE), além de insegurança e falta de conhecimento teórico-prático em Parada Cardiorrespiratória Extra-Hospitalar (PCREH). Este despreparo foi atribuído à carência de capacitações regulares em RCP, ao baixo investimento em equipamentos e insumos na UBS, à pouca vivência com pacientes graves e à concepção de que a assistência a pacientes graves é apenas uma demanda hospitalar, tornando as habilidades em RCP aparentemente irrelevantes na APS. Esse cenário crítico também foi observado em outros estudos que avaliaram o conhecimento teórico e prático em PCR na APS.1,2,5

No entanto, após a capacitação, os profissionais relataram um fortalecimento significativo de suas competências e segurança no manejo de PCREH. Os documentos desenvolvidos e os recursos de ensino aprendizagem empregados foram identificados como fatores cruciais para essa aquisição de conhecimento. Isso demonstra a utilidade de organizar o processo de trabalho através de protocolos e fluxogramas de atendimento à PCR. Adicionalmente, evidencia-se a andragogia como uma estratégia valiosa de ensino-aprendizagem, que incentiva o envolvimento do profissional no tema abordado e facilita a apropriação do conhecimento.6,7,8

Considerações sobre a Metodologia de Ensino Aprendizagem

  • Escolha do Cenário: O ambiente familiar proporcionado pela própria unidade foi um ponto favorável, permitindo uma experimentação prática próxima à realidade da UBS. A simulação revelou limitações na sala utilizada para atendimentos de urgência, devido ao espaço restrito e à porta estreita, o que dificultava o acesso de maca e cadeira de rodas. Foi elaborado um plano para transferir essa assistência para outra sala no centro da UBS, considerada mais estratégica por ser mais ampla e possuir portas largas em configuração “vai e vem”.
  • Utilização dos Dispositivos de VA e do Kit Básico RCP: A familiarização com os equipamentos disponíveis na UBS e o aperfeiçoamento das manobras foram facilitados. A falta de um cilindro de oxigênio e DEA foi marcada como uma das principais vulnerabilidades da UBS.
  • Metodologia de Ensino: A avaliação analítica dos pontos fortes e das áreas a serem melhoradas, seguida de feedbacks respeitosos e sem julgamentos de valor durante a prática, permitiu que os profissionais se sentissem no centro do processo de ensino aprendizagem. Isso os encorajou a esclarecer dúvidas e aperfeiçoar suas manobras. Corroborando com os estudos que apontam a andragogia como uma estratégia efetiva no ensino do adulto.6, 7, 8.

Considerações sobre os Documentos para Organização do Processo de Trabalho

  • Ficha de Reanimação Cardiopulmonar Adulto: Facilitou a coleta de informações, contribuindo para a identificação da causa e definição do tratamento.
  • Time de Resposta Rápida e Suas Atribuições: Clarificou funções e responsabilidades.
  • Ficha de Manobras e Medicações RCP Adulto: Permitiu o registro adequado da assistência prestada.
  • Algoritmo de RCP Adulto em UBS sem DEA: Contribuiu para a segurança e agilidade no fluxo de atendimento.

Após o debriefing, o Time de Resposta Rápida foi definido considerando as necessidades assistenciais, competências individuais e do grupo. Foi elaborado o plano para a transferência da sala de urgência, disponibilizados os documentos para uso interno e acordado a realização de treinamentos periódicos seguidos de debriefings estruturados. Estas ações são apontadas como essenciais para o sucesso no atendimento à PCR, segundo diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e da AHA 2020.9,10

CONCLUSÕES

A capacitação revelou um cenário inicial preocupante, onde a maioria dos profissionais desconhecia fundamentos básicos de ressuscitação cardiopulmonar no ambiente extra-hospitalar (RCPEH) e o papel da Atenção Primária à Saúde (APS) dentro da Rede de Urgência e Emergência (RUE). Essa falta de conhecimento, aliada à insegurança e fragilidades no manejo de situações de Parada Cardiorrespiratória ExtraHospitalar, foi atribuída à escassez de contato com pacientes críticos, à ausência de treinamentos regulares em RCPEH, ao desconhecimento das atribuições da APS na RUE e à falta de insumos e equipamentos essenciais, como o Desfibrilador Externo Automático (DEA) e cilindro de Oxigênio.

Entretanto, a implementação de um Time de Resposta Rápida, juntamente com protocolos e fichas de atendimento práticos, destacou-se como uma iniciativa crucial para a organização dos processos de trabalho. Esses documentos não só clarificaram as atribuições e responsabilidades durante emergências, mas também serviram como guias estruturantes, promovendo um trabalho mais coeso e eficiente.

A adoção da andragogia como base para o processo ensino-aprendizagem foi igualmente significativa. Ao valorizar a experiência prévia dos profissionais e fomentar um ambiente de aprendizado ativo e participativo, a metodologia andragógica com debriefing estruturado impactou positivamente na apropriação do conhecimento e desenvolvimento de habilidades práticas em RCPEH. Os participantes relataram um aumento na confiança e competência, evidenciando que a educação centrada no adulto, aliada a ferramentas organizacionais eficazes, pode transformar a prática clínica e garantir o atendimento em PCR na UBS mais eficaz e seguro.

Dessa forma, este relato de experiência reforça a importância da organização dos processos de trabalho aliado a educação permanente amparada por princípios de andragogia, sugerindo que tais práticas sejam amplamente adotadas em capacitações na APS. Integrar essas abordagens transforma os processos de trabalho e ensino assegurando uma assistência mais rápida e efetiva em PCREH nas UBS.

REFERÊNCIAS:

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  5. IlhaS.; DannM. F.; ZamberlanC.; MachadoK. de F. C.; RangelR. F.; MunhozO. L. Análise do atendimento às vítimas de parada cardiorrespiratória na Atenção Primária à Saúde: revisão narrativa. Revista Eletrônica Acervo Saúde, v. 15, n. 5, p. e10184, 11 maio 2022. 
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  8. NOFFS, Neide de Aquino e RODRIGUES, Carla Maria Rezende. Andragogia na Psicopedagogia: a atuação com adultos. Revista Psicopedagogia, v. 28, n. 87, pp. 283-292, 2011. 
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  11. Nascimento J da SG, Pires FC, Nascimento KG do, Regino D da SG, Alves MG, Oliveira JLG de, Siqueira TV, & Dalri MCB. Análise de um método de debriefing para a simulação da ressuscitação cardiopulmonar: revisão integrativa. Revista Eletrônica Acervo Enfermagem, 13, e8777. [Internet]. 2021 [acesso em 11/11/2024]. Disponível em: https://doi.org/10.25248/ reaenf.e8777. 
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ANEXOS

ANEXO 1:

ANEXO 2:

ANEXO 3:

ANEXO 4: