REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102412021824
Ellen Alice Da Silva Pereira
Ellen Cristina Da Silva Pinto
Me. Mikael Victor Silva da Câmara
Orientador: Me. Douglas da Silva Araújo
RESUMO
Este estudo analisa a influência do companheiro no crescente envolvimento de mulheres no crime de tráfico de drogas, discutindo fatores como coação, dependência emocional e questões socioeconômicas, que contribuem para a prática criminosa. Os resultados apontam para uma forte correlação entre a participação no tráfico e a influência do companheiro, indicando que, em muitos casos, o contexto afetivo e social dessas mulheres desempenha um papel decisivo em sua trajetória criminal. Conclui-se que políticas públicas mais direcionadas ao encarceramento feminino são necessárias para abordar essas dinâmicas e auxiliar na reintegração dessas mulheres à sociedade.
Palavras–chaves: Criminalidade. Mulher. Companheiro. Influência. Fatores. Machismo, Internas. Cárcere. Tráfico de Drogas.
ABSTRACT
This study analyzes the influence of the partner on the increasing involvement of women in the crime of drug trafficking, discussing factors such as coercion, emotional dependence and socioeconomic issues, which contribute to criminal practice. The results point to a strong correlation between participation in trafficking and the influence of a partner, indicating that, in many cases, the emotional and social context of these women plays a decisive role in their criminal trajectory. It is concluded that public policies more targeted at female incarceration are necessary to address these dynamics and assist in the reintegration of these women into society.
Keyword: Crime. Woman. Partner. Influence. Factors. Machismo, Internal. Prison. Drug Trafficking.
1. INTRODUÇÃO
O tráfico de drogas é um dos crimes de maior impacto no sistema penitenciário brasileiro, com efeitos profundos sobre a sociedade e um número crescente de mulheres envolvidas. Embora seja amplamente compreendido como um crime predominantemente masculino, o envolvimento feminino no tráfico tem se tornado mais frequente nas últimas décadas, revelando dinâmicas sociais e afetivas complexas. A participação dessas mulheres, entretanto, não ocorre de maneira isolada. Em muitos casos, elas são influenciadas por seus parceiros, seja por coação, dependência emocional ou pela divisão de responsabilidades em atividades ilícitas. Esse cenário reflete uma estrutura de poder e submissão que transcende o aspecto criminoso, enraizada em questões de gênero e na figura patriarcal.
Diante desse cenário, surge a questão central da pesquisa: como a influência do companheiro no tráfico de drogas contribui para o envolvimento de mulheres no crime e como essa dinâmica impacta suas trajetórias de ressocialização? A literatura sobre o tema apresenta lacunas significativas, especialmente no que se refere à análise das motivações e dos fatores sociais que levam essas mulheres ao crime sob a influência de seus companheiros. Compreender como essas dinâmicas operam é essencial para o desenvolvimento de intervenções sociais e políticas públicas mais eficazes para sua ressocialização, capazes de apresentar a criminalidade feminina de forma específica e assertiva.
Este estudo tem como objetivo investigar como os parceiros afetivos influenciam o envolvimento de mulheres no tráfico de drogas. Para isso foi elaborada uma abordagem quantitativa, utilizando como principal fonte de dados o Relatório das Informações Penais (RELIPEN), alinhado pela Secretaria Nacional de Políticas Públicas Penais (SENNAPEN), referente ao primeiro semestre de 2024. O RELIPEN é um documento público que reúne informações fornecidas pelas Secretarias de Administração Penitenciárias dos Estados e do Distrito Federal, como também, de dados do Sistema Prisional Federal. No entanto, considerando que o recorte desta pesquisa é direcionado ao universo feminino, foram analisados exclusivamente os dados relacionados às mulheres, excluindo informações das unidades federais por não serem pertinentes ao tema estudado. Ademais, foi realizado um levantamento de dados de Informações Penitenciárias (INFOPEN-MULHERES) de junho de 2014, que traz informações relativas à população feminina, e os problemas enfrentados por elas, à época, com o intuito de fundamentar políticas públicas eficazes. Conforme, esses relatórios fornecidos pelos órgãos de segurança nacional competente a comparação entre os dados do RELIPEN e do INFOPEN- MULHERES, permitindo uma análise mais detalhada sobre as especificidades da população feminina reclusa, fornecendo uma visão abrangente sobre as condições atuais das mulheres no sistema penitenciário brasileiro e os desafios que elas enfrentam.
Adotou-se a metodologia narrativa como linha central de investigação. Selecionamos artigos científicos publicados entre 2006 e 2021, focando em pesquisas que discorrem sobre o tráfico de drogas e a criminalidade feminina, e observando a evolução da abordagem sobre o papel dos parceiros afetivos nesse enredo. Assim como, as dissertações com didática de entrevistas, para sabermos como a figura feminina lida com quem levou ela ao cometimento do delito, utilizamos o banco de dados Scientific Electronic Library Online/ SCIELO, cujo autores desenvolveram reflexões aprofundadas sobre o tema, além de uma obra literária de grande relevância nacional que retrata o cotidiano de uma unidade prisional feminina, destacando as histórias e vivências das internas e sua inserção no crime. Foram selecionados campos do Direito, Psicologia e Sociologia, para entendermos o motivo do companheiro influenciar/ interferir nas escolhas de suas esposas, o seu envolvimento emocional, como essa mulher está inserida na sociedade e enxergada pela coletividade quando comete o delito e é inserida no cárcere. Essa atuação busca oferecer uma compreensão mais ampla e detalhada das experiências das encarceradas, fornecendo uma análise crítica das dinâmicas de poder e dependência emocional que permeiam suas trajetórias no contexto do crime e do encarceramento.
Embora o tema tenha sido exposto de forma tangencial em estudos sobre a violência doméstica, machismo e criminalidade feminina, literaturas específicas que analisam o impacto direto da influência do companheiro no envolvimento feminino no tráfico de drogas são escassas. Este estudo busca preencher essa lacuna, oferecendo uma análise crítica das dinâmicas afetivas que moldam a trajetória criminosa dessas mulheres.
Espera-se que os resultados obtidos devam fornecer subsídios importantes para o desenvolvimento de políticas públicas direcionadas às especificidades das mulheres no sistema prisional, promovendo não apenas as questões de criminalidade, mas também as dinâmicas afetivas que envolvem suas trajetórias. Tais políticas incluem medidas de ressocialização, apoio psicológico e capacitação profissional.
2. Revisão de Literatura
2.1 A criminalidade feminina
Ao longo dos séculos, devido ao aumento expressivo da criminalidade, a mesma foi palco de diversos estudos, que buscavam “a explicação causal do delito como obra de uma pessoa determinada” (ESTEFAM apud GONÇALVES, 2016, p. 53).
Similar e intrinsecamente, foram promovidas pesquisas científicas com o propósito de analisar o comportamento feminino e entender sua inserção na vida criminosa. Assim, debates ideológicos foram traçados, que utilizavam como norte desde o âmago da mulher e seus sentimentos, até fatores de uma sociedade em que a mesma estaria inserida. Inicialmente, a relação entre o homem e o delito era explicada através da tese do ‘criminoso nato’, aquele que já estava destinado a cometer atos reprováveis. Então, entendia-se que a motivação se baseava no determinismo orgânico e psíquico do criminoso, um dos criminologistas que defendia esta corrente era Cesare Lombroso. Por consequência, concluía-se que a delinquência feminina era um ato ímpar, nada recorrente, reprovável moralmente pela sociedade, que entendia que mulheres cometiam somente crimes de natureza passional, devido a ideia de que o sexo feminino era frágil e emotivo.
À proporção de que elas foram tendo relevante participação em crimes como homicídio e tráfico de drogas, crimes hediondos corriqueiramente praticados pela figura masculina, a partir dos anos sessenta, com as discussões feministas promovidas à época, houve a criação de novas teorias sobre a temática. Logo, teorias como a Empowerment e Interseccionalidade foram surgindo e ganhando relevância.
Em suma, a teoria empowerment retrata o determinismo, a singularidade, a autonomia do indivíduo em cometer o ato desejado. Assim, a mulher cometeria a conduta delitiva através de sua própria escolha. No entanto, quando paramos para analisar essa ‘escolha’ no cometimento do tráfico de drogas por mulheres, percebemos que ela está condicionada muitas vezes ao desejo de seu consorte. Ela pode sim optar por cometer o delito, mas está fadada a coação, manipulação e interferência do companheiro. É uma esposa/companheira que entra na unidade prisional com entorpecentes escondidos em suas genitálias para sanar a dívida ou abstinência de seu marido. A mesma que transporta a ‘droga’ ao invés do seu parceiro, pois acredita que em posse dela vai ser mais fácil passar pelas barreiras de segurança. Ou até mesmo aquela que é ‘do lar’ e tem que aceitar as condutas ilícitas do seu cônjuge, pois é ele quem provém a residência, mas presente no local errado e hora errada, acaba sendo presa por uma conduta que nem se quer praticou, mas era conivente ao aceitar a situação dentro de sua casa, local onde seu marido viera a ser preso junto a ela.
A teoria Empowerment defendida por Kathleen Daly (2011) se concentra em conceitos que envolvem a autoconfiança, a autonomia e a participação para entender a dinâmica do crime e promover a restauração daquele indivíduo. Nos casos em que a mulher delinque por medo de retaliação de seu companheiro, não há de se falar em Empowerment (empoderamento), e sim da ausência dele. Já em outros, o empoderamento surge quando elas procuram no tráfico um poder que a faça ter vez e voz, encontrando no ato ilícito uma liberdade que jamais pensaria alcançar, momento em que é clara a autonomia dela em cometer o delito, a autoconfiança de ser capaz e a escolha na participação daquele evento.
Já a teoria da Interseccionalidade, vem trazendo a ideia de que uma problemática ela deve ser analisada não só de maneira genérica, como, também, por meio de fatos sociais superligados a ela, tendo por exemplo: gênero, classe social, raça, escolaridade, idade, estado civil, entre outros. É o cruzamento de diferentes formas de opressão, desigualdade e discriminação, o que desafia a ideia de que elas são vivenciadas de maneira separada. Pelo contrário, o indivíduo pode sofrer opressão ou discriminação por mais de uma forma distinta ao mesmo tempo, exemplo: ser mulher e negra, ser negra e da periferia, ser analfabeta e mulher, etc., e isso, de certa forma, acaba interferindo na forma que aquele agente lida com suas particularidades. Não há como comparar pessoas que vivem em realidades e culturas distintas. O ser humano permeia seu comportamento de acordo com o contexto social e cultural em que está inserido. “Devemos enxergar as mulheres a partir de suas diversidades, construções e estigmas” (RAMOS, 2012, p. 38), reconhecendo e respeitando as experiências únicas e variadas de cada uma.
Partindo dessa tese, e levando em consideração os seus aspectos ao delito que nesta pesquisa vem sendo abordado, podemos entender como a interseccionalidade influencia na vida criminosa, vez que pesquisas apontam que há perfis predominantes quando se fala em mulheres reclusas no Brasil, conforme veremos no capítulo 3, gráfico 3, o que evidência a desigualdade de oportunidades e discriminação a certas classes sociais, que são foco da atuação da segurança pública.
2.2 O Papel do Companheiro no Envolvimento no Crime
A participação da mulher no tráfico de drogas, está profundamente ligada à dinâmica de gênero e ao machismo estrutural que permeia as relações conjugais. Em muitos casos, essa submissão ao marido manifesta-se de diferentes formas, levando esta a assumir um papel coadjuvante no crime. Esse envolvimento ocorre, em grande parte, devido à reincidência do cônjuge em práticas ilícitas, à dependência emocional e, em algumas situações, ao medo de represálias. De acordo, com Valença e Castro (2018 apud Ribeiro, Martino, Duarte, 2021, p. 640), é comum que o parceiro designe a companheira como “mula” ou “guardadora de drogas”, aproveitando-se da vulnerabilidade que enfrentam nos canais de fiscalização de segurança pública e privada, o que facilita que passem ilesas, e sua facilidade em operações ilícitas.
Outro aspecto relevante é o fator socioeconômico, especialmente em lares monoparentais. Na ausência de uma figura masculina, a mulher assume a posição de provedora. Nessas circunstâncias, muitas acabam por colaborar com atividades ilícitas como o mercado de drogas, envolvendo-se no preparo de refeições para traficantes, no transporte de entorpecentes, armamentos, ou até mesmo embalando substâncias para comercialização. Esses papeis, demonstram como a colaboração feminina, ainda que ativa, está intrinsecamente ligada a uma posição subalterna, limitada a pequenas missões dentro da estrutura do tráfico. Essa dinâmica evidencia a subordinação delas na influência de seu parceiro, dentro do contexto criminoso, em que o poder predomina nas mãos masculinas.
A violência de gênero também é um fator determinante nesse processo, visto que muitas são vítimas de agressões físicas e psicológicas, tornando-se refém dos seus parceiros. Assis e Constantino (2001 apud Barcinski & Cúnico, 2016, p. 61), identificaram as consequências da vitimização dessas mulheres, que o abuso emocional, o abandono e a agressão física são características recorrentes em suas trajetórias de vida. Nesse contexto, viver sob constante repressão, pode passar a buscar poder dentro de um mundo onde, paradoxalmente, sua ascensão é marcada pela submissão. O desejo de poder se torna uma forma de resistir, mas essa resistência é expressa de maneira distorcida e subordinada, uma vez que elas precisam se sujeitar a figuras masculinas dentro do tráfico para garantir seu espaço.
Um exemplo prático dessa conduta é a história de Denise, descrita por Barcinski & Cúnico, (2016, p. 64). Denise, uma mulher de 30 anos, casada com um homem privado de liberdade, envolvido com o negócio de entorpecentes, se viu submissa ao cônjuge, que liderava uma “boca de fumo”. Durante seu encarceramento, seu companheiro lhe ligava regularmente, de dentro da unidade, ameaçando sua vida e exigindo visitas semanais. Embora quisesse terminar o relacionamento, se via aprisionada em uma “lei do crime”, onde não poderia deixar o parceiro enquanto ele permanecesse em cárcere. Inicialmente, a mesma se inseriu no mercado ilícito, movida pelo desejo de poder e ascensão. Tornou-se temida e respeitada, sendo conhecida como “a mulher das missões”. No entanto, sua trajetória, ainda que parecesse um exemplo de empoderamento, dependia de obediência aos líderes masculinos do tráfico, operando negociações no mercado, envolvimento sexual e preparando refeições para os envolvidos.
A história de Denise é um reflexo das contradições enfrentadas pela maioria das mulheres envolvidas no comércio ilícito. Mesmo que buscando poder e respeito, elas continuam sendo subjugadas por estruturas masculinas de dominação. Esse fenômeno demonstra que, apesar de algum grau de controle no comércio de drogas, a posição das mulheres nesse sistema é transitória. Mesmo assumindo posturas aparentemente autônomas, elas permanecem subordinadas, emocional e funcionalmente, aos homens que dominam essas estruturas criminosas.
Ademais, os dados relativos à participação feminina envolvidas no comércio de entorpecentes e ao consequente encarceramento são alarmantes. Informações fornecidas por órgãos de segurança pública, revelam um expressivo crescimento da população feminina encarcerada. Do mesmo jeito, esses números evidenciam a necessidade de políticas públicas mais eficazes, que não apenas lidam com a criminalidade delas, mas também considerem as dinâmicas de poder, violência e submissão que permeiam as suas trajetórias.
3. Análise de Dados Secundários
3.1 Estatísticas do Encarceramento Feminino no Brasil
Para compreendermos de forma objetiva o estudo apresentado, abaixo teremos o gráfico 1, o qual traz a evolução do encarceramento feminino.
Gráfico 1 – Evolução das mulheres privadas de liberdade entre 2000 a 2017
Fonte: Ministério da Justiça e Segurança Pública. A partir de 2005, dados do INFOPEN.
Nota: população em milhar
De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), atualmente as mulheres compõem cerca de 4,34% (quatro vírgula trinta e três por cento) da população prisional do Brasil, com um total de 28.770 (vinte e oito mil setecentos e setenta) reclusas em celas físicas. Estudos apontam a intensificação do encarceramento delas por tráfico de drogas, principalmente após a promulgação da lei de drogas que ocorreu em 2006.
Segundo os dados apresentados, houve um acréscimo de 631,6% (seiscentos e trinta e um vírgula seis por cento) em 2016 com relação ao ano 2000, chega a ser chocante quando colocamos esses dados na caneta e entender que somente eles não transmitem a criminalidade real, vez que inúmeros casos nem se quer chegaram a ser conhecidos e apurados pela autoridade policial. O que se tornou fato e não podemos fechar os olhos é que além da lei de drogas, as políticas de guerra no intuito de abolir o crime influenciaram no aumento das estatísticas apresentadas, vez que o estado precisava demonstrar respostas no combate à criminalidade. Assim, os agentes de segurança pública passaram a patrulhar mais as zonas periféricas, chegando a alcançar e prender diversas mulheres, que ou utilizavam os entorpecentes para uso pessoal ou faziam parte da base da estrutura do crime, sendo muitas das vezes o ‘avião’ ou ‘mula’.
De acordo com o gráfico 1 e ressaltado no início deste capítulo, a lei nº 11.323 instituída em 2006 (Lei de Drogas) causou um alarmante crescimento na incidência dos crimes nela contidos, o que causou mais prisões, isso porque a lei se manteve omissa em apresentar parâmetros para esclarecer quem seria traficante ou usuário, o que levou muitas mulheres a serem presas pelo porte de entorpecentes, já que foram postas dali em diante à linha de frente pelo tráfico devido a sua facilidade de passar pelas barreiras de segurança, consoante vimos no capítulo anterior. Mesmo diante dessa realidade, dezoito anos se passaram e apenas no ano de 2024 que foi padronizado o que seria enquadrado como tráfico ou uso, mas, somente, para o entorpecente nomeado por ‘maconha’, o qual foi palco de decisão do Tema 506 promovido pelo STF, deixando os demais entorpecentes ainda sem parâmetros legais definidos.
Conforme abordado no capítulo anterior, o tráfico de drogas é uma das principais causas do encarceramento feminino, o que será detalhado a seguir por meio de dados estatísticos:
Gráfico 2 – Ǫuantitativo de encarceradas por tipificação no primeiro semestre de 2024
Fonte: produzido a partir dos dados do DEPEN (2024.1)
Com base no gráfico 2, os crimes que mais encarceram mulheres no país atualmente são os previstos na Lei de Drogas, nomeadamente: o Tráfico de Drogas, a Associação para o tráfico e Tráfico Internacional de Drogas, os quais afetam cerca de 50,39% (cinquenta vírgula trinta e nove por cento) do total de encarceradas no Brasil. Essa estatística revela a ressignificação da mulher na vida criminosa, ao passo que sua participação se tornou mais ativa e relevante.
Fatores distintos podem explicar esse fenômeno. A feminização da pobreza é uma das facetas que justifica esta crescente. Visando lucro econômico, sair de uma realidade de falta de oportunidade, pobreza, desigualdade em decorrência do gênero, inferioridade, a mulher vê no crime uma maneira de coibir e rebater toda forma de opressão que lhe vitimiza.
Diante desse quadro, são necessárias soluções para a reparação dos danos causados nas últimas décadas, uma delas é a reforma da lei nº 11.323/2006, com o intuito de preencher as lacunas aqui apresentadas.
3.2 Tendências e Perfil Demográfico
De acordo com o que vimos no tópico anterior, múltiplos são os fatores que permeiam a inserção da mulher no crime. Ao que podemos destacar, o perfil socioeconômico das encarceradas reflete uma realidade marcante de vulnerabilidade. Dados fornecidos pelo DEPEN, quanto ao primeiro semestre de 2024, demonstram aspectos intrínsecos que norteiam tendências de seu perfil.
No gráfico 3, que veremos abaixo, iremos visualizar categoricamente qual a faixa etária, etnia, escolaridade e procedência das mulheres privadas de liberdade no Brasil.
Gráfico 3 – Perfil demográfico do encarceramento feminino no Brasil
Fonte: produzidos a partir dos dados do DEPEN (2024.1)
É evidente e inquestionável que a maior parcela da população carcerária feminina do país pertence a um grupo em situação de precariedade social. Ao que podemos perceber, 63% das mulheres em cárcere no Brasil tem entre 25-45 anos de idade, fato que pode ser explicado com a dificuldade de encontrar um laboro e promover a autossobrevivência neste período da vida. Outro dado importante é quanto a cor da pele/raça/etnia das apenadas, já que cerca de 63,18% delas são pretas ou pardas, o que demonstra a descriminalização e seletividade penal a esse grupo de indivíduos.
Além do que foi apresentado, conforme demonstrado no Gráfico 3, no aspecto do nível educacional, 38,5% (trinta e oito vírgula cinco por cento) das apenadas só possuem ensino fundamental incompleto, o que demonstra a baixa escolaridade entre as detentas. Ademais, 52% (cinquenta e dois por cento) delas residiam em regiões interioranas antes de terem sua liberdade restringida pelo estado, o que novamente reflete a falta de possibilidade e oportunidade no meio social em que estão inseridas.
A sociedade patriarcal impõe papeis limitantes à figura feminina, fazendo com que esta tenha que seguir escolhas que estão além de sua própria vontade e liberdade. Assim, a tomada de decisão tem como motivação muito mais do que o poder econômico como resultado do delito praticado e sua vontade de cometê-lo, mas, também, a forma que a sociedade lida com aquele indivíduo e os aspectos sociais e culturais em que ele está inserido, conforme descreve a teoria da Interseccionalidade retratada anteriormente.
3.3 Impactos Legais e Consequências Sociais
O crescimento da população feminina no sistema penitenciário brasileiro nos últimos anos, especialmente devido à tipificação penal do tráfico de drogas, acarreta uma série de desdobramentos jurídicos e sociais, cujas implicações transcendem o sistema penal, afetando profundamente suas vidas pessoais e familiares. Uma das críticas mais frequentes é a individualização das penas, que, muitas vezes, não consideram os aspectos fundamentais, como a quantidade de entorpecentes, a primariedade, ou a reincidência no delito. Esses fatores previstos nos artigos 61 a 69 do Código Penal Brasileiro (CPB), poderiam atuar como atenuantes ou agravantes, mas nem sempre são devidamente aplicadas, a uniformização das penas acaba por ignorar as motivações e contextos sociais que levaram ao envolvimento com o tráfico, como coerção de parceiros ou sobrevivência econômica.
De acordo com o Relatório DEPEN 2024.1, o comércio de drogas é o crime mais recorrente entre as mulheres no sistema prisional brasileiro, com 11.296 condenações registradas, conforme ilustrado no Gráfico II . Esse número reflete um padrão processual que se inicia com a prisão em flagrante pela Polícia Militar, seguida pela comunicação à Polícia Civil para a elaboração do inquérito policial e posteriormente, encaminhamento à Justiça Criminal. No entanto, é comum que as instruções criminais sejam baseadas, sobretudo, nos depoimentos dos policiais militares responsáveis pela prisão em flagrante, consolidando uma “verdade absoluta” sustentada na presunção de boa-fé pública. Como aponta Jesus (2016 apud Ribeiro & Lopes, 2019, p. 405), essa prática aumenta os índices de condenações por tráfico de drogas. Os servidores responsáveis pelo flagrante, são as únicas testemunhas disponíveis, consolidando uma narrativa unilateral, essa prática não apenas fragiliza a defesa da ré, mas também reforça padrões que contribuem para a condenação em massa sem uma análise crítica dos fatos apresentados.
Pesquisadores como Sena (2017 apud Ribeiro & Lopes, 2019, p. 405) questionam o tratamento dado pelo Poder Judiciário às categorias de gênero no sistema carcerário. Desde os anos 2000, o número de mulheres encarceradas cresceu de forma alarmante, superando proporcionalmente o aumento da população masculina, como ilustra o Gráfico I. Essa disparidade revela não apenas as falhas no combate ao mercado de drogas no sistema jurídico, mas também, a ausência de uma análise mais aprofundada das realidades sociais e afetivas que o encarceramento gera na vida delas.
A participação feminina no varejo de drogas, muitas vezes motivada pelo envolvimento com esposo reincidente na conduta ilícita, gera impactos profundos na esfera social e emocional dessas mulheres. Além da estigmatização pela sociedade, elas enfrentam rupturas familiares severas, especialmente em relação aos seus filhos. Outro aspecto recorrente é o abandono por parte dos parceiros que, em muitos casos, foram os responsáveis por conduzi-las ao crime. Assim, o apoio emocional que poderia auxiliá-las durante a reclusão frequentemente se perde, agravando ainda mais seu isolamento.
No livro Prisioneiras (2017, p. 40), narra a história de uma jovem mulher, que exemplifica essa realidade. Filha única de comerciantes, ela se casou aos 19 anos após engravidar de um motoboy. Inicialmente frustrados com suas escolhas, seus pais acabaram aceitando o gênero ao perceberem seu esforço em sustentar a família. Contudo, com a prisão do marido por tráfico de drogas, a jovem foi levada a se envolver na criminalidade. Durante uma visita ao marido, sob coação e desespero para ajudá-lo, aceitou introduzir na vagina 100 gramas de cocaína e dois chips de celular. A tentativa resultou em sua prisão, culminando na perda de liberdade, no afastamento da família e do próprio companheiro.
Esse exemplo ilustra como a coação e a dependência emocional, podem levar uma mulher a envolver-se em atividades ilícitas, confirmando a análise de Almeida (2001 apud Barcinski & Cúnico, 2016, p. 60) sobre a inserção das mulheres no crime geralmente decorre da influência de figuras masculinas, refletindo uma dinâmica de codependência emocional e financeira. Essa vulnerabilidade, somada às pressões sociais, frequentemente coloca as mulheres em posição de subordinação, na qual se veem compelidas a preservar relações afetivas, mesmo que isso implique sua participação no crime.
No sistema penitenciário, elas enfrentam não apenas a solidão afetiva, mas também a invisibilidade social. Dados do DEPEN (2024.1) mostram que, das 28.770 detentas no Brasil, apenas 23.581 possuem visitantes cadastrados, e o número de visitas regulares é ainda menor. Esse cenário reflete o isolamento enfrentado por muitas internas, que, sem apoio externo, encontram conforto e suporte em outras detentas, formando “famílias” dentro das unidades prisionais.
A execução das penas também reforça estereótipos de gênero, com politicas de ressocialização frequentemente voltadas para funções domésticas, ignorando as reais necessidades dessas mulheres. Esses programas, reforçam papéis tradicionais de gênero, ao invés de capacitar essas mulheres para atividades que as integrem no mercado de trabalho. Segundo Assis & Constantino (2001 apud Souza, 2009, p. 652), a socialização feminina é vista como um fator de proteção, afastando-as de práticas infracionais. Mas, ao romperem com esse papel, as mulheres são alvo de desvalorização social, o que dificulta sua reintegração.
Além disso, as condições emocionais enfrentadas na reclusão, como depressão, ansiedade e crises de pânico, agravarão o sofrimento dessas mulheres. Varella (2017, p. 11) destaca que a cefaleia, obesidade e hipertensão, estão entre as principais queixas de saúde nas prisões femininas, que estão relacionadas ao estado psicológico. Para aquelas que são mães, a distância dos filhos intensifica o sentimento de impotência e desamparo, dificultando ainda mais sua recuperação emocional.
O isolamento por parte da família e dos parceiros, aliado à falta de políticas públicas que contemplem as especificidades dessas mulheres, perpetua ciclos de exclusão e marginalização. A ausência de suporte adequado durante e após o cumprimento da pena prejudica não apenas a ressocialização, mas também a construção de uma perspectiva de vida fora do cárcere. Portanto, é imperativo repensar as políticas públicas, implementando estratégias de reintegração, que não apenas atendem às especificidades femininas reclusas, mas que também contribuam para romper os ciclos de exclusão e marginalização que as perpetuam.
4. Considerações finais
A intenção deste estudo foi compreender a etiologia do fenômeno do encarceramento feminino por tráfico de drogas, no intuito de absorver mais conhecimento científico sobre a temática e promover políticas públicas eficazes para a diminuição deste evento.
A figura masculina é frequentemente a principal motivação para o envolvimento das mulheres no tráfico. Mesmo diante desse cenário, não podemos deixar de enxergar a autonomia delas em cometer o delito e sua busca pelo poder econômico.
Em um olhar crítico e patriarcal, a sociedade observa na mulher uma figura de submissão, guiando inconscientemente as vontades dela à uma figura masculina e isso, de certo modo, acaba mascarando a causa real do delito.
Noutro ponto, de acordo com o perfil demográfico das mulheres privadas de liberdade no Brasil, muitas delas estão inseridas em um grupo em situação de vulnerabilidade social, o que pode dificultar sua subsistência e procurar no comércio de entorpecentes um ganho econômico para promover a manutenção de seu lar.
Com tudo isso, interessava-nos saber qual dessas realidades era mais predominante no ordenamento jurídico em que estamos inseridos e foi possível consumar que todos os aspectos apresentados estão interligados, tendo um que se sobressai e se mascara por trás dos demais, que é a figura do consorte na tomada de decisão, ao passo que concluímos que embora este não haja diretamente na escolha, influencia de maneira indireta.
Outras questões ainda precisam ser estudadas e compreendidas, não só através do que retrata as estatísticas, a literatura, sendo necessária uma pesquisa de campo, vivenciando e sentindo o cotidiano das encarceradas e colhendo junto a estas os subsídios necessários para uma conclusão mais profunda sobre o tema. No entanto, sem via de dúvidas, as descobertas alcançadas neste estudo foram de grande relevância para o entendimento de algumas das múltiplas facetas que se envolvem nesta problemática.
Para que haja uma diminuição gradativa nos índices de criminalidade feminina, devem ser implantadas políticas públicas direcionadas a essa temática, isso vai desde políticas de prevenção até as de ressocialização, quais sejam: o acesso à educação básica e cursos profissionalizantes de maneira gratuita e centralizada para zonas em que estão inseridos grupos em situação de vulnerabilidade, de modo a criar uma cultura de subsistência e inclusão social; um sistema prisional adequado para atender as especificidades delas, que integre ideias de ressocialização, incluindo programas que envolvam uma temática voltada ao controle emocional, social e capacitação profissional; e programas de prevenção e combate à violência de gênero, que viabilizem a conscientização no intuito de promover a qualidade de vida e liberdade de escolha a tantas mulheres que são ou já foram caladas pela opressão patriarcal.
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