RELATO DE CASO: USO DE CIRURGIA ORTOGNÁTICA PARA RETRATAMENTO DE PACIENTE CLASSE III APÓS TENTATIVA DE COMPENSAÇÃO ORTODÔNTICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102411242312


André Pereira De Lima1
Alexandre Pereira de Lima2
José Nilson Porto Fernandes Júnior3


Introdução

As deformidades dentofaciais são caracterizadas por desarmonia entre a face e as estruturas ósseas dentárias, desenvolvem-se em um ritmo variável, e pode ter impactos negativos na estética facial e equilíbrio do sistema estomatognático. Em alguns casos, deformidades esqueléticas estão associadas a maloclusão e um desequilíbrio do sistema neuromuscular, com consequente comprometimento de funções essenciais, como respiração, mastigação e fonação.(Impacts of Orthognathic Surgery on Patient Satisfaction, Overall Quality of Life, and Oral Health-Related Quality of Life: A Systematic Literature Review).

 Além disso, essas deformidades podem levar à baixa autoestima e sofrimento psicológico, e podem ser uma grande desvantagem social que afeta a autoconfiança e a aceitação na sociedade e, assim, influencia a qualidade de vida dos pacientes. ( The impact of surgery-first approach on the oral health-related quality of life: a systematic review and meta-analysis)

A qualidade de vida relacionada à saúde bucal é um aspecto multidimensional que reflete o conforto de comer, dormir e se envolver em interação social, que mede o impacto da saúde bucal na emoção, na sociedade e na função da vida diária. É relatado que adolescentes desfavorecidos podem ter baixa qualidade de vida relacionada à saúde bucal devido à pior condição bucal. Desarmonias dentofaciais são observadas em 38,5% dos adolescentes afetando gravemente a vida diária, como respirar, falar e comer. Esses pacientes também são potencialmente degradantes e socialmente desajeitados, o que prejudica o desenvolvimento psicossocial. Portanto, as deformidades dentofaciais têm influência seriamente desfavorável na qualidade de vida dos pacientes. ( The impact of surgery- first approach on the oral health-related quality of life: a systematic review and meta-analysis)

Uma modalidade de tratamento bem estabelecida para deformidades dentofaciais é o tratamento ortodôntico-cirúrgico, que inclui tratamento ortodôntico pré-operatório, cirurgia ortognática e tratamento ortodôntico pós-operatório. A busca por esse tipo de tratamento pode ser motivada por aspectos funcionais, estéticos e aspectos sociais ou uma combinação desses fatores. (Impact of orthodontic-surgical treatment on quality of life: a meta-analysis).

Para os pacientes cujos problemas são tão severos que nem a modificação do crescimento nem a camuflagem ortodôntica representam a solução, a única possibilidade de tratamento é a cirurgia de reposicionamento dos maxilares ou segmentos dentoalveolares. A qual chamamos de cirurgia ortognática.(proffit 5ed)

A cirurgia ortognática refere-se à correção cirúrgica dos maxilares que permite o alinhamento e posicionamento adequado dos ossos e dentes em relação à base do crânio. Combinado com o tratamento ortodôntico, a cirurgia ortognática fornece correção adequada da má oclusão, especialmente para pacientes diagnosticado com deformidade dentofacial. Os procedimentos cirúrgicos ortognáticos são convencionalmente realizados após um período de ortodontia alinhamento, nivelamento e descompensação dentária. A correção cirúrgica convencional de dentes e deformidades esqueléticas podem ser realizadas através de osteotomias basais ou segmentares. Em casos raros, as osteotomias basais podem apresentar várias sequelas, incluindo aquelas relacionadas à perda de sangue (vitalidade pulpar, necrose óssea asséptica), hemorragias descontroladas, lesão nervosa, infecção, recidiva esquelética e má oclusão pós- operatória, distúrbios da articulação temporomandibular, desfavorável fratura no local da osteotomia sagital durante osteotomia sagital bilateral e depressão.(Risks in surgery-first orthognathic approach: complications of segmental osteotomies of the jaws. A systematic review).

Devido uma considerável parcela da população apresentar deformidades faciais, e esta influenciar diretamente nos aspectos biopsicossociais, podendo causar baixa qualidade de vida, transtornos mentais e funcionais, torna-se essencial a abordagem desse tema, já que a cirurgia ortognática pode trazer inúmeros benefícios quando realizada de maneira planejada e com acompanhamento profissional multidisciplinar adequado.

Relato de caso

Avaliação e diagnóstico

Paciente B. S. L, compareceu para atendimento na clínica odontológica do Instituto Singular com queixas ortodônticas e relatando dores na articulação temporomandibular. Após anamnese e avaliação física foi constatado que a paciente havia passado por um tratamento ortodôntico compensatório para tentativa de tratamento de maloclusão de classe III. No tratamento compensatório foi realizado exodontia dos primeiros pré molares inferiores para posterior tracionamento da bateria anterior e compensação da classe III, porém sem sucesso no fechamento do espaço remanescente da exodontia. Foi solicitado uma nova documentação ortodôntica para realização de um novo planejamento e possível mudança no plano de tratamento.

Análise cefalométrica

#DESCRIÇÃOVALORNORMADIAGNOSTICO
1(N-Pog).(Po-Orb)84.71 gr88.00POSICIONAMENTO POSTERIOR DA MANDIBULA
2N-A.Pog0.27 gr0.00RELAÇÃO MAXILO-MANDIBULAR ADEQUADA
3S-N.A85.13 gr82.00POSICIONAMENTO ANTERIOR DA MAXILA
4S-N.B85.17 gr80.00POSICIONAMENTO ANTERIOR DA MANDIBULA  
5A-N.B-0.04 gr2.00RELAÇÃO MAXILO-MANDIBULAR ADEQUADA  
6S-N.D82.32 gr76.00POSICIONAMENTO ANTERIOR DA MANDIBULA  
7S-N.Gn67.92 gr67.00POSICIONAMENTO ADEQUADO DA MANDIBULA
8S-N.Ocl17.80 gr14.00PLANO OCLUSAL AUMENTADO
9(S-N).(Go-Me)45.08 gr32.00PACIENTE COM CRESCIMENTO NO SENTIDO VERTICAL
10(Go-Gn).Ocl24.84 gr18.00PLANO MANDIBULAR AUMENTADO EM RELAÇÃO AO PLANO OCLUSAL
111/./1128.61 gr131.00RETRAÇÃO DOS INCISIVOS
121/.NS113.46 gr103.00INC. SUPERIOR VESTIBULARIZADO EM RELAÇÃO AO CRÂNIO
13/1-Orbita16.20 mm5.00INC. SUPERIOR PROTRUÍDO EM RELAÇÃO A BASE DO CRÂNIO
141/.NA28.32 gr22.00INCISIVOS SUPERIORES VESTIBULARIZADOS
151/-NA6.54 mm4.00INCISIVOS SUPERIORES PROTUÍDOS
16/1.NB23.11 gr25.00INCISIVOS INFERIORES LEVEMENTE LINGUALIZADOS
17/1-NB7.28 mm4.00INCISIVOS INFERIORES PROTUÍDOS
18/1.NPog7.56 mm0.00INCISIVOS INFERIORES PROTUÍDOS EM RELAÇÃO A FACE  
19H-Nariz8.68 mm10.00PERFIL CÔNCAVO
20Pog-NB-0.38 mm0.00MENTO BEM POSICIONADO EM RELAÇÃO A BASE DO CRÂNIO
21Eminência Mentoniana5.37 mm7.00COMPRIMENTO DO MENTO DIMINUÍDO  

Alternativas do tratamento

Após revisão dos achados diagnósticos, um tratamento odontológico compensatório foi descartado, devido à natureza esquelética da deformidade de Classe III. Concluiu-se que era necessária uma abordagem de tratamento não compensatória.

Objetivos do tratamento

Foi proposto um plano de tratamento combinado ortodôntico e cirurgia ortognática, a fim de melhorar a estética facial e obter uma função mastigatória adequada.

Progresso do tratamento

A fase ortodôntica pré-cirúrgica envolveu o alinhamento da dentição dentro das arcadas, descompensação dentária e coordenação das arcadas.  Deu-se início ao processo de alinhamento e nivelamento associado a descompensação dentária, devido a exodontia realizada no tratamento anterior foi indicado a colocação de dois implantes nos locais dos dentes 34 e 44, sendo necessário para tal a abertura de espaço, onde foi utilizado molas de secção aberta. Foi realizado exodontia dos dentes 14 e 24 e posterior retração da bateria anterior com uso de microimplantes intra-alveolares, com o objetivo de aumentar a discrepância maxilomandibular para melhor ganho estético no pós cirúrgico. Após o preparo ortodôntico foi realizado a cirurgia de modelo e traçado predictivo. Paciente foi encaminhada para realização da cirurgia ortognática, com planejamento para realização de avanço maxilar, recuo mandibular e mentoplastia, juntamente com a correção dos planos oclusais, maxilar e madibular.

Resultados do tratamento

No pós cirúrgico foi obtido uma oclusão classe I bilateral, com correto posicionamento das bases ósseas. Paciente foi orientada a utilizar elástico para intercuspidação e segue sendo acompanhada para finalização do tratamento ortodôntico.

INICIAL

Imagens mostrando a discrepância esquelética de classe III, e a inclinação dos incisivos inferiores na tentativa da compensação, porém sem sucesso.

PRÉ CIRÚRGICO

Descompensação dentária com instalação dos implantes dos dentes 34 e 44.

PÓS CIRÚRGICO

Pós operatório de 40 dias, com paciente fazendo uso de elásticos de intercuspidação, mostrando a relação de classe I bilateral.

Discussão

A má oclusão de Classe III esquelética é um dos problemas mais desafiadores enfrentados pelos ortodontistas. Caracteriza-se por uma discrepância anteroposterior entre a maxila e a mandíbula geralmente associada à compensação dentoalveolar para manter a função e camuflar a discrepância esquelética existente. Muitas vezes, a estética facial comprometida está presente, constituindo, nestes casos, o principal motivo pelo qual os pacientes ou seus responsáveis procuram tratamento. Orthodontic camouflage as a treatment alternative for skeletal Class III  É uma deformidade de difícil tratamento e com poucas alternativas de intervenção, que ficam ainda mais limitadas em pacientes sem crescimento. Na maior parte dos casos o tratamento ideal para adultos é a cirurgia ortognática, opção muitas vezes recusada pelo paciente. Essas deformidades esqueléticas, além de resultarem em alterações nas bases ósseas entre si e no posicionamento dos dentes, prejudicam também algumas funções importantes como deglutição, fonação, função mastigatória, articulações têmporomandibulares, função respiratória, harmonia e estética facial (FARIAS, 2015).

A má oclusão esquelética de Classe III leve a moderada e com estética facial aceitável pode se beneficiar de um plano de tratamento no qual movimentações dentárias são realizadas para compensar a discrepância esquelética. No entanto, se não tratada precocemente pode resultar em um aumento de sua severidade (FERREIRA, 2014) dificultando seu prognóstico e tratamento. A compensação ortodôntica de uma má oclusão esquelética é uma das alternativas possíveis para pacientes adultos que não querem passar por uma cirurgia ortognática (ALMEIDA, 2015; RIZATTO, 2009; ARAÚJO e ARAÚJO, 2008).

 A má oclusão de Classe III pode ser tratada de diversas maneiras. Dependendo do grau dessa má oclusão e da idade do paciente, os tratamentos poderão ser ortopédicos, ortodônticos compensatório ou ortodônticos cirúrgicos (DILIO et al., 2014).

O tratamento da Classe III de camuflagem geralmente se baseia na extração de pré-molares inferiores para corrigir a mordida cruzada anterior e disfarçar a discrepância esquelética. Esta abordagem de tratamento normalmente requer uma inclinação lingual excessiva dos incisivos inferiores, o que muitas vezes pode fazer o queixo parecer ainda mais proeminente, resultando em um resultado inestético. Outras complicações podem incluir exposição radicular por reabsorção da placa cortical, com subsequente recessão gengival. Surgical-orthodontic retreatment of a severe skeletal Class III malocclusion following an orthodontic camouflage.

Já o tratamento cirúrgico consiste em reposicionar as bases ósseas de forma a trazer harmonia oclusal, funcional e estética ao paciente. O tratamento cirúrgico é realizado juntamente com o tratamento ortodôntico através de um planejamento multidisciplinar.  

Considerações finais

O tratamento ortodôntico fundamenta-se em atingir uma oclusão que permita a função satisfatória e saudável do sistema estomatognático, estética facial, bucal e dentária, e estabilidade em longo prazo dos resultados alcançados. Pacientes adultos, com necessidades estéticas e funcionais, elevam o grau de dificuldade da obtenção desses objetivos, uma vez que, não tendo mais a capacidade de mudança proporcionada pelo crescimento ósseo, necessitam de procedimentos complementares e integrados para o alcance das metas almejadas. A má oclusão esquelética de Classe III é um bom exemplo dessa situação, onde as possibilidades ortodônticas são limitadas e necessitam de apoio de outras especialidades, em particular, da cirurgia. Entretanto, o que proporcionará a obtenção do êxito no tratamento será o entendimento e a integração entre as especialidades, que buscarão, em conjunto, as melhores alternativas e procedimentos. No caso apresentado, o tratamento foi realizado com a intervenção ortodôntica e a cirurgia ortognática. O conhecimento das necessidades estéticas e funcionais, assim como das expectativas e anseios da paciente, determinou a correção da discrepância óssea e oclusal.

Referências

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1 Graduado pela Universidade Federal do Ceará.

2 Graduando pela Faculdade Mauricio de Nassau.

3 Mestre em odontologia com ênfase em ortodontia pela Uniararas.