CINOMOSE EM ESPÉCIES NÃO-CANÍDEAS: REVISÃO DE LITERATURA

REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/th102411221301


Estela Ribeiro de Souza
Harisson Leal Rocha
Julianne Correia Cabral
orientação do Prof. Pedro Enrique Navas Suárez.


RESUMO

A cinomose canina está presente no mundo todo e é endêmica no Brasil. É uma patologia viral, extremamente contagiosa e letal para as espécies canídeas mas também para as não-canídeas como as famílias Felidae, Mustelidae, Procyonidae, Ailuridae, Ursidae, Hyaenidae, Viverridae e Phocidae. Trata-se de uma doença imunossupressora que afeta múltiplos sistemas, provocando distúrbios gastrointestinais e respiratórios, além de alterações nos tecidos epiteliais. Nos casos mais graves, pode levar a sinais neurológicos severos. É vista como uma doença infecciosa emergente na fauna selvagem, pois representa uma ameaça a diferentes animais e coloca em perigo espécies que já estão em risco de extinção.

Atualmente temos uma vasta gama de testes específicos disponíveis para o diagnóstico diferencial da cinomose em não-canídeos como isolamento viral, técnica de reação em cadeia pela polimerase precedida de transcrição reversa, análise do líquido cefalorraquidiano, exame histopatológico, exame imunohistoquímico, dentro outros. A prevenção mais eficaz para cinomose é a vacinação, no entanto, ainda não existem protocolos de vacinação bem estabelecidos para as espécies silvestres de vida, o que facilita a propagação do vírus nestes animais.

Palavras-chave: cinomose canina, espécies não-canídeas, epidemiologia, preservação da vida selvagem, etiopatogenia

ABSTRACT

Canine distemper is present worldwide and is endemic in Brazil. It is a viral disease, extremely contagious and lethal for canine species but also for non-canine species such as the Felidae, Mustelidae, Procyonidae, Ailuridae, Ursidae, Hyaenidae, Viverridae and Phocidae families. It is an immunosuppressive disease that affects multiple systems, causing gastrointestinal and respiratory disorders, in addition to changes in epithelial tissues. In the most severe cases, it can lead to severe neurological signs. It is seen as an emerging infectious disease in wildlife, as it represents a threat to different animals and endangered species that are already at risk of extinction. We currently have a wide range of specific tests available for the differential diagnosis of distemper in non-canines, such as viral isolation, polymerase chain reaction technique preceded by reverse transcription, analysis of cerebrospinal fluid, histopathological examination, immunohistochemical examination, among others. The most effective prevention for distemper is vaccination, however, there are still no well-established vaccination protocols for wild species, which facilitates the spread of the virus in these animals.

Keywords: canine distemper, non-canid species, epidemiology, wildlife conservation, etiopathogenesis

1  INTRODUÇÃO

No Brasil, o vírus da cinomose canina apresenta um caráter endêmico, e, devido aos seus altos índices de morbidade e mortalidade, causa um grande impacto na nossa vida selvagem (Cubas et al., 2014). A cinomose é causada por um Morbilivírus que acomete a Família Canidae, mas também possui outros grupos taxonômicos como hospedeiro como Felidae, Mustelidae, Phocidae, dentre outros (Ettinger et al., 2022). Já foi relacionada a surtos epidêmicos ocorridos anteriormente em espécies não-canidea como focas e leões (Wilkes, 2022) e ameaça atualmente os grandes felinos. Possui alta transmissibilidade majoritariamente em populações de animais de alta densidade (Cubas et al., 2014; Mcvey et al., 2016).

Seus hospedeiros normalmente apresentam diferentes sinais clínicos como picos de febre, secreções nasais purulentas, secreções oculares, hiperqueratose dos coxins e nasal (Cubas et al., 2014). No entanto, algumas espécies são mais resistentes ao vírus e raramente apresentam alterações clínicas, como nos ursos, gatos domésticos, onças-pardas e jaguatiricas (Wilkes, 2022).

Atualmente o método para a prevenção da cinomose para animais domésticos é a vacinação, no entanto, encontram-se algumas dificuldades no processo da imunização dos animais selvagens como a captura, a ausência de vacinas específicas para cada espécie, a falta de protocolos vacinais específicos, eficientes e práticos para as espécies, e assim por diante (Wilkes, 2022).

O diagnóstico não pode ser confirmado apenas por exames clínicos e complementares, devido à semelhança dos sinais clínicos com outras doenças. Métodos como o exame hematológico, técnicas como o RT-PCR, exame histopatológico e a análise do líquido cefalorraquidiano também contribuem para a identificação da infecção e suas características (Deem et al., 2000; Braz, 2009; Araújo, 2013; Moraes et al., 2013; Ettinger et al., 2022).

Conhecer as características etiológicas e epidemiológicas, os sinais clínicos e os métodos de diagnóstico da doença é de grande relevância para compreendermos como a doença se instala, sua propagação entre as espécies e como podemos contribuir para a preservação das espécies vulneráveis.

Buscar frear a disseminação do vírus, bem como entender como a doença se comporta nas diferentes espécies, são os principais desafios encontrados atualmente no combate à doença. Este trabalho visa elucidar os aspectos inerentes à cinomose canina, dando destaque à etiopatogenia e à prevenção da doença em espécies não-canídeas.

2 OBJETIVOS

Este trabalho tem como objetivo realizar uma revisão bibliográfica da cinomose em espécies não-canídeas e seu impacto na vida selvagem, apresentar estratégias de conservação da fauna, apontar os principais sinais clínicos e métodos de diagnóstico.

3 METODOLOGIA

Esta revisão de literatura teve como fonte de pesquisa materiais encontrados em bases de dados eletrônicos como PubMed; SciElo; Google Academics;

ResearchGate. A pesquisa foi realizada utilizando palavras-chave relacionadas ao tema proposto tanto no idioma português quanto na língua inglesa, focando em estudos que abordassem a cinomose em espécies não-canídeas. Dentre eles estão livros acadêmicos, dissertações, teses, artigos científicos e periódicos, entre os anos 1988 até 2023.

4  REVISÃO
4.1  Etiologia

O vírus da cinomose canina (VCC) pertence à família Paramyxoviridae e ao gênero Morbilivírus (Cubas et al., 2014). Outros vírus também pertencem a este gênero, como o vírus da peste de pequenos ruminantes, vírus do sarampo e vírus da peste bovina (Beineke, 2015). O VCC possui um material genético em RNA de fita simples e polaridade negativa, o que significa que seu sentido é inverso ao RNA mensageiro (Hewlett et al., 2023). Possui um nucleocapsídeo (envoltório proteico) de simetria helicoidal, além disso, o vírus é recoberto por um envelope formado por uma camada dupla lipídica proveniente da membrana fosfolipídica da célula hospedeira com glicoproteínas transmembranares, e seu diâmetro mede cerca de 100 a 300 nm (Vivina et al., 2011).

A exposição à luz ultravioleta e temperaturas maiores que 50 graus Celsius durante trinta minutos possibilita a inativação do vírus, além da utilização de produtos químicos como detergentes, desinfetantes, éter, clorofórmio, formol, fenol e amônio quaternário (Araújo, 2013; Vivina et al., 2011). Por outro lado, o vírus pode se manter estável em ambiente frio durante meses ou até anos, e consequentemente disponível para futuras infecções com o retorno de climas mais amenos (Vivina et al., 2011).

Os vírus pertencentes a Classe Morbilivírus possuem uma particularidade que auxilia no diagnóstico final, a presença de corpúsculo de Lentz tanto intranuclear quanto citoplasmático, sendo possível sua visualização através da microscopia eletrônica (Mcvey et al., 2016).

A RNA polimerase do vírus não tem capacidade de revisão, resultando em altas taxas de mutação genética (Wilkes, 2022) como adições, deleções e substituições de seus nucleotídeos (Vivina et al., 2011). Além disso, possui algumas proteínas, dentre elas a hemaglutinina (H) (Beineke, 2015; Wilkes, 2022), responsável pela ligação ao receptor SLAM (molécula de ativação de linfócitos sinalizadores) presente nas células do sistema imunológico do hospedeiro, ou seja, através do receptor SLAM o vírus se conecta à célula hospedeira, permitindo sua infecção (Wilkes, 2022). As mutações genéticas no sítio de ligação da proteína H permitem com que o vírus tenha capacidade para infectar uma gama diversificada de hospedeiros, promovendo epizootias em espécies selvagens sob risco de extinção (Beineke, 2015; Wilkes, 2022).

4.2  Epidemiologia

Além de canídeos (como raposas, lobo-guará, cachorro vinagre, coiote e lobos), outras espécies não-canídeas podem assumir o papel de hospedeiro, visto que o vírus já foi descrito em animais pertencentes a diferentes grupos taxonômicos, dentre eles estão Felidae, Mustelidae, Procyonidae, Ailuridae, Ursidae, Hyaenidae, Viverridae e Phocidae (Martins et al., 2009; Beineke, 2015; Ettinger et al., 2022).

A cinomose canina possui distribuição global, sendo endêmica em diversas regiões do mundo (Mcvey et al., 2016) — inclusive do Brasil — é extremamente contagiosa entre os cães (Beineke, 2015; Vivina et al., 2011) e possui elevadas taxas de morbidade e mortalidade (Cubas et al., 2014). Entretanto, essas taxas podem variar conforme as espécies acometidas (Martins et al., 2009; Beineke, 2015).

A transmissibilidade ocorre através do contato direto com secreções oculares, respiratório e genital, e indiretamente mediante objetos contaminados, principalmente em locais de alta densidade populacional de animais (Cubas et al., 2014). Urina e fezes de animais infectados podem conter partículas virais (Mcvey et al., 2016).

Presume-se que a infecção em espécies de vida solitária como tigres e leopardos não ocorre pelo contato dos indivíduos em si, mas por meio da predação de animais reservatórios que contêm o vírus (Wilkes, 2022).

Os fatores posição social e hierarquia entre animais sociais pertencentes a um mesmo grupo podem influenciar na transmissibilidade do vírus. Marescot et al. (2018) avaliaram os efeitos da posição social em clãs de hienas-malhada (Crocuta crocuta) infectadas pelo VCC após uma epidemia nos anos de 1993/1994 em um Parque Nacional do Serengeti. Em suma, os autores observaram que hienas de alto escalão têm maior exposição à infecção viral comparado às hienas de menor hierarquia social. Por outro lado, a nutrição dos filhotes e a construção de seu sistema imunológico têm maior impacto no desenvolvimento da doença do que a própria exposição ao vírus. Concluíram que os filhotes de maior escalão têm maiores chances de combater uma infecção e se recuperarem. Ainda assim, os autores ressaltaram que não se pode ignorar que filhotes possuem genes imunológicos diferentes, independentemente de suas posições sociais dentro do clã.

4.3  Cinomose e seu impacto na vida selvagem

A expansão das civilizações impulsionou o surgimento de doenças infecciosas emergentes em animais de vida livre através da introdução de cães domésticos em habitats selvagens (Daszak; Cunningham; Hyatt, 2000; Vivina et al., 2011), colocando em risco a vida de animais silvestres (Cubas et al., 2014).

O VCC é capaz de reduzir significativamente as populações de carnívoros silvestres, no entanto, a situação se torna ainda mais crítica para animais que estão sob ameaça de extinção. Tendo isso em vista, a cinomose é considerada uma doença emergente e alvo de preocupação no que tange a conservação e preservação da vida selvagem (Cubas et al., 2014; Vivina et al., 2011; Martinez-Gutierrez; Ruiz-Saenz, 2016).

Em 2013 foi realizada uma pesquisa confirmando o surgimento de uma nova cepa de VCC encontrada pela primeira vez em tigres selvagens de Amur (Panthera tigris altaica), Extremo Oriente Russo. Apesar de não conhecerem a distribuição exata da estirpe de VCC, sugere-se que o vírus esteja amplamente distribuído por todo habitat dos tigres de Amur, sendo uma grande ameaça para estes animais que já possuem uma população reduzida (Seimon et al., 2013).

De acordo com Daszak, Cunningham & Hyatt (2000), o termo “Spill-over” refere-se a transmissão de agentes infecciosos em espécies consideradas reservatórios para animais suscetíveis de mesma área geográfica, sendo uma ameaça substancial para os animais mais vulneráveis. Segundo ele, é necessário a realização de pesquisas que adotem uma abordagem multidisciplinar, visando a detecção de causas subjacentes e o controle da disseminação de doenças infecciosas emergentes em animais selvagens.

O vírus está relacionado a surtos ocorridos no passado, os quais atingiram espécies mais vulneráveis como furões-de-patas-pretas (Mustela nigripes) focas do Cáspio (Pusa caspica) e pandas-gigantes (Ailuropoda melanoleuca), levando à quase extinção destas espécies. Atualmente, ameaça grandes felinos como leopardos e tigres de Amur, leopardos de Java e leões asiáticos (Wilkes, 2022). Foram relatados por Daoust et al. (2009), casos de infecção por VCC em linces selvagens (Lynx canadensis e Lynx rufusna) na província canadense Nova Brunswick e na Nova Escócia entre 1993 e 1999. Pelo fato dos linces correr risco de extinção nestas regiões, as infecções por VCC podem causar um grande impacto na recomposição da população destes animais.

Martinez-Gutierrez & Ruiz-Saenz (2016) constataram por meio de sua pesquisa que a Ordem dos Carnívoros possui maior soropositividade para VCC enquanto a Família Mustelidae, a maior porcentagem de soropositividade em comparação a outras Famílias desta Ordem. Os furões domésticos e de pata preta (Mustela nigripes) são extremamente susceptíveis ao vírus da cinomose, com taxas de mortalidade que atingem quase 100% (Martins et al., 2009; Deem et al., 2000) Sabe-se que o vírus da cinomose teve seu papel na morte de furões-de-pata-preta em uma colônia nos EUA em 1985, posteriormente levando ao seu desaparecimento de sua população (Williams et al., 1988).

Em 1994 ocorreu uma epidemia que matou leões de um Parque Nacional no Serengeti. Segundo Roelke-Parker et al. (1996) apenas 39 mortes de leões por VCC foram documentadas, no entanto, sabe-se que estatisticamente o número de mortes de leões é muito maior, pois em agosto do mesmo ano o vírus se espalhou para os leões da Reserva Nacional Masai-Mara no Quênia, matando cerca de 30% dos leões do Serengeti e de Mara. Sugeriu-se então que a fonte de VCC em leões originou-se de cães domésticos de aldeias locais próximas ao parque. Diante do exposto, Roelke-Parker et al. (1996) enfatiza a importância da implementação de programas de vacinação para cães domésticos para a diminuição da transmissibilidade do vírus para animais selvagens.

4.4  Patogenia e sinais clínicos

Os sinais clínicos, taxas de morbidade e mortalidade podem variar em decorrência de fatores como a virulência da cepa, sistema imunológico de cada indivíduo, a espécie acometida em questão, entre outros. Em geral, em todas as espécies o vírus acomete o sistema respiratório, gastrointestinal, tegumentar e SNC (Deem et al., 2000; Wilkes, 2022).

Sua transmissão ocorre principalmente pela inalação de partículas virais (Beineke, 2015) presentes em aerossóis produzidos por espirros e tosse, pelo contato com secreções, vômito, urina, fezes e fômites contaminados.

Após a infecção, o vírus começa a ser excretado entre o sétimo e o décimo dia (Ettinger et al., 2022). O período de incubação é de uma a quatro semanas (Beineke, 2015) porém, pode variar por até um mês (Cubas et al., 2014). Após sua entrada no hospedeiro, o vírus infecta os macrófagos ou células dendríticas que se deslocam para tecidos linfóides regionais do trato respiratório superior, posteriormente essas células se multiplicam nos linfonodos B e T (Beineke, 2015; Wilkes, 2022) causando linfopenia e consequentemente a primeira onda febril de curso rápido (Beineke,

2015). Esta febre diminui e cessa alguns dias antes da segunda febre (Khan, 2014). A partir disso, o vírus infecta outros tecidos linfóides que resultam em uma imunossupressão generalizada do hospedeiro (Wilkes, 2022), gerando uma segunda onda febril seguida por infecção de células epiteliais, do trato respiratório, digestivo e SNC (Beineke, 2015).

Os sinais clínicos estão geralmente relacionados aos sistemas acometidos como, por exemplo, secreção nasal purulenta e oculares, tosse seca, vômito, diarréia, rinite, conjuntivite, anorexia, desidratação, sinais neurológicos e sinais dérmicos como dermatite, hiperqueratose dos coxins e nasal (Cubas et al., 2014; Beineke, 2015; Mcvey et al., 2016). No momento em que o vírus tem acesso às células do sistema nervoso, o animal apresenta sinais neurológicos devido à desmielinização dos neurônios, (Wilkes, 2022) como a rigidez cervical, hiperestesia, convulsões focais ou generalizadas, espasmos, mioclonias, salivação, movimentos mandibulares repetitivos, nistagmo, paralisia e ataxias sensoriais (Khan, 2014; Beineke, 2015; Wilkes, 2022).

4.4.1  Espécies acometidas

Os guaxinins, da família Procyonidae, apresentam sinais clínicos semelhantes dos cães como rinite, hiperqueratose com hiperpigmentação em coxins e focinho, pneumonia intersticial e alterações neurológicas devido à desmielinização da substância branca do cerebelo (Beineke, 2015).

Já na familia Ursidae maioria dos ursos não desenvolvem sinais clínicos (Wilkes, 2022), no entanto, Beineke (2015) relata brevemente em seu trabalho que já foi possível detectar alguns sinais clássicos em um filhote de urso negro americano. Os sinais foram tremores esporádicos, convulsões, perda do medo por humanos, espessamento de coxins plantares causado pela hiperqueratose. Também foram registradas mortes de filhotes de urso polar (Ursus maritimus) e urso de óculos (Tremarctos ornatus) causado pelo VCC.

Espécies como Felis catus, Puma concolor e Leopardus pardalis não desenvolvem sinais clínicos, por outro lado, o vírus já causou a morte de 30% da população de leões (Panthera leo) do Parque Nacional do Serengeti em 1990 (Wilkes, 2022). Segundo Deem et al. (2000) em um estudo feito com felinos infectados (leões africanos, tigres, leopardos e onças-pintadas), não foram observados em nenhum dos casos hiperqueratoses em coxins

No que se refere ao grupo Mustelidae, eles demonstram grande sensibilidade ao vírus com altas taxas de mortalidade (Deem et al., 2000; Martins et al., 2009) e sinais clínicos semelhantes ao de cães domésticos foram descritos. A presença de vermelhidão, crosta na região de boca e hiperqueratose grave em coxins e focinho são indicativos para infecção (Deem et al., 2000; Beineke, 2015). Segundo os autores Cubas et al. (2014), os furões dificilmente apresentam vômito e diarreia, porém demonstram  depressão,    febre,  fotofobia,       blefaroespasmos,    sintomas respiratórios e evoluem para morte.

4.5  Estratégias de controle e conservação

Atualmente a vacinação contra a cinomose demonstrou ser o melhor método para prevenção e redução do risco de aparecimento desta enfermidade (Martins et al., 2009; Ettinger et al., 2022). Em regiões como a África, onde a vacinação não é amplamente empregada, os canídeos domésticos são fonte de infecção para animais de vida livre (Deem et al., 2000). Não obstante, a vacinação de cães domésticos não é um fator que, isoladamente, possa prevenir a propagação para não-canídeos, portanto é extremamente importante para a conservação a inclusão da imunização dos próprios animais selvagens (Wilkes, 2022).

Mcvey et al. (2016) recomendaram que, em espécies que não possuem estabelecido uma vacina específica, deve ser feita a imunização com o vírus morto, pois existem casos relatados de desenvolvimento da doença em animais como marta, jupará e urso panda Lesser após a aplicação da vacina com vírus vivo modificado. Doenças induzidas também foram relatadas em espécies da família Mustelidae pós-vacinação (Deem et al., 2000). Em juparás (Potos flavus) foi relatado cinomose induzida por meio         da       imunização   bem    como  pandas-vermelhos  (Ailurus            fulgens)          que desenvolveram a doença através da vacinação com vírus vivo modificado (Beineke, 2015).

As estratégias de vacinação para animais selvagens devem levar em consideração as diferenças fisiológicas de cada espécie, sendo um fator importante no que diz respeito ao intervalo entre doses, a quantidade de dose, o volume a ser aplicado, o tempo de permanência dos anticorpos maternos em filhotes de cada espécie e aplicações de reforço (Wilkes, 2022). Infelizmente, ainda não existem vacinas de VCC específicas para cada espécie, por isso, somente restam opções de vacinas atualmente disponíveis no mercado destinadas aos animais domésticos (Wilkes, 2022).

Ao passo que habitats vão sendo invadidos por populações humanas e seus tamanhos vão regredindo, consequentemente o contato e a interação entre as espécies aumenta. Em razão disso, Seimon et al. (2013) enfatizaram importância da implementação de práticas que visam a diminuição da transmissão de patógenos infecciosos entre animais selvagens como a monitorização a longo prazo dos animais de vida livre, a identificação de hospedeiros reservatórios selvagens para VCC e cepas transmissíveis para espécies ameaçadas como tigres-de-amur (Panthera tigris altaica) e leopardos-de-amur (Panthera pardus orientalis) além de vacinação de cães domésticos e animais em cativeiros e zoológicos.

Em resumo, atualmente temos alguns contratempos que dificultam o processo de implementação de programas eficazes de vacinação contra cinomose objetivando a preservação de animais selvagens (Vivina et al., 2011), como o alto custo monetário relacionado aos programas de vacinação em larga escala e a ausência da produção de vacinas específicas (Wilkes, 2022). Além disso, a escassez de estudos epidemiológicos e informações limitam a consolidação de métodos alternativos de controle da doença (Moraes et al., 2013).

4.6  Métodos de diagnóstico

Os resultados obtidos apenas pelos exames clínicos e complementares não são suficientes para um diagnóstico fidedigno para cinomose, pois os sinais clínicos são muito similares aos sinais de outras doenças que apresentem sinais clínicos semelhantes como exemplo a raiva, sendo necessário a realização de diagnósticos diferenciais (Deem et al., 2000) por meio de testes mais específicos que possibilitem um diagnóstico precoce e uma conduta terapêutica coerente do profissional veterinário. Para tal finalidade, existem vários testes que podem auxiliá-lo em alcançar um diagnóstico mais assertivo (Araújo, 2013; Moraes et al., 2013).

No exame hematológico, a alteração mais consistente é a linfopenia (Ettinger et al., 2022), porém também podemos observar leucopenia no início da infecção, anemia, trombocitopenia e linfopenia, além de neutrofilia em processos de infecção bacteriana secundária, no entanto, estas alterações não são específicas da cinomose e nem todos os indivíduos respondem à infecção da mesma forma, portanto são necessários testes mais específicos (Araújo, 2013; Moraes et al., 2013).

Moraes et al. (2013) relata que através do isolamento viral é possível obter resultados característicos como lise e arredondamento celular, formação de sincícios, descolamento de monocamada e possíveis observações de corpúsculos de inclusão (característica patognomônica desta doença). Nesta técnica inocula-se o vírus em células de linhagem Vero ou MDBK através de amostras de secreções nasais, oculares e sangue (Braz, 2009). Entretanto, a ausência de corpúsculo de inclusão não exclui uma possível infecção pelo vírus da cinomose (Moraes et al., 2013), pois normalmente durante a fase crônica não são encontrados corpúsculos de Lentz (Araújo, 2013).

A técnica de reação em cadeia pela polimerase precedida de transcrição reversa (RT-PCR) apesar de, assim como as outras técnicas, estar sujeita a interferência de fatores durante seu processo é a principal técnica para se obter um diagnóstico ante-mortem (Araújo, 2013), pois possui alta sensibilidade e especificidade, detecta RNA viral em diferentes tipos de amostras e disponibiliza rapidamente seu resultado, o que é substancial para o tratamento do animal acometido (Moraes et al., 2013).

O teste de análise do líquido cefalorraquidiano, por sua vez, é capaz de detectar o aumento de proteínas totais, o aumento da quantidade de leucócitos e o aumento da pressão relacionada a infecção (Deem et al., 2000; Araújo, 2013; Ettinger et al., 2022).

Já o exame histopatológico é um teste que mostra, a partir de métodos de coloração, lesões caracterizadas por inclusões (corpúsculo de Lentz) intracitoplasmáticas ou intranucleares em diversos tecidos (Braz, 2009) como vesícula urinária, SNC, conjuntiva e coxins (Moraes et al., 2013). Corpos de inclusão normalmente não são encontrados no sangue ou em tecido conjuntival, exceto durante a fase aguda da doença. Diferente dos cães domésticos, em grandes felinos é possível encontrar lesões hiperplásicas difusas de células alveolares tipo 2 em conjunto com a presença de corpos de inclusão intracitoplasmática e intranucleares durante o exame histopatológico. Ademais, as amostras teciduais de cérebro felino podem não demonstrar o mesmo padrão típico de canídeos associados a desmielinização com astrocitose e manguito vascular (Deem et al., 2000).

Esfregaço faríngeo, sanguíneo, conjuntival ou amostras teciduais post-mortem também são utilizados no exame imuno-histoquímico (Ettinger et al., 2022). Esta técnica pode ser realizada com o animal vivo utilizando amostras da mucosa nasal, do epitélio dos coxins e pele, e também por meio de amostras de órgãos como baço, tonsilas, linfonodos, pulmão e cérebro em situações de post-mortem (Braz, 2009).

Além das técnicas supracitadas, existem outros testes disponíveis em laboratório que auxiliem na obtenção do diagnóstico de cinomose como, por exemplo, o teste de imunofluorescência direta/indireta, ensaios imunoenzimáticos, teste de ELISA e fixação de complemento, soroneutralização (Braz, 2009).

5 CONCLUSÃO

A cinomose canina é causada pelo vírus da cinomose canina (VCC), a fauna selvagem vem sendo afetada gravemente por sua incidência, principalmente as espécies não-canídeas que estão em risco de extinção como: os tigres de Amur, os furões-de-pata-preta e os pandas gigantes. A transmissão do vírus ocorre pelo contato com as secreções de animais infectados, e em decorrência da convivência entre animais domésticos e selvagens sua propagação se torna mais fácil. A virulência do vírus, e a imunodepressão das espécies acometidas, somado a ausência de vacinas específicas para a fauna silvestre agravando o problema.

Portanto, as estratégias para conservação devem incluir a vacinação de animais selvagens em ameaça, apesar das limitações financeiras e logísticas é de suma importância. Detectar a doença precocemente é fundamental para o controle eficaz da mesma. Para combater a cinomose na fauna silvestre é necessário unir esforços colaborativos multiprofissionais envolvendo os pesquisadores, os profissionais de saúde animal, os órgãos de conservação e também as políticas públicas e de educação ambiental para auxiliar na proteção das espécies ameaçadas.

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