RAÍZES CULTURAIS BRASILEIRAS NA OBRA O SACI, DE MONTEIRO LOBATO: A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO FICCIONAL E A ECOCRÍTICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102411181617


Alexandrina Verônica Guedes das Neves[1]
Robson Teles Gomes[2]


RESUMO

Monteiro Lobato apresenta, em muitas obras, um perfil ecológico que, desde o início do século XX, já demonstrava indignação com o caminho que a humanidade vinha trilhando ao demonstrar total desrespeito, principalmente, à natureza. Na série do Sítio do Picapau Amarelo, obras como O Saci revelam, de forma lúdica, contextos que envolvem ideias ligadas à Ecocrítica e à literatura infantil, uma vez que o autor via a criança como um ser capaz de se identificar e de se envolver com questões em defesa do meio ambiente.Lançado pela primeira vez no ano de 1921, o livro O Saci – cujo tema principal é o folclore – é uma aventura infantil na qual o Saci, o personagem principal, é “autorizado” a ensinar sobre a natureza e o folclore nacional a Pedrinho. O enredo tem como espaço O Capoeirão dos Tucanos – a Mata Virgem do Sítio do Picapau Amarelo. Lá, os personagens do Sítio descobrem os segredos da mata, compondo-se uma reflexão sobre a importância da natureza e os desmandos do homem. Nessa narrativa, o espaçocriado se relaciona com a vivência sócio histórica e se constitui como uma visão mais dinâmica de sensibilização e respeito à natureza. Partindo dessa premissa, nossa proposta de trabalho é analisar passagens do livro que contribuem para a construção de concepções e práticas de educação ambiental.

Palavras-chave: O Saci;Monteiro Lobato; literatura infantil; ecocrítica; espaço

Introdução

A ecocrítica se firmou definitivamente no cenário mundial durante a década de 1990, a partir de diversos estudos de crítica literária de ideias ecológicas. Ademais, segundo Greg Garrard (2007, p. 360), esse movimento se deteve em realizar a “análise das origens culturais e das respostas às questões da crise ambiental”. A ecocrítica, também chamada de ecocriticismo, é o estudo da relação entre a literatura e o ambiente físico, a crítica das ideias e dos discursos sobre a natureza, a ecologia e sobre o ambientalismo. Sabemos que, muito antes de toda essa conceituação e ação, a literatura brasileira já havia abordado a natureza de forma crítica. É o caso de Lima Barreto e de Euclides da Cunha, os quais, embora tão diferentes entre si, têm como elemento comum retratar a natureza brasileira.

Tais autores publicaram sua obra no início do século XX, período de transição estética, já que, de um lado, ainda se faziam fortes as tendências artísticas do Realismo, Naturalismo, Simbolismo e do Parnasianismo, estéticas iniciadas na segunda metade do século XIX, e, de outro lado, já se faziam presentes escritores e artistas que apresentavam em suas obras os indícios do que viria a resultar na Semana de Arte Moderna de 1922. Muitas questões históricas, como a República do café com leite, consolidação da economia cafeeira, racismo estrutural, República das espadas, entre outros, acabaram por provocar um nacionalismo crítico temático e uma renovação na linguagem literária, o que, de certa maneira, provocou um hibridismo entre o plano narrativo e o crítico, entre as descrições poéticas do cenário natural e abordagens sociológicas, geográficas e científicas unidas a um brasileirismo.

Na perspectiva dessa importante abordagem crítica, em 1972, a ONU reuniu 113 países para refletir sobre o uso consciente de recursos naturais e a ação do homem sobre o meio ambiente. Muitos anos antes dessa Conferência, Monteiro Lobato mostrou-se preocupado com questões ambientais que nos incomodam até hoje, mas não há, de maneira significativa, referência à contribuição que a produção literária lobatiana deu aos temas sobre natureza.

Ademais, é curioso observar que Monteiro Lobato tinha consciência da importância do estilo literário crítico que Lima Barreto e Euclides da Cunha produziam, informação presente na correspondência mantida com o amigo Godofredo Rangel:

Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais sobre o triunfo de Policarpo Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. Ajuíza pelo que li, este sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas… facílimo na língua, engenhoso, fino, dá impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda d’água. Vou ver se encontro um Policarpo e aí o terás. Bacoreja-me que temos pela proa o romancista brasileiro que faltou (LOBATO, 1956, p. 108, v.2)

Tomando Triste fim de Policarpo Quaresma como um grande incentivo a uma visão crítica que os brasileiros deveriam ter em relação à nação, percebemos que, do ponto de vista ideológico, Lobato e Lima Barreto apresentavam pensamentos análogos: nutriam o desejo de buscar uma identidade brasileira crítica.

Em relação a Euclides da Cunha, em A barca de Gleyre (1944), Lobato elogia Os sertões pela iniciativa do autor em expor tanto as vicissitudes por que passa o sertanejo quanto por mostrar, através do retrato do sertão, um Brasil pobre, indigente e abandonado, em contraposição a um Brasil litorâneo, culto e moderno, sobre o qual recaem os olhos da elite intelectual e política.

A despeito de Monteiro Lobato ter, de imediato, repudiado as vanguardas europeias e algumas atitudes de renovação artística, podemos considerá-lo um autor modernista em decorrência da assimilação de ideias e de ideais que revelam uma visão de nacionalidade bastante crítica. De certa maneira, os referidos autores e suas respectivas obras (Os sertões, Triste fim de Policarpo Quaresma e O Saci) denotam a preocupação de mostrar um Brasil rico em natureza, mas também promovem um olhar cheio de reflexão e de cuidados. Assim, a importância dos textos de A Barca de Gleyre, copilando a correspondência das cartas de Lobato ao amigo Godofredo Rangel durante quase 40 anos, reside no fato de que nelas encontramos a concepção do pensamento literário e mesmo cultural de Lobato.

Ao publicar a série do Sítio do Picapau Amarelo, o autor escreve pensando na criança brasileira, criando uma literatura crítica na qual os questionamentos sobre as raízes culturais do Brasil e sobre a natureza são demonstrados e ensinados através de livros como O Saci (1921), Caçadas de Pedrinho (1939) O poço do Visconde (1937), Reforma da Natureza (1941). Tais obras buscam conscientizar o público infantil da inerência da natureza ao ser humano, utilizando, para isso, uma linguagem simples, criativa e ao mesmo tempo lúdica, inserindo as crianças, desde cedo, no mundo da linguagem artística e da nossa cultura. Além disso, essas produções merecem ser vistas como uma contribuição para as discussões brasileiras sobre questões ecológicas – debate iniciado já no Brasil Império –, sobretudo no que diz respeito à exploração dos espaços verdes.

Saci: protetor da floresta

Em O Saci, o homem quer medir forças com a natureza, e o Saci, símbolo do nosso folclore e também protetor da floresta, ensina a respeitá-la. Nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, esse personagem aparece pela primeira vez na obra que leva o seu nome, publicada em 1921. Nessa obra, Pedrinho, neto de Dona Benta, proprietária do Sítio, vai passar as férias escolares junto com avó e a prima, e descobre que pode capturar um saci, conforme lhe informa Tio Barnabé, um negro idoso que mora nos arredores do Sítio. Depois de ter sido capturado por Pedrinho e de ter sua carapuça furtada pelo menino, o Saci lhe promete amizade eterna, e os dois vivenciam muitas aventuras na Mata do Capoeirão dos Tucanos. Assim, vão em busca de conhecer os segredos da mata.

Interessante observar que a etimologia do termo saci-pererê indica três termos importantes: é oriundo do termo tupi sa’si; Matimpererê, do termo tupi matintape’re, e pererê é oriundo do termo tupi pererek-a, que significa “ir aos saltos”. É um personagem muito conhecido do folclore brasileiro, tendo origem presumida entre os indígenas da Região das Missões, no sul do país, de onde teria se espalhado por todo o Brasil. O Saci-Pererê transformou-se num jovem negro com apenas uma perna, pois, de acordo com o mito, havia perdido a outra numa luta de capoeira. Passou a ser representado usando um gorro vermelho e um cachimbo, típico da cultura africana. Até os dias atuais, ele é representado dessa forma.

Em 18 de outubro de 1917, houve uma exposição de artes plásticas promovida pelo jornal O Estado de São Paulo, que tinha como um dos membros da comissão julgadora o escritor e intelectual Monteiro Lobato. Sobretudo a partir desse momento, o mito do Saci ganhou status literário (OLIVEIRA, 2009). Na sequência de destaque para a figura do Saci,

Em 1918, Lobato publicou seu livro de estreia “O Saci-Pererê: resultado de um inquérito”, consequência de uma pesquisa de opinião pública sobre o Saci, intitulada “Mitologia brasílica”, e, em abril de 1921, o mesmo autor lançou a obra infantojuvenil “O Saci”. No ano de 1960, foi a vez de Ziraldo valer-se dessa figura em sua obra. O cartunista mineiro publicou a revista Turma do Pererê, representando o negrinho astuto em cores (OLIVEIRA, 2009, p. 2).

Nas rodas de histórias e de conversas, o saci sempre foi visto como um ser malvado, arteiro e brincalhão, de acordo com as versões de cada região brasileira. Essa lenda, que, sem sombra de dúvida, ficou popularizada por Lobato em suas narrativas, provavelmente surge no sul do país no final do século XVIII. Nas histórias do Sítio, ele sempre aparece para perturbar o sossego de Tia Nastácia e o do tio Barnabé e ajudar toda a turma a livrar-se das feitiçarias da Cuca.

Em seu trabalho como crítico sociocultural, as leituras e as pesquisas de Lobato acerca do interior do Brasil e da figura do caboclo provocaram-lhe grande admiração pelos mitos folclóricos nacionais, e em especial, pelo Saci. Nesse sentido, no momento do falecimento do orador e jornalista Ricardo Gonçalves, o qual participou do famoso grupo lobatiano Minarete, Monteiro Lobato publicou A poesia de Ricardo Gonçalves, em 1916. A referida homenagem deixa claro o interesse de Lobato pelo folclore brasileiro, como podemos perceber neste trecho:

Pelos canteiros de grama inglesa há figurinhas de anões germânicos […] porque tais nibelungices, mudas à nossa alma, e não sacis-pererês, caiporas, mães d’água e mais duendes criados pela imaginação do povo? (LOBATO, 1916, p. 299).

A leitura desse trecho atesta certo inconformismo com a falta de atenção com a identidade cultural brasileira, o que pode justificar o motivo de o autor explorar com mais afinco a lenda brasileira do Saci-Pererê.

De acordo com Cavalheiro (1955),

Em 1917, o autor realizou um inquérito no jornal “O Estado de São Paulo” na versão chamada “Estadinho”, mais especificamente sobre o Saci. O que ele queria mesmo era colher versões dos leitores sobre a lenda. Desse modo, recebeu dezenas de respostas que o encorajaram a fazer, em seguida, um concurso de pintura e escultura. Com essas primeiras atitudes que foram sucesso garantido, publicou O Saci-Pererê: Resultado de um inquérito. A obra teve duas edições esgotadas em menos de um ano, com uma tiragem média de 7.300 exemplares (LOBATO, 1944, p. 371; CAVALHEIRO, 1955, p. 192).

Entendemos que essa forma foi primordial para mexer com o imaginário dos brasileiros e para que, em especial, eles conhecessem a história do saci. Assim, valendo-se do Saci “professor”, Lobato inclui maneiras didáticas de se conhecer o folclore brasileiro e a mata. Além do mais, ele inclui na trama animais típicos de nossa fauna – como onça, cascavel –, insetos e espécies vegetais, tudo isso somado a uma discussão de teor filosófico entre Pedrinho e Saci. Mais do que a intenção de fazer o público infantil conhecer o folclore brasileiro, o autor também consegue fazer com que a criança possa depreender que, preservando as matas, estamos preservando a memória do imaginário folclórico.

Monteiro Lobato: a voz do folclore nacional

Segundo Cunha (1970, p.9), “desde Rousseau, não se admite mais a ideia da criança como um homunculus: ela tem características e necessidades diferentes das dos adultos”. Rousseau teve grande influência sobre os livros infantis escritos no início do século XIX no Reino Unido, na França e na Alemanha. Cunha diz, ainda, que o princípio do crescimento espontâneo e normal da criança, dentro de um ambiente natural adequado e proclamado por Rousseau, não foi, no entanto, bem entendido pelos escritores e professores da época, que impregnaram a literatura infantil de informações escolares e princípios moralizantes.

Após Lobato abrir as portas para a imaginação, a fantasia, para o resgate das raízes culturais brasileiras, fazer adaptações e também promover o compromisso com questões pedagógicas, como o livro Emília no país da gramática, publicado em 1934, Aritmético da Emília (1935), entre outros, fortaleceram-se no Brasil autorias também de relevância no processo de aceitação da chamada “nova literatura para a criança”. Segundo Sandroni (1987, p.58), “Monteiro Lobato foi o primeiro escritor brasileiro a acreditar na inteligência da criança, na sua curiosidade intelectual e capacidade de compreensão”. Com certeza, ele enriqueceu ainda mais a cultura nacional, sendo o grande responsável por popularizar a lenda do Saci, como também trouxe para todos diversas outras lendas, como a da Iara, a do Curupira, e tantas outras entidades que carregam as histórias e as tradições de um Brasil diverso.

Retomando a abordagem acerca de questões ambientais, o interesse pelo tema continua em Histórias de Tia Nastácia (1937), obra em que a personagem que compõe o título se torna protagonista e exerce a função de contadora de histórias, narrando contos folclóricos de todas as regiões do país. Inclusive, é nesse livro que Dona Benta explica a Pedrinho o significado da palavra Folclore, termo que o garoto havia lido no jornal:

– Dona Benta disse que folk quer dizer gente, povo; e lore quer dizer sabedoria, ciência. Folclore são as coisas que o povo sabe de boca, de um contar ao outro, de pais e filhos – os contos, as histórias, as anedotas, as superstições, as bobagens, a sabedoria popular (LOBATO, 2007, p. 7)

Nesse livro, em especial, Tia Nastácia se torna a porta-voz do povo, transmitindo as histórias do jeito que tinha aprendido.

Como de costume, as narrativas do Sítio do Picapau Amarelo se estruturam com histórias dentro de histórias, nas quais, depois de aprenderem algo novo nos livros – em geral, lidos por Dona Benta –, os personagens interferem e opinam sobre tudo. Enquanto Emília e Narizinho criticam os contos populares dizendo que não têm pé nem cabeça, Pedrinho tem uma postura de um ‘sociólogo’, dizendo que “devemos entender essas histórias como a mentalidade do povo” (LOBATO,2007 p.12). Interessante frisar que Lobato, da mesma forma que coloca a linguagem erudita em suas histórias para criança, ensinando sobre autores famosos e suas descobertas, não deixa também de expor o conhecimento e a cultura popular.

Aspectos de ecocrítica na obra de Lobato

Crianças têm, instintivamente, uma ligação muito próxima com a natureza. Gostam de bichos e de plantas e tendem a se importar com o bem-estar deles. Nessa perspectiva, a literatura infantil ocupa um papel especial nesse perfil, despertando para a preservação e respeito à natureza, fomentando uma nova consciência mais respeitosa com o meio ambiente.  

O termo ecocriticismo, cunhado na década de 1970, por meio de algumas coletâneas produzidas na década de 1980, é um campo de estudo que se efetiva na década de 1990, quando é criada a disciplina Literatura e Meio Ambiente, na Universidade de Nevada, Reno, Estados Unidos da América (PINTO; MAGALHÃES, 2013). O conceito estabelece-se no princípio de que “todas as coisas são interligadas” (GLOTFELTY, 1996, p. 19). Assim, podemos afirmar que a ecocrítica pauta-se na relação compreendida entre escritor/texto/mundo. Essa junção baseia-se na compreensão do universo, englobando as relações humanas no âmbito da esfera social, se expandindo ao ecossistema, em sua totalidade. A ecocrítica,ao propor unir natureza e literatura, confere a relação do homem com o meio natural a partir de uma perspectiva planetária, em vista de construir uma população mais consciente no que diz respeito ao meio ambiente.

Em todos os tempos, em todos os lugares, homens e mulheres de diferentes culturas, costumes, credos, etnias produziram arte, intensificaram a literatura. Todos produziram literatura em sua forma escrita ou oral. Mas nos perguntamos que atributos específicos e especiais teria a literatura para se mostrar tão importante para a sociedade desde sempre.

Existem muitas respostas possíveis, mas o fato de ter sido produzida por culturas diversas e em tempos tão diferentes nos permite refeltir que essa “arte“ cumpre funções muito significativas nas sociedades humanas. Quanto à função de um texto literário, esta se refere ao papel que a literatura desempenha nas sociedades; um papel que se configurou, em grande parte, a partir daquilo que o público leitor reconheceu como valor nessa arte ao longo dos anos. Foram os leitores, portanto, que atribuíram um papel tão relevante à produção literária e que a mantêm viva até os dias atuais.

No que se refere à literatura lobatiana, a temática da natureza sempre esteve presente em suas narrativas, uma vez que a representação da fauna e a da flora foram objetos dessa produção literária. Assim, Monteiro Lobato, na década de 1920, já reconhecia que a natureza precisava de cuidados, promovendo, no cenário da escrita para infância e juventude, a denúncia de depredação da natureza pela mão humana.

O universo criado pelo autor destaca um lugar bonito, calmo, a partir de uma notável valorização dos aspectos da vida rural, visto que naquele espaço tudo ocorre às mil maravilhas. Dentro desse universo, a residência de Dona Benta era uma casa antiga, com uma varanda grande que se podia ver desde o início da porteira. Nessa varanda, Dona Benta costumava sentar-se para fazer tricô e também contar suas belas histórias. A casa é destaque em todos os episódios, com os cômodos espaçosos e bem cuidados. Além dela, há um grande pomar onde se encontram as jabuticabeiras tão faladas e apreciadas por Narizinho, muitas árvores, um pedaço de mata virgem, chamado Capoeirão dos Tucanos, e um ribeirão. Nesse lugar onde fica a casa de Dona Benta, também moram personagens do nosso folclore, como o Saci e a Cuca, figuras que permeiam o imaginário nacional brasileiro. De acordo com Barbosa (1996),

O Sítio do Picapau Amarelo é um pequeno mundo completo em si mesmo, incerto num universo maior chamado Brasil e, mediatamente, no mundo: no Universo. A partir dele seus pequenos aventureiros, os netos de Dona Benta, Narizinho e Pedrinho, algumas vezes acompanhados da mesma Dona Benta, e quase sempre de Emília e do Visconde de Sabugosa, e outras vezes de Tia Nastácia, incursionam através do espaço e do tempo. Foram à Lua. Foram à Grécia do tempo de Héracles e de Péricles. Andaram      de cometa no céu. Brincaram nos anéis de Saturno. Viajaram muitas terras   e países. Sempre em aventuras, nas quais se misturam sempre o fantástico – o absurdo – e o real, o real de suas vidas de seres comuns e extraordinários ao mesmo tempo” (BARBOSA, 1996, p.89).

São dois mundos paralelos que anunciam como a imaginação torna-se imprescindível na infância, buscando mostrar que coisas maravilhosas podem se tornar naturais. Lobato apresenta um espaço ficcional que se assemelha ao real e onde tudo pode se tornar realidade. Em O Saci, por exemplo, as crianças aprendem a respeitar a mata do Capoeirão dos Tucanos, estabelecendo um diálogo com a natureza.

Em O Saci, no capítulo intitulado “A floresta”, há uma conversa entre Pedrinho e Saci na qual podemos perceber que existirá uma tentativa, por parte do Saci, de explicar a Pedrinho que a natureza precisa se defender. Essa defesa decorre da astúcia empírica projetada em todas as façanhas da natureza as quais não sabemos explicar ou as que não conhecemos:

Pois assim é – continuou o saci – a lei da floresta é a lei de quem pode mais: ou por ter mais força, ou por ser mais ágil, ou por ser mais astuto. A astúcia, principalmente, é uma grande coisa na floresta (LOBATO, 2016, p.75).

Em muitas outras passagens do livro, o saci está sempre criando situações para que o menino entenda a força da natureza e como é importante reconhecer nossa limitação diante dela: “Pedrinho, parece que não há animal mais estúpido e lerdo para aprender do que o homem, não acha?” (LOBATO, 2016, p. 77). Aqui, a luta implícita assumida pelo Saci, em relação ao homem e à natureza, oferece ao leitor a possibilidade de conhecer o poder da mata e refletir, de fato, sobre as ações do homem.

Em outro trecho do livro, Lobato apresenta a beleza da mata do Capoeirão do Tucanos:

Que beleza! Pedrinho nunca supôs que a floresta virgem fosse tão imponente. Aquelas árvores enormes, velhíssimas, barbadas de musgos e orquídeas; aquelas raízes de fora dando ideia de monstruosas sucuris; aqueles cipós torcidos como se fossem redes; aquela galharada, aquela folharada e sobretudo aquele ambiente de umidade e sombra, lhe causaram uma impressão que nunca mais se apagou (LOBATO, 2016, p. 49).

A exaltação da natureza potencializadora está exposta na poeticidade desse trecho. Uma beleza única, uma visão positiva da natureza brasileira, sem interferência das mãos humanas. Na ideia de Garrad (2006), “tropos mundo natural”, de um espaço fantástico intocado, preservado, privilégio da infância de Pedrinho e da turma do Sítio.

Na literatura, normalmente, esperamos encontrar, em alguma de suas manifestações, uma resposta que dê sentido a nossa existência e que nos ajude a entender um pouco de nós mesmos e de nossa vida. Andar pelos trilhos da literatura é estar em contato direto com a humanidade e poder, de alguma forma, mudar o nosso mundo, para melhor. Nessa perspectiva, o texto literário é um desses lugares fictícios onde o impossível acontece, e, mesmo sabendo que ele não existe, continuamos acreditando nele.

Espaço ficcional e ecocrítica

A criação do espaço dentro do texto literário é tão relevante quanto o próprio enredo; trata-se de um elemento transformador que sugere ao leitor sentir-se pertencido àquele lugar, pensado e planejado minuciosamente. O espaço ficcional é um elemento importante para o estudo da literatura e de outras formas de narrativa ficcional. Para estudá-lo, pesquisadores geralmente usam uma abordagem interdisciplinar, que combina elementos da teoria literária, da crítica cultural, da história, da geografia e de outras áreas.

A análise do espaço ficcional pode incluir a descrição das características geográficas, históricas e culturais do mundo fictício criado pelo autor, bem como a forma como esses elementos afetam a trama e os personagens da história. Os pesquisadores também podem examinar como a cultura e a sociedade em que o autor viveu influenciaram na criação do mundo fictício.

Outra área de estudo importante é a relação entre o espaço ficcional e a experiência do leitor ou espectador. O pesquisador pode investigar como o espaço ficcional é construído para criar um senso de imersão e realismo, e como isso afeta a forma como o público experimenta a história. Além disso, a análise do espaço ficcional pode incluir a forma como o autor usa elementos do espaço para transmitir ideias ou mensagens temáticas. Por exemplo, o autor pode usar o espaço para explorar questões como a identidade, a justiça social, a opressão, a liberdade ou a natureza humana.

Dessa forma, o estudo do espaço ficcional envolve uma análise interdisciplinar que examina a relação entre o mundo imaginário criado pelo autor e a experiência do público, bem como a forma como o espaço é usado para transmitir ideias temáticas. É o ambiente onde se desenrola a trama de uma história, seja ela um livro, filme, peça teatral, jogo ou qualquer outra forma de narrativa ficcional. Esse espaço pode ser completamente inventado, como em histórias de ficção científica ou fantasia, ou pode ser baseado em locais reais, mas com elementos fictícios adicionados para enriquecer a história. O objetivo, de maneira geral, é criar um ambiente coerente e verossímil para que o leitor ou espectador possa imergir na história e se conectar com os personagens e eventos que estão sendo apresentados.

Na literatura infantil, o espaço ficcional é um elemento especialmente importante, pois é nele que se desenvolvem as histórias que prendem a atenção das crianças. Esse espaço, muitas vezes, é imaginário e fantástico, com mundos encantados, criaturas mágicas e lugares maravilhosos, e pode ser inspirado em mitos, lendas e em contos de fadas. Além disso, o espaço ficcional na literatura infantil pode ser um reflexo do mundo real, apresentando locais familiares às crianças, como escolas, casas e parques. Esses espaços podem ajudar as crianças a se identificarem com a história e a se envolverem emocionalmente com os personagens.

Neste trecho, tirado de mais um capítulo da obra O Saci – que é personagem narrador –, observamos, na “mata do capoeirão dos Tucanos”,o encantamento das imagens criadas para que a criança também possa habitar esse mundo maravilhoso.

Pedrinho foi caminhando pela mata adentro até alcançar um ponto onde havia água límpida, que corria, cheia de barulhinhos mexeriqueiros, por entre velhas pedras verdoengas de limo. Em redor, erguiam-se os esbeltos samambaiuçus, esses fetos enormes que parecem palmeiras. E quanta avenca de folhagem mimosa, e quanto musgo no chão. Encantado com a beleza daquele sítio, o menino parou para descansar… e ali ficou num elevo que nunca sentira antes, pensando em mil coisas em que nunca pensara antes, seguindo o voo silencioso das grandes borboletas azuis e embalando-se com o chiar das cigarras. (LOBATO, 2016, p.50)

No excerto em destaque, há a sugestão de que a narrativa seja capaz de despertar no leitor a curiosidade da descoberta dessa mata, uma vez que o espaço vai ganhando terreno e suscitando imagens envolventes durante o episódio. O espaço, inicialmente desconhecido pelas personagens do Sítio, vai aos poucos sendo desbravado por elas – situação muito possível de ocorrer também ao leitor. O referido fragmento de texto está inserido em um momento da narrativa em que a mata se mostra inofensiva, apenas permitindo ser contemplada.

É importante destacar que o espaço ficcional na literatura infantil pode ser uma ferramenta poderosa para estimular a imaginação e a criatividade das crianças. Nesse aspecto, a leitura permite que crianças consigam refletir criticamente a partir do espaço que lhe é narrado, pois adentram em diferentes mundos e universos, podendo desenvolver habilidades importantes, como a capacidade de criar histórias e de imaginar soluções para problemas.

Em outro da narrativa, Pedrinho tenta justificar que o homem é o rei dos animais:

Só o homem tem inteligência. Só ele sabe construir casas de todo jeito, e máquinas e pontes, e aeroplanos, e tudo quanto há. Ah, o homem! Você sabe o que o homem é, Saci? Era preciso que tivesse lido os livros que li na casa da vovó… (LOBATO, 2016, p.77)

Aqui o narrador reflete o pensamento de muitos homens: o de ser absoluto que não teme e nem depende da natureza. Ignora as leis da floresta e derruba as matas para depois criar leis que as protegem. Assim, o discurso do contrassenso se dissimula no exato momento em que Pedrinho acredita ser mais inteligente que os outros seres da mata. Logo adiante, o Saci responde a Pedrinho:

O Saci deu uma gargalhada e falou: – Que gabolice! – exclamou- Casas? Qual é o bichinho que não constrói sua casa na perfeição? Veja as abelhas, ou as formigas, ou os casulos. Poderão existir habitações mais perfeitas? Todos aqui na mata moram. Cada um inventa o seu jeito de morar. Todos moram. Todos, portanto, têm suas casinhas, onde ficam muito mais bem abrigados do que homens lá na casa deles. O caramujo, então, até inventou o sistema de carregar a casa nas costas (LOBATO, 2016, p. 79).

Nesse contexto, a natureza se mostra superior, mesmo assim, Pedrinho interroga: “Casa, vá, lá, mas aeroplanos? Que bichinho daqui seria capaz de construir aviões como nós homens os construímos?” (LOBATO, 2016, p. 79). Dessa vez, o Saci dá outra risada:

– Olhe, Pedrinho, você está me saindo tão bobo que até me causa dó. Aviões! Pois não vê que o avião é a mais atrasada máquina de voar que existe? Aqui os bichinhos de asas estão de tal modo adiantados que nenhum precisa de monstrengos como o tal avião.  Todos possuem no corpo um aparelho de voar aperfeiçoadíssimo. Não vê que voam, bobo? Outro dia assisti a uma cena muito interessante. Eu estava perto duma lagoa cheia de patos, quando um avião passou voando por cima das nossas cabeças. Os patos entreolharam-se e riram-se. Você sabe, Pedrinho, que bicho estúpido é o pato. Pois mesmo assim, um deles disse com sabedoria: “Parece incrível que os homens se gabem de ter inventado uma coisa que nós já usamos há tantos milhares de anos…” (LOBATO, 2016, p. 81).

A mata, ainda, é um espaço em que os aparentemente mais frágeis conservam suas verdadeiras potencialidades, como a capacidade de voar com o próprio corpo ou com a criação de uma máquina, e a capacidade de se ter uma simbiose entre o corpo e o lar, este espaço de segurança, de equilíbrio.

Parece-nos, enfim, que as falas da narrativa O saci instauram outra forma de trazer as discussões ambientais sobre os lugares em que moramos e o que mora em nós. Assim, de forma singular, contribuem para a construção de olhares diferenciados a partir da criança e do adulto que ela será. Um pensamento ecológico por meio de uma educação literária.

REFERÊNCIAS

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 LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. São Paulo: Globo, 2007

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SANDRONI, Luciana. Minhas memórias de Lobato. São Paulo. Companhia das letrinhas, 1997.


[1] Doutor em Literatura e Cultura pela UFPB, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem, dramaturgo, encenador, vice-presidente do ICOL (Instituto Cultural Osman Lins), membro do Conselho da ASLE Brasil.

[2] Doutoranda em Ciências da Linguagem pela UNICAP, professora da Rede Pública Municipal, Formadora na área de literatura infantil.