MALÁRIA COMO UMA DOENÇA OCUPACIONAL: RELATO DE CASO CLÍNICO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202411131019


Kamila Vasconcelos Neves Troper
Co-autores: Pedro Miguel Mestre; Ana Sofia Pinela; Ana Luísa Lima;
Orientadora: Teresa Martinho Valente


RESUMO

O presente material traz a descrição de um caso clínico onde o diagnóstico principal, a malária, patologia infecto-parasitária, conhecida desde épocas remotas, cujo agente etiológico é transmitido por um vetor em regiões endêmicas será abordada no contexto de uma doença ocupacional, situação em que o trabalho é parte necessária ao adoecimento. O caso foi descrito a partir da experiência pessoal de uma profissional brasileira da Saúde Ocupacional expatriada em Angola no setor da construção civil onde atuou presencialmente como médica no período compreendido entre 2013 a 2016, realizando vigilância de saúde de cerca de 3.000 trabalhadores nacionais e expatriados.

PALAVRAS-CHAVES: Malária ocupacional + doença ocupacional + doença relacionada ao trabalho + saúde ocupacional + medicina do trabalho

Introdução

A malária é uma das doenças infecciosas mais antigas e persistentes do mundo, causada por parasitas do gênero Plasmodium, transmitidos por mosquitos do gênero Anopheles. Apesar dos avanços significativos na pesquisa e no tratamento, a malária continua a representar um grave problema de saúde pública em muitas regiões tropicais e subtropicais. A complexidade da doença e os desafios contínuos associados ao seu controle e eliminação demandam uma compreensão abrangente de sua epidemiologia, fisiopatologia, diagnóstico, tratamento, prevenção e controle1,2

A malária é considerada uma das doenças de maior impacto na morbidade e na mortalidade das populações das regiões tropicais e subtropicais do mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), foram registrados 247 milhões de casos de malária em 2021, distribuídos em 84 países endêmicos. Desses casos, 17% foram atribuídos ao Plasmodium falciparum e malária mista, enquanto os outros 83% foram causados por Plasmodium vivax e outras espécies.3,4

Os custos diretos e indiretos da malária para a África são da ordem de US$2 bilhões por ano. A doença mata, anualmente, duas vezes mais que a AIDS e muito mais que qualquer outra doença infecciosa.5   

A doença pode ser adquirida em contexto de trabalho e, nesse caso, pode se encontrar classificada como uma doença ocupacional, ou seja, aquela em que o trabalho atuou como um fator de risco para que o trabalhador tivesse contraído a doença.

Uma «doença relacionada com o trabalho» é uma doença causada ou agravada por fatores no local de trabalho. Esta definição abrange muitas doenças que têm causas mais complexas, envolvendo uma combinação de fatores de ordem profissional e de fatores não relacionados com o trabalho.6

No caso em questão, a localização geográfica onde a empresa se encontrava situada foi primordial para a exposição ao mosquito vetor responsável pela transmissão da doença, já que se tratava de uma área endêmica para a patologia.

Objetivos

Principal: Compreender a abordagem da malária no contexto de doença relacionada ao trabalho.

Secundários: Rever conceitos relativos à malária, às doenças relacionadas ao trabalho e aos programas de vigilância de saúde dos trabalhadores.

Material e Métodos

Estudo descritivo. Caso clínico onde se obtiveram os resultados dos parâmetros analíticos e infecciosos com posterior comparação das análises laboratoriais, antes e após o diagnóstico principal, no intervalo de 60 dias. Os resultados serão mostrados nas imagens posteriores.

Caracterização do Caso Clínico: Doente do gênero feminino, 33 anos no momento do diagnóstico, leucodérmica, proveniente do Brasil, natural de São Paulo, residente em Luanda, Angola, onde trabalhava como Médica do Trabalho na construção civil há cerca de 3 anos.

Antecedentes pessoais: Gesta I/Para I/Aborto 0. Alergias conhecidas: penicilina e morfina. Cirurgias prévias: Cesareana há 3 anos na altura; Colecistectomia por via laparoscópica há 6 meses. Ambos os procedimentos sem intercorrências. Antecedentes clínicos: Enxaqueca com aura (média de 1 episódio por mês) com aumento no número dos episódios e intensidade das crises nos últimos 12 meses. Fazia medicação apenas para alívio dos sintomas, sem manutenção de terapêutica crônica.

História de intolerância ao glúten e à lactose persistentes, com aumento da sintomatologia no último ano após terceiro episódio agudo de Febre Tifóide adquirida durante condição de expatriada trabalhando na região descrita também endêmica para a Salmonella typhi. Não havia recebido a vacinação para a prevenção dessa infecção bacteriana. Sem sintomatologia aguda na época. Encontrava-se assintomática, relativamente aos sintomas digestivos, após dieta com restrição total dos alimentos que contivessem glúten e/ou leite de vaca. Negava doenças crônicas anteriores além da enxaqueca ou medicações de uso crónico. Saudável.

Antecedentes familiares: sem relevância e interferência ao caso clínico.

Antecedentes profissionais: Médica, com 5(cinco) anos de experiência profissional na época, pós-graduada em Saúde Ocupacional e Saúde Mental. Experiências profissionais prévias nas áreas em que realizou especializações. Atuou ainda como médica de Saúde da Família. Negava acidentes de trabalho ou doenças profissionais prévias.

História da Doença Atual/Sinais e sintomas: Inicialmente apresentou queixa de cefaleia frontal, pulsátil,  leve a  moderada com duração de cerca de 5 dias e aumento nos últimos 2 dias sem sinais de enxaqueca até ao momento quando iniciou quadro de náusea. Posteriormente referiu leve desconforto abdominal, principalmente em região de hipocôndrio direito, com aumento do desconforto nos dias seguintes e presença de empachamento mesmo com refeições leves.  Referia ainda sensação de fadiga com piora progressiva. Apenas após um período de 7 dias, iniciou quadro febril.

Exames complementares de diagnóstico: Realizou-se pesquisa de plasmódio através de exame laboratorial da Gota Espessa, visualização das formas do parasita através de microscopia ótica após coloração pelo método Walker ou Giemsa. Registraram-se alterações em hemogramas antes e após diagnóstico. Exames complementares encontram-se ilustrados abaixo:

Fig 1. Exame realizado 10 dias antes do diagnóstico, Luanda, Maio de 2016.

Fig 2. Exame realizado no momento do período infeccioso, Luanda, Junho de 2016

Fig 3. Exame realizado 1 mês após período infeccioso, Luanda, Julho de  2016

Discussão

Devido ao antecedente pessoal de enxaqueca da paciente em questão, houve um atraso quanto à percepção dos sintomas. A cefaleia, inicialmente, e alguns dias após ao início a náusea e o desconforto digestivo foram interpretados como sintomatologia usual. Ressaltam-se ainda os sintomas relativos às intolerâncias alimentares(glúten e lactose) que surgiram após episódios recorrentes de Febre Tifóide causados pela S. typhi provenientes de água ou alimentos contaminados.

O primeiro exame da gota espessa realizado apresentou resultado negativo. Por persistência e aumento dos sintomas, procedeu-se à repetição da análise. Resultado positivo após três dias. A partir desse momento, procedeu-se ao tratamento medicamentoso convencional(Arteméter+Lumefantrina).

A imagem referente ao segundo hemograma, já no período do quadro agudo da malária, apresentou os resultados microbiológicos para as imunoglobulinas da espécie de salmonela. Visto que a doente não possuía vacinação para essa patologia, através do resultado positivo da Imunoglobulina G(IgG) confirma-se o diagnóstico secundário anterior.

Quanto às alterações laboratoriais presentes no hemograma e exame da gota espessa, ambas mostraram-se evidentes na segunda imagem(Gota Espessa positiva para a pesquisa do plasmódio, leucopenia marcada, diminuição de plaquetas). Recuperação dos valores hematológicos no mês seguinte após resolução do quadro agudo.

Conclusão

O estudo do caso clínico corrobora a classificação da malária, uma doença infeciosa, como uma Doença Relacionada ao Trabalho do grupo II da classificação de Shilling- Circusntâncias ocupacionais/Fatores de risco. A trabalhadora que exerceu atividade ocupacional em áreas endémicas, contraiu a doença por exposição profissional ao agente etiológico da malária, sendo na região em questão, o Plasmodium falciparum o principal agente, responsável por formas graves da doença.

A infeção nos trabalhadores em regiões endêmicas está relacionada, antes de tudo, com os problemas sociais ainda não resolvidos e ao grau de exposição relacionada ao tipo de atividade desenvolvida. Destaca-se com este caso, a importância dos serviços de Medicina do Trabalho na prevenção e diagnóstico de doença em trabalhadores migrantes para países endêmicos de malária, por exposição a este fator de risco biológico.

Medidas preventivas no intuito de minimizar a exposição dos profissionais ao vetor responsável pela transmissão da doença precisam ser desenvolvidas através das áreas responsáveis pelos serviços de saúde e segurança do trabalho. Métodos de barreira, entre eles, a utilização de substâncias repelentes, vestimenta e calçados adequados, redes mosquiteiras nos domicílios podem evitar a picada através do inseto vetor do plasmódio. A profilaxia com fármacos que evitam o desenvolvimento da doença, apesar de já instituída na época, não estava indicada nesse caso, já que a profissional encontrava-se a residir na região por tempo indeterminado. Medidas educativas voltadas à conscientização da população de trabalhadores do local em que se encontrava ainda eram os métodos mais eficazes à prevenção da doença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1) Greenwood, B., Zongo, I., Dicko, A., Chandramohan, D., Snow, R. W., & Ockenhouse, C. (2022). Resurgent and delayed malaria. Malaria Journal21(1), 77.

2) Valadares, G. M. M., Lima, I. L., dos Santos Soares, J. P., Alves, J. P., & Vianney, T. F. R. (2024). Malária-uma revisão de literatura. Brazilian Journal of Health Review7(4), e72103-e72103.

3) World Health Organization. (2023). World malaria report 2023. World Health Organization.

4) de Sousa, S. M., de Oliveira, J. V. S., & Souza, N. R. (2024). MALÁRIA: IMUNOPATOGÊNESE E DESAFIOS DE CONTROLE EM ÁREAS ENDÊMICAS-REVISÃO DE LITERATURA. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, 10(10), 4247-4255.

5) Camargo, E. P. (2003). Malária, maleita, paludismo. Ciência e cultura55(1), 26-29.

6) Doenças relacionadas com o trabalho | Safety and health at work EU-OSHA acesso ao site em 08/11/2024.