INTERSEXUALIDADE EM CADELA DA RAÇA PITBULL TERRIER – RELATO DE CASO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202411131400


Veronica Sampaio Delorenzo1; Jessyca Liberato Dias2; Jacqueline Alves Ferreira3; Fernanda Borges Barbosa4; Karina D’Elia Albuquerque4


RESUMO

Intersexualidade é um dos distúrbios do desenvolvimento sexual que acometem animais de várias espécies. As alterações ocorrem durante a diferenciação sexual e o desenvolvimento embrionário do aparelho reprodutor. Hermafroditismo é uma anomalia em que o animal apresenta características sexuais ambíguas. Trata-se de uma alteração incomum em cães, podendo apresentar graus variados de ambiguidade dos órgãos genitais internos e externos. O presente trabalho relata um caso de uma cadela da raça Pit Bull que apresentou características de hermafroditismo durante o período de maturidade sexual, sendo confirmado através de avaliação histopatológica que se tratava de uma quadro de pseudo-hermafroditismo masculino e descreve o procedimento cirúrgico, caracterizado como tratamento de escolha.

Palavras-chave: Hermafroditismo. Pseudo-hermafroditismo. Distúrbio do desenvolvimento sexual

ABSTRACT

Intersexuality is one of the disorders of sexual development that affect animals of various species. The changes occur during sexual differentiation and embryonic development of the reproductive system. Hermaphroditism is an anomaly in which the animal presents ambiguous sexual characteristics. This is an uncommon alteration in dogs, and may present varying degrees of ambiguity of the internal and external genitalia. This paper reports a case of a Pit Bull dog that presented characteristics of hermaphroditism during the period of sexual maturity, which was confirmed through histopathological evaluation as a case of male pseudohermaphroditism and describes the surgical procedure, characterized as the treatment of choice.

Palavras-chave: Hermaphroditism. Pseudohermaphroditism. Sexual development disorder.

INTRODUÇÃO

A ocorrência de anormalidades na diferenciação sexual é um fenômeno descrito em diversas espécies. Durante o desenvolvimento embrionário e fetal, a diferenciação sexual  passa por três estágios principais: cromossômico, gonadal e fenotípico. Aberrações podem ocorrer em qualquer um desses três estágios, resultando em intersexualidade, caracterizada pela presença de características sexuais de ambos os sexos em um único indivíduo intersexualidade (Ticianelli, 2011).

O sexo cromossômico é definido no momento da fertilização, dependendo de o oócito X ser fertilizado por um espermatozoide contendo um cromossomo X ou Y. Em seguida, o desenvolvimento do sexo gonadal ocorre, mediado pelo gene SRY no cromossomo Y, que inicia a formação das gônadas masculinas Ticianelli et al., 2011). Vários autores relatam a ocorrência de machos com cariótipo XX (Ticianelli et al., 2011). A causa genética dessa desordem está na ausência do cromossomo SRY, que tem papel fundamental na ativação do gene SOX, responsável pela determinação do sexo (Chaboissier et al, 2004). Os hermafroditas verdadeiros possuem cariótipo variável, sendo a maioria de cariótipo feminino normal. Aqueles que possuem cariótipo XX/XY são provavelmente quimeras, com combinações genéticas heterogêneas, que se originam de dupla fertilização ou ocorre anastomose vascular entre embriões machos e fêmeas pós fusão de membranas fetais (Costa et al., 2017).

A intersexualidade, no entanto, é considerada uma alteração no desenvolvimento orgânico do animal, que se contrapõe às características determinadas pelo sexo genético (cromossômico), levando o mesmo indivíduo a apresentar características marcantes dos dois sexos (Ticianelli et al., 2011).

O animal com intersexualidade gonadal não possui anormalidades cromossômicas; porém, apresenta órgãos genitais masculinos e femininos, tornando-se hermafrodita verdadeiro, uma condição rara em cães (Nunes et al., 2022).

Em medicina veterinária, é possível observar a intersexualidade, sendo o pseudo-hermafroditismo a forma mais comum, especialmente em cães (Abdo et al., 2008; Detoni et al., 2024; Gusso & Rodrigues, 2020, Sodré et al., 2023; Pompeu et al., 2011, Venturini et al., 2023). O hermafroditismo verdadeiro, mais raro em cães, é caracterizado pela presença simultânea de tecidos ovariano e testicular. Os hermafroditas verdadeiros são indivíduos com tecido testicular e ovariano ou combinados em uma única gônada (ovotestis) ou existentes em gônadas separadas (Costa et al., 2017) Em contrapartida, essa condição é mais frequente em suínos e caprinos (Nunes et al., 2022).

Romagnoli e Schlafer (2006) relatam a cirurgia de ovariohisterectomia como o tratamento de escolha o pseudo-hermafroditismo feminino, e correção de anormalidades presentes na genitália externa.

Para estabelecer um diagnóstico preciso em cães, e identificar o tipo de intersexualidade deve-se realizar exame clínico abrangente e detalhado, além do exame histopatológico das gônadas e citogenético para determinação da constituição gonadal e possíveis aneuploidias ou quimerismos (Moura, 2022). Na maior parte do mundo, o hermafroditismo verdadeiro é uma causa rara de ambiguidade genital, variando de 2% a 10% dos casos de intersexo, estando associado a distúrbios de determinação gonadal de etiopatogenia ainda pouco compreendida  (Abdo et al., 2008).

Os hermafroditas verdadeiros com ovotestis unilaterais apresentam variações anatômicas que incluem têm ausência de tuba uterina e cornos uterinos no lado adjacente do testículo, ocorrendo diversos graus de desenvolvimento do epidídimo, ducto deferente e crescimento do clitóris que é causada pela síntese de testosterona. Os hermafroditas verdadeiros com ovotestis bilaterais eventualmente podem apresentar útero morfologicamente normal ou com anormalidades como a hipoplasia uterina, gerada quando as ovotestis não secretam a quantidade necessária de algumas substâncias, inibindo o desenvolvimento dos tubos paramesonéfricos (Garcia & Fernández, 2001).

Já nos casos de pseudo-hermafroditas existe apenas um tipo de tecido gonadal (ovariano ou testicular) possuindo genitália e características secundárias do sexo oposto e são denominados como pseudo-hermafroditas masculinos ou femininos de acordo com a gônada presente (Correa, 2023).

O objetivo deste trabalho é relatar um caso de hermafroditismo em um cã da raça pitbull terrier de sete meses de idade.

RELATO DE CASO

Uma cadela da raça Pit Bull Terrier, de 7 meses de idade, foi atendida em uma clínica veterinária em Guarulhos, São Paulo, para avaliação pré-operatória de uma ovariossalpingohisterectomia eletiva. No exame físico, observou-se uma anomalia na genitália externa, com a presença de uma estrutura semelhante a um pênis projetada para fora da vulva (Fig. 1), incluindo um osso peniano de aproximadamente 3,5 cm, sem uretra.

Fig 1 – A. Vulva apresentando estrutura compatível com pênis no lugar do clitóris. B. Osso peniano com ausência de uretra.

Fonte: a autora.

A paciente era acompanhada desde a primeira vacinação, mas o desenvolvimento hipertrófico do clitóris só foi notado na maturidade sexual, causando desconforto ao sentar e lambedura excessiva na região. A radiografia simples confirmou a presença do osso peniano (Fig. 2), e uma ultrassonografia abdominal foi recomendada para avaliar os órgãos sexuais internos, mas não pôde ser realizada.

Fig 2 – A. radiografia simples, projeção LL – estrutura alongada de radiopacidade mineral sobrepondo a vulva. B. Radiografia simples, projeção VD – estrutura óssea em região genital sugerindo osso peniano

Fonte: autora.

O animal foi submetido a cirurgia e durante o procedimento foi possível constatar que embora a paciente apresentasse aparelho reprodutor interno feminino (útero e cornos uterinos), nas localizações dos ovários e trompas estavam presentes estruturas compatíveis com epidídimo e testículos (Fig 3). O material foi enviado para análise histopatológica, e a vulvoplastia foi realizada com a excisão completa do pênis rudimentar, utilizando-se poliglactina 3,0 para sutura absorvível, visando o bem-estar da cadela. A paciente também apresentava protusão da membrana nictitante do olho direito que também foi corrigida durante o procedimento cirúrgico.

Fig 3 – A. Órgãos retirados durante a panhisteriectomia (macroscopia). B. Pênis retirado durante a plastia da genitália externa (penectomia)

Fonte: a autora.

Na microscopia, a análise revelou tecido testicular nos locais dos “ovários”, com túbulos seminíferos delimitados por uma camada de células de Sertoli e poucas células de Leydig (Fig. 4), sem espermatogônias ou espermatozoides, indicando possível infertilidade. A análise citogenética e a dosagem hormonal não foram autorizadas para o diagnóstico adicional.

Fig 4 – A. Epidídimo. B e C. Túbulos Seminíferos – tecido conjuntivo com poucas células de Leydig, ausência de espermatogônias.

Fonte: a autora.

De acordo com quadro podemos identificar o animal com intersexualidade compatível com pseudo-hermafroditismo masculino, pois as gônadas apresentaram apenas tecido testicular, mesmo com presença de útero em topografia e tamanho normais. O animal se recuperou totalmente do procedimento, não tendo intercorrências trans e pós operatórias.

DISCUSSÃO

Casos de intersexualidade com hermafroditismo verdadeiro são relativamente raros na literatura veterinária, sendo mais frequentes os registros de pseudo-hermafroditismo, onde a genitália externa e as gônadas exibem ambiguidade, mas o tecido gonadal é exclusivamente feminino ou masculino (Costa et al., 2017). Os métodos de diagnóstico para estas condições incluem avaliação física, ultrassonografia abdominal, radiografia, cariotipagem ou análise citogenética, dosagem hormonal e análise histopatológica (Ticianelli et al., 2011).

A radiografia é um exame de escolha para identificar a presença de osso peniano, demonstrando a necessidade de correção cirúrgica da anomalia em casos onde há desconforto físico significativo, como dificuldade para sentar e incômodo devido à lambedura excessiva na região genital. Embora a ultrassonografia não tenha sido realizada neste caso, ela seria um exame complementar útil para o diagnóstico pré-cirúrgico (Costa et al., 2017).

A castração tem importância tanto diagnóstica quanto terapêutica nesses casos. Além de permitir a coleta das gônadas para análise histopatológica confirmatória, também previne problemas reprodutivos futuros. A análise histopatológica se mostrou essencial neste caso, confirmando a presença de apenas tecido testicular em posição dos ovários (Costa, et al., 2017). Apesar disso, a análise citogenética não foi realizada, o que poderia fornecer informações adicionais sobre a constituição genética do animal (Ticianelli et al., 2011).

A vulvoplastia, realizada para remover o pênis rudimentar, foi fundamental para minimizar o risco de infecções na região e melhorar o conforto da cadela ao sentar. Essa intervenção contribui para o bem-estar animal, aliviando o desconforto causado pela estrutura óssea anômala (GONÇALVES, 2023).

CONCLUSÃO

Casos de intersexualidade e outras desordens do desenvolvimento sexual são relativamente raros na prática veterinária, especialmente em comparação com outras anomalias reprodutivas. Relatar e documentar esses casos contribui para a literatura veterinária, oferecendo subsídios para um melhor entendimento e manejo de anomalias sexuais em animais.

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1Discentes do curso de Medicina Veterinária da Universidade Guarulhos, Guarulhos – SP;

2Discentes do curso de Medicina Veterinária do Centro Universitário FAM, São Paulo – SP;

3Médica veterinária no Centro Veterinário Vet’Saúde, Guarulhos – SP;

4Docente do curso de Medicina Veterinária da Universidade Guarulhos, Guarulhos – SP.