CARDIOTOXICIDADE INDUZIDA POR ANTRACICLINAS: REVISÃO DE LITERATURA

Cardiotoxicity Induced by Anthracyclines: Literature Review

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202410311458


Daniel Luis Ceron Pereira
Guilherme de Faria Alves
Maiara Letícia Geiss


Resumo:

As antraciclinas são quimioterápicos amplamente utilizados na hemato-oncologia desde a década de 1960 devido à sua eficácia no combate a diversas neoplasias. Entretanto, seu uso é comumente associado à cardiotoxicidade, manifestando-se em arritmias, insuficiência cardíaca e isquemia miocárdica, de forma subclínica ou com uma variada sintomatologia. Entre os subtipos mais frequentes estão taquicardia ventricular não-sustentada, fibrilação atrial e extrassístoles ventriculares, com maior prevalência em pacientes tratados com doxorrubicina. Dados de meta-análises indicam um risco relativo de 1,58 (IC 95%, p < 0,05) para arritmias induzidas por antraciclinas comparado com outros quimioterápicos. Os principais mecanismos celulares responsáveis incluem produção de espécies reativas de oxigênio (EROS), sobrecarga de cálcio nos cardiomiócitos e morte celular programada. O desenvolvimento de biomarcadores, como microRNAs específicos (miR-34a-5p, miR-423-5p), surge como ferramenta promissora para identificar pacientes em maior risco de eventos cardíacos. Estratégias de manejo incluem ajustes de dose cumulativa e controle de comorbidades, além do uso de dexrazoxano, um quelante de ferro com potencial cardioprotetor, porém há controvérsias em relação à incorporação do dexrazoxano no SUS, devido à limitação de evidências acerca de sua eficácia.

Palavras Chave: Antraciclinas. Cardiotoxicidade. Arritmias.

Abstract:

Anthracyclines are chemotherapeutic agents widely used in hemato-oncology since the 1960s due to their effectiveness against various neoplasms. However, their use is commonly associated with cardiotoxicity, which manifests as arrhythmias, heart failure, and myocardial ischemia, either subclinically or with diverse symptoms. Among the most frequent subtypes are non-sustained ventricular tachycardia, atrial fibrillation, and ventricular extrasystoles, with a higher prevalence in patients treated with doxorubicin. Meta-analysis data indicate a relative risk of 1.58 (95% CI, p < 0.05) for anthracycline-induced arrhythmias compared to other chemotherapeutics. The main cellular mechanisms responsible include reactive oxygen species (ROS) production, calcium overload in cardiomyocytes, and programmed cell death. The development of biomarkers, such as specific microRNAs (miR-34a-5p, miR-423-5p), emerges as a promising tool to identify patients at higher risk of cardiac events. Management strategies include cumulative dose adjustments and control of comorbidities, as well as the use of dexrazoxane, an iron-chelating agent with cardioprotective potential. However, there are controversies regarding the inclusion of dexrazoxane in the Brazilian Unified Health System (SUS) due to limited evidence regarding its efficacy.

Keywords: Anthracyclines. Cardiotoxicity. Arrythmias.

Introdução:

Antraciclinas, como doxorrubicina, epirrubicina e idarrubicina desempenham um papel importante no tratamento de diversas neoplasias, mas a cardiotoxicidade induzida por estes agentes continua sendo uma preocupação significativa para pacientes e profissionais de saúde. O esquema ABVD (doxorrubicina, bleomicina, vinblastina, e dacarbazina) é o regime de quimioterapia inicial padrão para pacientes com Linfoma de Hodgkin clássico; seus agentes são amplamente disponíveis e sua eficácia foi demonstrada em ensaios prospectivos e na prática clínica. Esta linha de tratamento foi associada a reações de toxicidade agudas e a longo prazo, com as agudas sendo mais comuns. 

Esta revisão de literatura tem como objetivo descrever os possíveis mecanismos pelos quais as antraciclinas podem causar cardiotoxicidade, suas manifestações clínicas, subtipos mais comuns e identificar métodos e parâmetros que auxiliem no reconhecimento de pacientes que possuem  maior risco de sofrer estes efeitos adversos.

Desenvolvimento:

Antraciclinas são quimioterápicos inibidores da enzima de manutenção do DNA topoisomerase de uso significativo na hemato-oncologia desde o início da década de 1960 para tratamento de diversas neoplasias. Apesar de ser uma terapia de efetividade estabelecida no tratamento do câncer, as antraciclinas são particularmente conhecidas por seu efeito cardiotóxico, que se manifesta principalmente como arritmias, insuficiência cardíaca, isquemia miocárdica e de maneira subclínica.

Os subtipos de maior incidência relatada na literatura são taquicardia ventricular não-sustentada, fibrilação atrial,  e extrassístoles ventriculares, esta últimas sendo a mais prevalentes em pacientes que fizeram uso de doxorrubicina, com uma incidência observada em 31%.

Uma metanálise com 26,891 pacientes observou que o uso de antraciclinas apresenta um risco relativo de 1,58 (IC 95%, p < 0,05) para o desenvolvimento de arritmias durante o tratamento. Antraciclinas apresentaram, também, uma associação estatísticamente significante com o achado eletrocardiográfico de taquicardia sinusal, alterações de repolarização ventricular em onda T, desnivelamentos de segmento ST e aberrantes de condução, incluindo bloqueio atrioventricular. A mesma metanálise não encontrou diferença estatisticamente significativa de efeitos adversos entre doxorrubicina e outras antraciclinas. Outro estudo, este prospectivo, reuniu 29 pacientes diagnosticados com diferentes tipos de neoplasias, a dose acumulada média de doxorrubicina foi de 278±112.5 mg/m2. Neste grupo, arritmias foram identificadas em 19 pacientes; 41,4% com extrassístoles supraventriculares, 10,3% fibrilação atrial paroxística, 13,8% taquicardia sinusal e 3,4% (um indivíduo) desenvolveu bradicardia sinusal. Um relato de caso, ademais, reportou uma paciente de 48 anos, portadora de câncer de mama com 90 mg/m2 de dose acumulada de doxorrubicina evoluindo com taquicardia ventricular que progrediu para parada cardiorrespiratória durante a infusão do esquema de quimioterapia.

Estes dados mostram um cenário alternativo aos resultados de um estudo de coorte realizado na Dinamarca, que evidenciou a fibrilação atrial como a arritmia mais prevalente em pacientes com câncer, sem distinção entre tipo de neoplasia ou tratamento proposto, com uma incidência de 17,4 eventos a cada 1000 pacientes. A verdadeira incidência de arritmias associadas à antraciclinas e à terapia oncológica de forma geral provavelmente é subestimada, uma vez que não é rotina consolidada a monitorização cardiológica durante administração do tratamento e os eventos são, na maioria das vezes, oligo ou assintomáticas.

Alguns grupos de pacientes foram associados, de acordo com suas comorbidades e características, à um maior risco de desenvolver arritmias induzidas por antraciclinas. Fatores de risco propostos para estes eventos foram idade avançada, doença cardiovascular pré-existente (doença arterial coronariana, insuficiência cardíaca), arritmias prévias, obesidade. Uma alta dose acumulada de antraciclinas foi considerada um fator de risco isolado, e uma metanálise definiu como estatisticamente significativa uma faixa de 200-300 mg/m2 em pacientes que receberam doxorrubicina. Ademais, pacientes em uso simultâneo mais de uma estratégia terapêutica potencialmente causadora de arritmias, como o uso concomitante de quimioterapia e radioterapia com alvo em região torácica, tiveram uma maior incidência de arritmias durante o tratamento.

Os mecanismos celulares aos quais estes eventos são atribuídos foram alvos de estudos recentes. Doxorrubicina, epirrubicina e idarrubicina induzem arritmias via produção de espécies reativas de oxigênio (EROS) formados na degradação da droga no organismo, com dano inflamatório e citotóxico direto aos tecidos de condução cardíacos, infra regulação de proteína quinase II alfa dependente de Ca²⁺/calmodulina (CaMKII) que leva à uma sobrecarga de cálcio no citosol de cardiomiócitos. As EROS também promovem uma modulação do sistema imune inato, pois ativam inflamassomas NLRP3 e estes induzem inflamação dos tecidos de condução cardíacos. A exposição prolongada a estes mecanismos foram associadas ao desenvolvimento de fibrose no tecido miocárdico, com manutenção e desenvolvimento de novas arritmias.

Ademais, o tecido cardíaco é particularmente suscetível à dano induzido por EROS devido a baixas concentrações de catalase, condição que “força” o peróxido de hidrogênio (H₂O₂.) a ser metabolizado via reação de Fenton, que durante seu processo produz mais radicais livres de hidroxila, promovendo o tecido cardíaco à uma toxicidade sustentada ao longo do tratamento com antraciclinas.

Um estudo recente demonstrou o papel da ferroptose na cardiotoxicidade induzida por doxorrubicina. A ferroptose é uma forma de morte celular regulada, caracterizada pela liberação de ferro a partir da degradação do heme, acumulando-se até níveis insustentáveis e fatais para a célula. Os autores relataram que a doxorrubicina aumenta a acumulação do gene do fator nuclear eritroide 2 (NRF2), que facilita a liberação de ferro livre, levando a célula a iniciar mitofagia seletiva para remover as organelas acometidas, resultando em ferroptose. As enzimas heme oxigenase, HMOX1 e HMOX2, desempenham um papel na catalisação da hidroxilação do heme em monóxido de carbono, ferro ferroso e biliverdina. Além disso, eles descobriram que a inibição da ferroptose reduziu significativamente a toxicidade celular em modelos in vitro.

Outro processo que contribui para a cardiotoxicidade induzida por antraciclinas é a degradação da topoisomerase, uma enzima crucial para a síntese e replicação do DNA em todos os tipos celulares. Isso ajuda a interromper o crescimento das células cancerígenas em proliferação, mas também leva ao dano e apoptose dos cardiomiócitos.

Atualmente, há tentativas de desenvolver formas mais precisas de determinar quais pacientes estão em maior risco de desenvolver cardiotoxicidade induzida por antraciclinas. Mecanismos epigenéticos de alterações no DNA induzidas pelo ambiente celular exposto à doxorrubicina podem estar relacionados a maiores eventos cardíacos. Estes mecanismos possuem biomarcadores dosáveis, denominados  microRNAs (miRNAs).

Os miRNAs são moléculas de RNA não-codificantes que regulam a expressão gênica em células eucarióticas. Níveis circulantes de miRNAs são utilizados como biomarcadores em de doenças cardiovasculares devido sua estabilidade sérica e facilidade de coleta em métodos não-invasivos.

Em um estudo transversal, pacientes em tratamento com antraciclina para câncer de mama tiveram amostra sérica com suprarregulaçao de miR-34a-5p, miR-199a-3p, miR-423-5p, e miR-126-3p após tratamento com epirrubicina. Outro estudo demonstrou infrarregulação de miR-133b, miR-146a, e miR-423-5p após tratamento com doxorrubicina. Um terceiro estudo, de coorte, demonstrou miR-1 suprarregulada em pacientes com câncer de mama recebendo doxorrubicina, com uma correlação com eventos cardíacos (arritmias, fração de ejeção ventricular reduzida) superior à troponina 1. (Área sob curva= 0.851 e 0.544, p= 0.0016).

No manejo destes eventos, as principais estratégias encontradas na literatura foram redução da dose, redução da frequência da infusão, manejo de comorbidades do paciente e, ocasionalmente, o uso de medicações cardioprotetoras. Atualmente, dexrazoxano (Zinecard®) é a única droga aprovada pela ANVISA e US Food and Drug Administration (FDA) para manejo de cardiotoxicidade induzida por doxorrubicina e epirrubicina. Dexrazoxane é um quelante de ferro que previne a formação de complexos de ferro e radicais livres, protegendo o tecido de toxicidade e inflamação. Em um relatório de 2016, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – CONITEC se posicionou de maneira contrária à utilização de dexrazoxano devido a escassez de estudos científicos que comprovem sua eficácia e eficiência.

Conclusão:

Apesar de sua eficácia em tratamentos contra neoplasias, as antraciclinas são bastante associadas à efeitos cardiotóxicos, particularmente arritmias, devido à produção de radicais livres, manipulação do metabolismo do ferro e imunomodulação no tecido cardíaco. Pacientes recebendo antraciclinas devem ter sua dose acumulada registrada e mantida no menor nível compatível com o adequado tratamento de sua doença, e possivelmente se beneficiam de monitorização cardíaca durante a infusão, particularmente indivíduos com outros fatores de risco para efeitos adversos. Novas técnicas com biomarcadores estão sendo desenvolvidas, levando à abordagens multimodais para uma mais acurada estratificação de risco. 

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