REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202410270901
Ana Carolina Buta Pereira;
Ana Couto Lima Melo;
Juliana Faleiro Pires;
Samuel Sotero Lourenço;
Fernando Velasco Lino.
RESUMO
A pseudo-obstrução intestinal crônica pediátrica (POICP) é uma doença rara e debilitante, caracterizada por uma disfunção da motilidade gastrointestinal do intestino delgado ou grosso, com sintomas sugestivos de obstrução parcial ou total, especialmente constipação intestinal, porém não são encontradas quaisquer lesões restritivas ou oclusivas do lúmen. O quadro clínico favorece o diagnóstico tardio, sintomas crônicos, mau estado nutricional, má qualidade de vida, com a possibilidade de realizar procedimentos cirúrgicos. A investigação é baseada na exclusão de causas mecânicas de obstrução, identificação de doenças subjacentes e presença de dilatação intestinal em exames de imagem. A compreensão das características fisiopatológicas é imprescindível para determinar a terapia adequada e um melhor prognóstico. Assim, a conscientização sobre POICP propicia a identificação das lacunas no conhecimento atual sobre a doença e direciona futuras pesquisas para o desenvolvimento de novas abordagens para o melhor prognóstico em crianças.
Palavras-chave: Doença Rara, Pediatria, Pseudo-obstrução Intestinal Crônica, Relato de Caso.
INTRODUÇÃO
Pseudo-obstrução Intestinal Crônica (POIC) refere-se a um distúrbio clínico caracterizado por uma insuficiência motora grave do intestino, abrangendo um grupo heterogêneo de condições capazes de afetar diversas porções do trato gastrointestinal, especialmente o intestino delgado e grosso. Pode ser entendida, clínica e radiologicamente, como um conjunto de sinais que imitam uma obstrução mecânica, com evidências de motilidade intestinal anormal e presença de dilatação em exames de imagem (VASANT, 2018; SANTOS, 2020). Contudo, ainda não existe uma definição globalmente aceita (THARPA, 2018).
É uma doença rara com escassas informações epidemiológicas em adultos e crianças (SANTOS, 2020). Há pouca compreensão da etiopatogenia no período da infância e, assim, os critérios diagnósticos atuais são imprecisos e a verdadeira incidência de crianças portadoras da doença permanece desconhecida. Um dos poucos estudos sobre o tema, estimou que aproximadamente 1 a cada 40 mil nascidos vivos nos Estados Unidos têm POIC (THARPA, 2018). Cerca de 80% dos pacientes apresentam manifestações clínicas ainda no primeiro ano de idade, enquanto os demais, possuem um início esporádico nas duas primeiras décadas de vida (ARAÚJO, 2018).
Como resultado, muitas vezes há atrasos no diagnóstico definitivo e inconsistências significativas na compreensão, no momento e na natureza das intervenções. A POIC pode ser classificada como primária – que pode se manifestar como neuropatia ou miopatia visceral – e secundária ou idiopática (SANTOS, 2020). Os tratamentos, para muitas crianças, são ineficazes ou escalonados de forma inadequada, podendo até contribuir para a alta morbidade dos casos (THARPA, 2018). Assim, a doença tem um impacto importante na qualidade de vida da criança e altas taxas de morbimortalidade. Apesar dos avanços recentes, as abordagens ainda apresentam desafios importantes quanto ao entendimento de sua etiopatogenia (SANTOS, 2020).
O objetivo do estudo é relatar um caso de POICP, abordando as dificuldades clínicas para o diagnóstico e as propostas terapêuticas relacionadas. Busca-se, também, levantar debates sobre a raridade e heterogeneidade da doença, sua dificuldade diagnóstica, além de ressaltar o impacto na qualidade de vida dos pacientes e incentivar novos estudos para suprir as lacunas existentes na etiopatogenia e no tratamento.
RELATO DE CASO
Realizou-se a submissão do relato de caso ao Comitê de Ética em Pesquisa em 27 de agosto de 2024 com aprovação sob o CAE 81615624.5.0000.5553 em 17 de setembro de 2024. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado e reconhecido pelo familiar responsável – por se tratar de um paciente pediátrico – sendo-lhe fornecida uma via do documento. Utilizou-se do CARE checklist para a redação deste relato.
Paciente do sexo masculino, 10 anos de idade, natural de Brasília – Distrito Federal (DF). Iniciou acompanhamento em ambulatório pediátrico aos 5 (cinco) meses de idade devido a queixa de constipação associada à quadro de síndrome consumptiva crônica (z-score peso variando entre -2 e -3). Nesse contexto, recebeu o diagnóstico de alergia à proteína do leite de vaca (APLV) com o ajuste da dieta, cursando com a remissão do quadro.
Apesar disso, aos 3 (três) anos de idade irrompeu com uma constipação grave, necessitando fazer uso contínuo de laxante osmótico, entretanto, a resposta terapêutica foi insatisfatória. Apresentou diversos outros quadros semelhantes, chegando a ficar mais de 15 dias sem evacuar, necessitando de múltiplas internações em pronto socorro para realização de lavagem retal. Por conseguinte, em razão da magreza acentuada e baixa estatura, a criança iniciou acompanhamento com profissionais gastroenterologista e endocrinologista pediátricos, sem, contudo, ter um diagnóstico definitivo.
Em dezembro de 2023, foi internado no pronto socorro de um hospital público no DF com queixa de constipação há 3 dias, associada a dor abdominal intensa, vômitos fecalóides e distensão abdominal. Ao exame físico, apresentava-se hipocorado e instável hemodinamicamente. A suspeita inicial foi de abdome agudo obstrutivo, sendo realizada uma tomografia computadorizada (TC) de abdome sem contraste, que evidenciou distensão de 10 cm das alças colônicas e presença abundante de fezes.
No dia seguinte, o paciente foi transferido para unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP) devido à suspeita de megacólon tóxico (fecaloma). Houve o agravamento do quadro, evoluindo para choque séptico de foco abdominal, necessitando de intubação orotraqueal (IOT) e administração de drogas vasoativas por 4 (quatro) dias.
Após a alta dos cuidados intensivos, foi realizada uma colostomia eletiva para desobstrução intestinal. Na ocasião, foi realizada biópsia do retossigmóide e do reto distal, a qual demonstrou área de hipertrofia e edema da camada muscular, com plexo nervoso preservado, sendo sugestiva de POIC, na forma de miopatia visceral. Dessa forma, foi descartada a hipótese de megacólon congênito – que até o momento era a principal hipótese diagnóstica.
Com o diagnóstico de POICP, o paciente foi encaminhado para um hospital terciário do DF para investigação mais detalhada do quadro pela gastroenterologia pediátrica e cirurgia pediátrica. À realização de outros exames laboratoriais, foram observadas deficiência de vitamina D, dislipidemia mista e anemia megaloblástica, descartando outras condições sistêmicas. Já aos exames complementares de Entero-TC e Manometria, não evidenciaram alterações sugestivas de pseudo-obstrução.
Assim sendo, para garantir aporte nutricional adequado, foi proposta nutrição enteral, com obtenção de ganho ponderal já no primeiro mês. Além disso, foram indicados também, o uso de agentes procinéticos e laxantes osmóticos e sessões de reabilitação para fortalecimento músculo esquelético da criança.
Entretanto, nas últimas informações obtidas, o paciente demonstra sinais de estagnação no tratamento proposto, uma vez que a constipação crônica e a desnutrição grave persistem. A recuperação nutricional tem apresentado resultado insatisfatório, mantendo o peso e o IMC abaixo do z-score -3. Além disso, devido a sua condição clínica, o paciente apresentou restrição de mobilidade e lesão do nervo ciático, resultando em hemiparesia flácida no membro inferior direito, com necessidade de acompanhamento pela neurocirurgia. Dessa forma, o prognóstico é considerado incerto, apesar da boa adesão e seguimento ambulatorial multidisciplinar.
DISCUSSÃO
A POICP é uma enfermidade clínica rara e debilitante caracterizada por disfunção grave da motilidade gastrointestinal, resultando em sintomas sugestivos de obstrução intestinal total ou parcial na ausência de quaisquer lesões restritivas de lúmen ou oclusivas. Nas crianças, os casos mais graves surgem no período neonatal, frequentemente caracterizados pela intolerância à alimentação enteral, e têm um prognóstico desfavorável, com taxas de mortalidade variando de 10% a 32%. (ALMEIDA, 2000; ARAÚJO, 2018; SANTOS, 2020). No caso em questão, o paciente começou a apresentar quadros de constipação após o nascimento – com intervalos variáveis de normalidade – evoluindo para insuficiência seguida de dilatação intestinal, o que torna o caso em questão ainda mais raro, segundo a literatura (DOWNES, 2018).
A POIC pode ser primária, secundária ou idiopática. Os casos de origem primária englobam insuficiências motoras do intestino final devido a uma alteração neuromuscular do tubo digestivo, reversível ou irreversível, com segmento único ou múltiplo. As alterações podem ocorrer tanto na musculatura lisa entérica – caracterizando a miopatia visceral – quanto no sistema nervoso intrínseco entérico – neuropatia visceral. Já a etiologia secundária, está correlacionada à condições sistêmicas, como por exemplo diabetes e hipotireoidismo. Por fim, a forma idiopática é de causa desconhecida, sem relação com outras doenças (ALMEIDA, 2000; ARAÚJO, 2018; SANTOS, 2020).
O quadro clínico é inespecífico, sendo bastante semelhante às demais síndromes de obstrução intestinal, favorecendo um diagnóstico tardio, baixa qualidade de vida e cursa com sintomas crônicos e desnutrição grave. A sintomatologia se dá com base na localização e na extensão do segmento intestinal envolvido. Os pacientes apresentam geralmente, dor e distensão abdominal (80% dos casos), que podem ser agravados durante episódios agudos de pseudo-obstrução, associada à náuseas e vômitos (75%), constipação (40%) e/ou diarreia (20%). Além disso, os episódios de agudização variam de acordo com cada paciente (SANTOS, 2020; ARAÚJO, 2018, Di NARDO,2017).
Na grande maioria das vezes, a desnutrição é um aspecto clínico importante nos casos de POIC. A ingestão oral é limitada, já que o consumo de alimentos pode agravar os sintomas, e há uma má absorção intestinal relacionada ao trânsito intestinal alterado pela doença (VASANT, 2018). Dessa forma, as manifestações clínicas do paciente descrito são bem sugestivas, com um histórico de episódios importantes de constipação, além de uma exacerbação grave, que evoluiu para instabilidade hemodinâmica e sepse.
Os critérios diagnósticos ainda não estão bem estabelecidos mundialmente, entretanto, a literatura indica a presença de dois ou mais dos seguintes: 1) Confirmação do comprometimento neuromuscular do intestino delgado, através de histopatologia e alterações do trânsito intestinal (manometria, que, na pediatria, tem uma baixa especificidade diagnóstica); 2) Persistência e/ou recorrência da dilatação das alças intestinais e presença de níveis de líquido; 3) Anormalidades genéticas e/ou metabólicas associadas à POIC; 4) Dificuldade de manter a nutrição e/ou crescimento adequados na alimentação oral, requerendo nutrição enteral e/ou suporte nutricional parenteral. Contudo, o diagnóstico definitivo é estabelecido por meio da histopatologia, que permite detectar a extensão da doença, principalmente através de biópsias seriadas (ARAÚJO, 2018).
Desse modo, confirma-se que o paciente apresentou os quatro critérios para o diagnóstico de POIC, segundo a literatura estudada: 1) Histopatologia que confirmou a miopatia visceral; a Manometria foi inespecífica; 2) Recorrência da dilatação das alças, identificada por TC de abdome; 3) Anormalidades metabólicas associadas à doença; 4) Necessidade de nutrição enteral por persistência do quadro de desnutrição grave.
O tratamento da POIC é complexo e demanda o envolvimento multidisciplinar sendo paliativo, na maioria das vezes. O objetivo é controlar os sintomas, promover um melhor aporte nutricional e tentar restaurar a motilidade intestinal. A equipe assistente deve avaliar a indicação do uso de medicamentos procinéticos, evitando cirurgias desnecessárias, e prevenir complicações associadas como supercrescimento bacteriano de intestino delgado e sepse (SANTOS, 2000; THAPAR,2018).
Conforme as diretrizes para quadros de POIC, foi realizada uma colostomia para descompressão intestinal, acompanhada de nutrição enteral, medicações procinéticas e laxantes osmóticos, além de fisioterapia para fortalecimento muscular esquelético. Por se tratar de uma doença rara e potencialmente grave, com prognóstico incerto e desfavorável, e considerando que as opções terapêuticas disponíveis atualmente costumam não apresentar resultados satisfatórios, recomenda-se que, assim que diagnosticada, a criança seja encaminhada à equipe de Cuidados Paliativos.
CONCLUSÕES
A POIC possui diversas apresentações clínicas e tem grande impacto na qualidade de vida da criança e apresenta altas taxas de morbimortalidade. Apesar dos avanços recentes em sua pesquisa, ainda existem desafios em relação à compreensão da etiopatogenia e ao estabelecimento de uma definição universal. No caso, a análise histopatológica foi essencial para a compreensão da fisiopatologia e da progressão da doença.
Ademais, por se tratar de uma afecção rara, muitos pacientes são subdiagnosticados devido à escassez de dados epidemiológicos e à imprecisão dos critérios diagnósticos. Em crianças, a POICP apresenta desafios diagnósticos ainda mais complexos do que em adultos, resultando em impactos negativos no crescimento e desenvolvimento, o que gera discussões sobre cuidados de fim de vida em pacientes pediátricos. Nesse contexto, evidenciam-se lacunas no conhecimento atual sobre a POICP, ressaltando a necessidade de pesquisas futuras que desenvolvam estratégias diagnósticas e terapêuticas mais eficazes para aprimorar o prognóstico dos pacientes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. ARAÚJO, P.; WEFFORD, V.; SIMÃO, D. Pseudo-pediatric chronic intestinal obstruction – a literature review. Residência Pediátrica, v. 9, n. 2, p. 138–147, 2019.
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4. DAVID, A. I.; ALVES, F. L.; LUIZ. Análise da Implementação de um Programa de Transplante Intestinal e Multivisceral no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo através do Sistema Único de Saúde através da Metodologia PMBOK. V CURSO DE GESTÃO EM ATENÇÃO A SAÚDE, 13 dez. 2013.
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9. DOWNES, T. J. et al. Pathophysiology, Diagnosis, and Management of Chronic Intestinal Pseudo-Obstruction. Journal of Clinical Gastroenterology, v. 52, n. 6, p. 477–489, jul. 2018.