REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202410181526
Carla Patrícia de Brito
Orientador: Professor Doutor Márcio Ricardo Coelho Muniz
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivos: em primeiro conferir a relevância e analisar a peça Breve Sumário da História de Deus de cunho devocional de Gil Vicente, na qual é possível observar a existência da sublimitas in humilitate e representação figural; demonstrar também como a sublimitas in humilitate insere-se nos modos de existência da Antiguidade Clássica na Idade Média a partir disso, pretendemos apurar como o cristianismo criou uma nova forma de rebaixamento, distante da acepção clássica, a qual inclui o rebaixamento em três distintas formas: o próprio Cristo na figura humana; na condição social indicada para entender os mistérios da palavra divina e o rebaixamento estilístico da própria Sagrada Escritura. Nesse sentido, pretendemos estudar como esse rebaixamento de lavra inteiramente cristã é apresentado nessa obra do dramaturgo português.
Palavras-chave: Cristianismo, rebaixamento, discurso, teatro medieval , Gil Vicente.
RÉSUMÉ
Le présent travail vise à : premièrement vérifier la pertinence et analyser la pièce de dévotion Breve Sumário da História de Deus de Gil Vicente, dans laquelle il est possible d’observer l’existence de sublimitas dans la représentation humiliée et figurative ; Nous montrerons également comment sublimitas in humilitate s’insère dans les modes d’existence de l’Antiquité classique au Moyen Âge et, à partir de là, nous entendons déterminer comment le christianisme a créé une nouvelle forme de rétrogradation, loin du sens classique, qui comprend la rétrogradation sous trois formes différentes. : Le Christ lui-même sous la figure humaine ; dans la condition sociale indiquée pour comprendre les mystères de la parole divine et la rétrogradation stylistique de l’Écriture Sainte elle-même. En ce sens, nous entendons étudier comment cette dégradation de l’expression entièrement chrétienne est présentée dans cette œuvre du dramaturge portugais.
Mots-clés: Christianisme, relégation, parole, théâtre médiéval, Gil Vicente.
É possível identificar a retórica, da gramática e da oratória clássicas sobre o sermão medieval e o sublime no cotidiano em vários estudos que revela-nos um conjunto de instruções, com regras e modelos, que tornaram-se importantes principalmente durante o século XII, principalmente porque os eclesiásticos, entre os quais se incluem também as ordens religiosas, investiram tanto na qualidade da pregação quanto na propagação do cristianismo no Ocidente. Conforme indica Miatello (2017) no artigo “A política dos sermões ou os sermões na política”, que tem como objetivo estudar os sermões como parte da linguagem política das comunas da Itália na Baixa Idade Média, esse movimento fez com que se criassem centros especializados na formação dos pregadores, sendo um dos centros mais importantes a Universidade de Paris.
Neste artigo vamos trabalhar principalmente com a exegese dada por Erich Auerbach (2021), destacando sua contribuição em sua obra Mimesis. É importante ressaltar que essa temática também é discutida por críticos brasileiros, como João Adolfo Hansen e Alcir Pécora, ao analisarem o uso do sermo humilis na produção literária dos Padres Antônio Vieira e Manuel da Nóbrega. Na sua exegese, Auerbach, versa extensivamente sobre humilitas em oposição a sublimitas, ele discute sobre a Poética de Aristóteles e se opõe a ela.
Na antiga teoria, o estilo de linguagem elevado e sublime chamava-se sermo gravis ou sublimis; o baixo, sermo remissus ou humilis; ambos deviam permanecer severamente separados. No cristianismo, ao contrário as duas coisas estão fundidas desde o princípio, em especial na Encarnação e na Paixão de Cristo.( AUERBACH, 2021,p 161)
Podemos perceber pela citação que na divisão clássica de estilos, o estilo elevado, sermo gravis, devia permanecer severamente separado do estilo baixo, sermo humilis. O estilo baixo, sintaticamente, seria caracterizado pela predominância da parataxe, seu conteúdo seria concebido como imitação do discurso falado e seu registro, adequado para gerar efeitos cômicos e descrições cotidianas. Este estilo, que esteve ligado às origens e à doutrina do cristianismo, segundo o filólogo alemão, foi fundamentado por Santo Agostinho, e sua representação na arte e na literatura floresce a partir do século XII.
No capítulo entitulado Adão e Eva, de sua obra Mimesis, Erich Auerbach destaca que o teatro cristão medieval está profundamente conectado à tradição de representação viva dos eventos bíblicos, incorporando elementos dramáticos inatos que são transmitidos para a liturgia. Segundo o autor, o elemento cotidiano é característico da arte cristã-medieval, especialmente no contexto da arte dramática. Ele observa que o drama cristão da salvação ganha destaque no século XIV, particularmente nos Mistérios. Ele afirma que o teatro cristão medieval está totalmente integrado à tradição da representação viva dos acontecimentos bíblicos, com seus elementos dramáticos inatos,transmitidos para a liturgia. Para o autor, o elemento cotidiano é próprio à arte cristã-medieval e, especialmente, à arte dramática. Segundo Auerbach, o drama cristão da salvação aparece no século XIV, especialmente, nos Mistérios.
Para melhor compreender o texto Adão e Eva apresentamos uma breve leitura da sua discussão central; Erich Auerbach começa seu texto mostrando uma cena, que acontece entre três personagens bíblicos, essa cena representa o momento da queda do homem de acordo com a bíblia. O momento em que Adão e Eva são levados ao pecado por terem dado ouvidos à serpente. O restante do texto explica todo o contexto da cena anteriormente narrada. O texto, inclusive, é um texto dramático muito bem estruturado, pois há partes que dizem exatamente o que precisa ser feito (a serpente precisa aparecer em tal momento, Eva precisa se inclinar para ouvir a serpente, etc.) O texto original seria uma linguagem vulgar (ou seja, uma linguagem usada no dia a dia por pessoas comuns), temos um drama litúrgico. Na hermeneútica feita por Auerbach percebe-se o ciúme de Adão e até mesmo o respeito que ele tinha por Deus, o medo de perder tudo o que a ele havia sido dado e como Eva pode ser considerada ingênua e sagaz ao mesmo tempo. Há também uma discussão de como Adão se deixa seduzir pelo o que Eva comenta com ele de tudo que era possível ver depois de comer do fruto. O autor também comenta o fato de que há outra possível leitura dessa parte da peça, mas que da sua perspectiva seria uma leitura errônea. Ele faz uma comparação entre a leitura proposta na língua francesa e remete que a segunda leitura é errônea também porque de fato a serpente não conseguiu seduzir a Adão, mas Eva sim. Ou seja, Eva foi a intermediária, foi seduzida pela serpente, e depois seduziu a Adão. Segundo o autor antes da serpente, Eva era comandada, submissa, medrosa, respeitava as vontades e comandos de Adão. Mas depois da serpente isso muda. Ela conversa com a serpente, ela muda de pensamento, ela passa a querer se tornar dona de si, ela começa a “ver com seus próprios olhos” e ela seduz a Adão a fazer diferente do que ele estava fazendo.
O ponto principal seria esse: O teatro cristão medieval está totalmente integrado nesta tradição: como representação viva dos acontecimentos bíblicos, da forma como, desde um princípio, com elementos dramáticos, estava contido na liturgia, estende convidativamente as mãos para receber os incultos e os simples e para levá-los do concreto, do quotidiano, para o oculto e verdadeiro — de maneira que em nada difere da grande arte plástica das igrejas medievais, que, segundo a conhecida teoria de E. Mâle, deve ter recebido influências decisivas dos próprios mistérios, isto é, dos dramas religiosos. Acerca da intenção do teatro litúrgico ou, num sentido mais amplo, do teatro cristão, o qual chegaram-nos testemunhos de tempos muito antigos. (grifos meus).
O acontecimento que aqui nos é apresentado de forma dramática é o ponto de partida do drama cristão da salvação; portanto, para o poeta e para os seus ouvintes, um objeto da mais elevada importância e da maior sublimidade. Só objetivo da representação é popular: o acontecimento antiquíssimo, sublime, deve tornar-se presente, deve transformar-se num acontecimento presente, possível.. (AUERBACH, 2021. p. 161)
O principal intuito da análise extremamente detalhada e bem construída feita pelo autor é mostrar que na literatura cristã há dois tipos de linguagens postas lado a lado o contraste humilitas- in sublimitas e mais o hermeneuta expõe sua teoria de que o teatro medieval cristão seria uma etapa do realismo. Essa forma de pregar que esteve ligada às origens e à doutrina do cristianismo encontra, também, sua representação na arte e na literatura a partir do século XII. Com efeito, por meio da revelação da presença sublime de Deus nas coisas humildes define-se a sublimitas in humilitate, que trataremos de maneira detalhada.
Para a autora Silvia Cristina da Silva Coelho, na Alemanha nazista, ao escrever a obra “Mimesis”, Auerbach tinha o objetivo de se opor ao classicismo distorcido pelo mito da vocação germânica, que reivindicava a herança cultural grega. Deliberadamente, a obra deixa de abordar a tradição greco-latina na Idade Média, destacando, em vez disso, a importância do pensamento judaico-cristão na evolução das formas literárias que levaram ao realismo sério na alta literatura. O esforço de Auerbach pode ser compreendido diante da ameaça do III Reich. No entanto, em sua análise crítica, destaca-se a importância da abordagem da gravidade do humilde, evidenciando que, em certos casos, o cômico transcende sua natureza humorística, como exemplificado na obra de Gil Vicente.
Em acordo com Silva Coelho podemos notar que Gil Vicente atribui voz às personagens de baixa condição social, que desempenham o papel de anunciadoras do nascimento de Cristo. O “Auto da Fé” destaca-se, exemplificando como os mistérios da Encarnação são ensinados através de uma alegoria da Fé a humildes pastores. No entanto, a condição social humilde dessas personagens não garante necessariamente a presença de humildade moral para compreender os mistérios divinos, como ilustrado pelo caráter vicioso da pastora Mofina Mendes, que busca riqueza material em vez do caminho divino.
Além da leitura de Auerbach, é crucial considerar a influência da captação da retórica clássica medieval na formulação da sublimitas in humilitate. Destaca-se a importância da ars praedicandi, que ajusta o estilo do sermão à humilitas social, permitindo que o discurso trate de assuntos sublimes enquanto se adapta ao público ouvinte. Assim, algumas peças de Gil Vicente, modeladas a partir de sermões e representações medievais, estão intrinsecamente ligadas à representação adequada ao sermo humilis, destacando não apenas o estrato social, mas também a capacidade do cristão de ser virtuoso e modesto, em sintonia com a humilhação de Deus na Encarnação e a utilização das sagradas escrituras. Isso reflete o pensamento de São Jerônimo, que comparava a Bíblia a uma bela mulher vestida em trapos.
Com base sobre o que depreendemos sobre a teoria sublimitas in humilitate e a assimilação da retórica básica ao discurso religioso analisaremos a peça de Gil Vicente Breve Sumário de Deus. A escolha que se justifica, sobretudo pela constatação de que ela condensa modos de apresentação do sublimitas in humilitate.
Eis o resumo da peça .O “Breve Sumário da História de Deus” é uma peça significativa que compõe o Tomo I das obras de Gil Vicente, datando de uma encenação em Almerim em 1527, diante do Rei Dom João III e da Rainha Dona Caterina. Esta obra, conforme indicado pela didascália, é extensa e rica em figuras, apresentando um número específico de versos e sendo dividida em vários ciclos. A peça está enraizada na tradição do drama litúrgico e representa um dos autos que mais se aproxima dos mistérios medievais. Sua estrutura abrange um resumo da história da redenção, abordando temas como o pecado original, a vitória de Cristo sobre o diabo e a remissão dos pecados. De acordo com Bernardes (2009), a peça não apenas narra a História de Deus, abrangendo o Deus Criador e o Deus Encarnado, mas também a História do Homem.
Um aspecto notável desta peça é a representação de Cristo, que difere das representações tradicionais de um menino frágil. Aqui, Cristo é retratado como um homem capaz de cumprir a missão que Deus Pai lhe designou. Esta escolha destaca a força e a maturidade do protagonista, enfatizando sua capacidade de realizar a obra divina.
Em “Breve Sumário da História de Deus” não apenas podemos mergulhar nas profundezas dos mistérios medievais, mas também perceber uma abordagem distinta à representação de Cristo, reforçando a mensagem central da peça sobre a redenção e a história do homem à luz da divindade. Para Bernardes , o autor não trata apenas de um exercício estilístico ou uma demonstração de seu saber teológico, mas trata-se de uma parte importante da doutrina que sustenta a unidade da Compilação, “que, afinal, como todos os livros, recupera uma leitura global e não parcelar” (BERNARDES, 2009, p. 16). Lido isoladamente ou de modo integrado à obra vicentina, dada a natureza do auto é possível incorporá-lo ao chamado “teatro de Páscoa”, para usar a expressão de Bernardes Carvalho, do qual fazem parte também o pequeno mistério Ressurreição de Cristo e as moralidades Auto da Alma e Barca da Glória. Em empréstimo à Bernardes (2009), pode-se dizer que Breve Sumário da História de Deus possui matéria de natureza teológico-doutrinal, que, em sua forma, predomina o verso longo, e seu estilo é assertivo e solene. Nesse auto, Gil Vicente coloca em cena personagens importantes da sagrada escritura. Do Antigo Testamento: Adão, Eva, Abel e Jô; os Escolhidos, Abraão e Davi; e os Profetas Isaías e Moisés. Do Novo Testamento: São João e Jesus Cristo; e também as figuras alegóricas: Mundo, Tempo e Morte. Esta peça é elucidativa a relação do cotidiano e humilde com o sublime de Deus.
A obra em questão apresenta uma abordagem intrigante das cenas iniciais, nas quais Lúcifer, Belial e Satanás debatem estratégias para desencaminhar Adão e Eva. A habilidade persuasiva de Satanás se destaca, conduzindo o casal à perdição por meio de um discurso sedutor. O ponto culminante, a cena em que os primeiros seres humanos consomem o fruto proibido, é profundo e simbolicamente relacionado, remetendo aos mistérios medievais, que em consonância com Auerbach destaca que essa representação é essencial no contexto do drama cristão da salvação, convertendo-se de algo sublime para um acontecimento de estilo simples e baixo. Essa transformação evidencia a complexidade da narrativa, ao mesmo tempo sublime e terrestre, um ponto crucial na trama. Interessante é a escolha do autor Gil Vicente em suprimir a cena do pecado original de Adão e Eva, optando por relatá-la por meio de Satanás. Tal decisão sugere uma abordagem inovadora, conferindo ao personagem maligno a narrativa e, por extensão, o controle sobre a interpretação dos eventos. Isso não apenas oferece uma perspectiva única, mas também desafia as convenções, questionando a autoridade da tradição ao reconfigurar a forma como o mito é apresentado.
Em resumo, a peça vicentina parece explorar com maestria os elementos do pecado original, destacando a astúcia de Satanás e oferecendo uma visão singular sobre eventos religiosos consagrados. Ao suprimir a cena em si e permitir que Satanás a narre, a obra propõe uma reflexão profunda sobre a natureza da sedução, da traição e da manipulação, enquanto desafia as expectativas provocadas pelo teatro religioso medieval.
Nas cenas iniciais do auto, Lúcifer, Belial e Satanás discutem sobre a criação divina. Lúcifer, a quem Gil Vicente chama de “maioral do inferno”, designa Satanás para , por meio de um discurso hábil e sedutor, desencaminhar Adão e Eva, levando-os à perdição ao induzi-los a comer o fruto proibido. Essa cena dos primeiros casados transgredindo representa, nos mistérios medievais, o ponto inicial do drama cristão da salvação. A ação, mesmo sendo sublime, é simbolizada de forma simples e baixa, conforme aponta Auerbach. Na peça vicentina, a cena do pecado original de Adão e Eva foi suprimida, sendo relatada por Satanás:
Senhor Lucifer, prazer i nam há
que dê pelos pés ao vencimento.
Alegrai-vos muito e o nosso convento
que vosso desejo comprido está.
Já são derrubados
Adão e Eva, os primeiros casados
(Vv 135/137 Disponível online em www.cet-e-quinhentos.com)
O texto introduz três novas personagens no cenário: o Mundo, o Tempo e a Morte. Destas, destaca-se a Morte, que desempenha um papel significativo na cena seguinte, envolvendo o bom pastor Abel. Este último entra em cena apresentando um vilancete repleto de musicalidade, sendo elogiado pela crítica como um dos mais ricos e belos em toda a produção vicentina. A presença dessas personagens adiciona profundidade ao enredo, sugerindo uma interconexão entre elementos como o Mundo, o Tempo e a Morte, enquanto a musicalidade do vilancete de Abel enriquece a experiência estética da peça.
Adorai montanhas
o Deos das alturas
também as verduras.
Adorai desertos
e serras floridas
o Deos dos secretos
o senhor das vidas.
Ribeiras crecidas
louvai nas alturas
Deos das criaturas.
Louvai arvoredos
de fruto prezado
digam os penedos
Deos seja louvado.
E louve meu gado
nestas verduras
o Deos das alturas.
((Vv 341/357 Disponível online em – www.cet-e-quinhentos.com)
No vilancete em questão, destaca-se o uso da metáfora e da personificação (prosopopeia) na convocação dos elementos da natureza para adorar a Deus, indicando a proximidade íntima entre o poeta, representado por Abel, e esses elementos. Como pastor, Abel percebe a presença de Deus nas verduras, penedos, arvoredos e ribeiras, revelando uma ligação profunda com a natureza. A representação de Abel, conforme delineada por Gil Vicente, alinha-se ao modelo do pastor que valoriza a simplicidade e busca a adoração a Cristo. Abel, em sua postura humilde (ethos humilis), é escolhido por Cristo, sendo reconhecido como o primeiro pastor: “Abel é pastor, amigo de Deus e bom servidor” (, www.cet-e-quinhentos.com – 335-336), conforme apresentado no livro de Gênesis. Contudo, o mistério vicentino se distancia da narrativa bíblica ao relacionar a história e a morte de Abel diretamente ao seu irmão Caim. Essa abordagem peculiar oferece uma interpretação única e distinta da história bíblica, enriquecendo a trama e conferindo um caráter original à obra de Gil Vicente.
No desenrolar da trama, Satanás mostra-se encantado com o doce canto de Abel, expressando admiração pela habilidade do pastor. Contudo, sua intenção é ludibriá-lo, assim como havia feito com os pais de Abel. O Tempo, por sua vez, apressa o bom pastor, indicando que suas horas estão se esgotando. Notavelmente, Gil Vicente omite o fratricídio de Caim, representando textualmente a entrada do pastor no limbo. Diferentemente do texto bíblico, o dramaturgo português explora com engenhosidade o conflito entre Satanás e Abel, em que o discípulo de Lúcifer tenta seduzir o jovem pastor, evocando paralelos com a tentação sofrida por Cristo, conforme apresentada em Mateus 4, 2-11. Algumas leituras sugerem que a tentação de Abel prefigura a tentação enfrentada por Cristo, conferindo à representação de Abel uma simplicidade divina que antecipa o drama do Salvador. Essa abordagem ressalta a universalidade da interpretação figural (AUERBACH 2021) e a conexão entre a Paixão de Cristo e o drama cristão da Salvação.
O próximo personagem introduzido no auto é Jó, conhecido por sua história de fé inquebrantável. Suas palavras destacam o afastamento dos bens mundanos, considerados volúveis e repletos de ilusões. Essa apresentação contribui para a complexidade da trama, abordando temas fundamentais como tentação, fé e renúncia aos valores terrenos.
e os bens do mundo nos dá a ventura
também em ventura está quem os tem.
O bem que é mudável nam pode ser bem
mas mal, pois é causa de tanta tristura.
E se Deos os dá,
como eu creo mui bem que será,
e a fortuna tem tanto poder
que os tira logo cada vez que quer,
o segredo disto, oh, quem mo dirá
pera o eu saber?
( www.cet-e-quinhentos.com – 447-457)
A participação do personagem introduz o auto em um contexto teológico, focalizando questões relacionadas à Lei da Escritura em contraste com a Lei da Natureza. A Lei da Escritura é simbolizada por figuras como Abraão, Moisés, Isaías e David, estabelecendo uma conexão entre o Antigo e o Novo Testamento por meio da prefiguração de Cristo.
Auerbach (1997), a interpretação figural funda uma ligação entre dois acontecimentos (ou duas pessoas), de modo que
o primeiro significa não apenas a si mesmo mas também ao segundo, enquanto o segundo abrange ou preenche o primeiro. Os dois polos da figura estão separados no tempo, mas ambos, sendo acontecimentos ou figuras reais, estão dentro do tempo, dentro da corrente da vida histórica. Só a compreensão das duas pessoas ou acontecimentos é um ato espiritual, mas este ato espiritual lida com acontecimentos concretos, sejam estes passados, presentes ou futuros, e não com conceitos ou abstrações, estes últimos são secundários, já que a promessa e o preenchimento são acontecimentos históricos reais que ou já aconteceram na encarnação do verbo, ou ainda acontecerão na segunda vinda. (AUERBACH, 1997, p. 46).
As palavras de Isaías refletem uma interpretação figural, destacando a sobreposição da História Sagrada sobre a história humana. Essa sobreposição fundamenta a Lei da Escritura, transcendendo a Lei da Natureza. O texto sugere uma compreensão mais profunda da narrativa bíblica, onde a dimensão sagrada se torna a base primordial para a compreensão e a orientação, superando as leis naturais estabelecidas.
Tu, homem, penetra
e dos sacrefícios nam tomes a letra
que outro sacrefício figuram em si
que matar bezerros nem aves ali,
outra mais alta oferta soletra
e outro Genesi.
( www.cet-e-quinhentos.com, 620-625)
Logo após, o rei David proclama que o sacrifício mais aceitável a Deus é um espírito profundamente atribulado e um coração humilde e contrito ( www.cet-e-quinhentos.com – 628-630). As palavras de Isaías, por sua vez, indicam que não é mais necessário realizar sacrifícios, sugerindo uma mudança de perspectiva em relação às práticas ritualísticas antigas. O texto enfatiza a importância da disposição interior e da humildade diante de Deus, sublinhando uma abordagem mais espiritual e introspectiva em relação à adoração.
O sacrefício é o mexias
que será nascido em Belém de Judá
porque do tribu de Judá será
da parte da virgem e, eis, virão dias
em que parirá.
(www.cet-e-quinhentos.com, 631-635)
Isaías anuncia que o fruto do ventre de uma donzela será oferecido à justiça divina, resultando em um sacrifício coberto de sangue e crucificação para a remissão dos pecados. Após a proclamação da Lei da Graça, as personagens do Antigo Testamento são conduzidas ao limbo, aguardando o julgamento após a vinda de Cristo. São João, com palavras carregadas de Verdade, confirma as profecias e é reconhecido como o verdadeiro Messias, apesar das tentativas de Satanás de corrompê-lo. O Tempo anuncia a morte iminente de São João, que aceita partir, cumprindo sua missão de revelar Cristo aos vivos e levar a boa nova aos cativos.
Segundo a didascália que é apresentada no auto, a entrada de São João no limbo é acompanhada de um romance em castelhano onde anunciam o nascimento e a morte do Salvador. Cumprindo o que as personagens durante o auto anunciaram, Cristo entra em cena, recebido pelo Mundo, pela Morte e pelo Tempo. As primeiras palavras dirigidas ao Senhor são vindas do Mundo, em uma referência direta à passagem de Mateus 8, 5-9.
E portanto eu nam sam digno
que entreis na minha morada
porque é baixa pousada
e pera ti, verbo divino,
quanto tenho nam é nada
( www.cet-e-quinhentos.com, 852-856)
Cristo, ao responder ao Mundo, tranquiliza-o, indicando que Seu reino não é terreno e que não deseja os impérios ou reinados terrenos. Ele deixa ao Mundo a lição de que para que os pecados sejam perdoados e os cristãos alcancem a Salvação, é essencial reviver a Paixão de Cristo, liberando assim toda a humanidade da culpa. Cristo solicita quatro coisas ao Mundo para esse propósito.
primeira
quando me vires levar
pola rua d’amargura
que olhes minha figura
e o sangue que eu derramar
tome tua alma por cura.
segunda
E quando os saiões da cidade
me pregarem no madeiro
com fortes pregos d’aceiro
que olhes com que vontade
me entreguei ao carniceiro.
terceira
E quando vires espirar
o meu spírito cansado,
o meu coração finado,
que tu te queiras lembrar
que mouro por teu pecado
quarta
quando enterrado me vires
sem companha nem emparo
que do teu coração tires
sospiros com que sospires
minha morte e desemparo.
( www.cet-e-quinhentos.com, 862-881)
Após esses ensinamentos, que indicam a profunda conexão entre a Paixão e o drama da Salvação cristã, Cristo vai ao deserto e Lúcifer julga que, sendo ele homem, poderia, por meio de um ardiloso engodo, ludibriá-lo. Manda Satanás, trajado de monge, ter com Cristo, de modo que, com o discurso – e assi simulado falarás de perto (v, 921) – tentará romper o jejum de Cristo. O episódio da tentação de Cristo, que obviamente se trata de matéria elevada, apresenta traços de comicidade, como na cena em que Satanás se apresenta como monge e Jesus responde: Nem porque o sagais e bom caçador/se veste no boi por caçar perdizes (v, 934-935). Cristo não se deixa levar pelas argumentações de Satanás, tampouco pelos presentes a ele prometidos, pois: escrito é: nam adorarás/se nam um só Deos, com grande cuidado/a ele servirás (v, 993-995). Cristo expulsa Satanás, que, mais mofino que um alfeloeiro (v, 999), informa a Lúcifer sua derrota. Cristo, em sua última fala, paciente espera seu destino, descreve detalhadamente o martírio que irá passar e revela a todos que as profecias anunciadas serão cumpridas. Seu sacrifício e Ressurreição significam a derrota do mal e o retorno à vida perdida desde o pecado original: Aqui tocam as trombetas e charamelas e aparece uma figura de Cristo na ressurreição e entra no limbo e soltará aqueles presos bem aventurados. E assim acaba o presente auto. Gloria laus et honor tibi sit rex Christe redentor (www.cet-e-quinhentos.com ).
O auto em questão está intimamente ligado à tradição do drama originado da liturgia, representando a obra de Gil Vicente que mais se aproxima dos mistérios medievais. Além de evidenciar a presença da sublimitas in humilitate, representação figural e encarnação, ou seja, a ideia de Deus se tornar humano e viver entre as pessoas. Esses conceitos são para (AUERBACH 2021) os fundamentos da representação do realismo no teatro medieval além de trazer a possibilidade de narrativas que abrangem a totalidade da experiência humana, desde os aspectos mais banais até os mais sublimes. Isso resultou em uma maior amplitude e profundidade nas histórias contadas na literatura. Podemos observar também o conceito através da aproximação com tipos comuns do dia a dia. Em Mimesis (AUERBACH 2021) não aborda sobre a linguagem proverbial, muito utilizada no teatro medieval, típica da fala cotidiana. Mas é interessante pensá-la como um elemento capaz de representar o corriqueiro ou comum. Na boca das personagens da peça vicentina. O diabo responde com um provérbio quando é indagado sobre quando ele lançará as pragas no Egito. França e Roma nam se fez num dia (v 840) O próprio Cristo também utiliza a linguagem proverbial em algumas cenas, destaca-se aqui a cena em que ele faz um sermão para o povo; Julgai polas obras e nam pola cor sereis bons juízes. (935). Ao todo há na peça a recorrência de nove provérbios Os provérbios geralmente são oriundos de fonte erudita, que ao longo de um determinado tempo vai se diluindo na oralidade, a tal ponto que costumeiramente são vistos como gênero textual de origem popular que veicula ideias repetitivas e banais. Os provérbios encontram-se no campo da alegoria, conforme Reboul (1993). Uma vez que a alegoria é uma figura que expressa o abstrato pelo concreto, pelo cotidiano, pelo familiar, sua estrutura é complexa, já que trabalha com dois níveis de construção de idéias que precisam tornar-se esclarecedores para aqueles que ouvem ou leem. Segundo Helena Morley Bittencourt, “os provérbios têm suas fontes na voz do povo” (BITTENCOURT, 2005, p. 148). Essa afirmação, embora pareça vir de encontro ao que foi discutido anteriormente, possibilita-nos perceber que os provérbios ocupam um lugar entre o erudito e o popular, e sobre esse dois alicerces é construído o universo desses dois gêneros o teatral e o proverbial. Ao colocar as personagens expressando uma linguagem proverbial as cenas ficam mais realistas, cotidianas e verossímeis. Importa nos dizer que embora Gil Vicente possa ser considerado como um herdeiro da teoria discutida por Erich Auerbach especialmente no capítulo Adão e Eva há diferenças entre o auto comentado por Auerbach e o vicentino. Mesmo no “Breve Sumário da História de Deus”, Gil Vicente mantém a crítica social e o desconcerto do mundo em foco, uma dimensão que não está centralizada nas cenas do auto medieval analisado por (AUERBACH 2021) O artigo propôs oferece uma análise equilibrada, reconhecendo as influências e distinções entre as abordagens de Auerbach e Gil Vicente, especialmente para compreender como os preceitos formulados por Erich Auerbach se configura na obra de Gil Vicente.
BIBLIOGRAFIA
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BITTENCOURT, Vanda de Oliveira. O provérbio é a voz do povo e a voz do povo é a voz de Deus: a voz da parêmia no diário de Helena Morley: Scripta. Belo Horizonte, v.8, n.16, 2005, p.148-146
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