REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202410171744
Rayssa Araujo da Conceição1
RESUMO
O livro didático constitui-se como um instrumento linguístico que acaba, muitas vezes, por organizar e influenciar as práticas docentes no que se refere ao ensino de Língua Portuguesa. Dessa forma, faz-se necessário investigar quais representações a respeito da língua têm sido enfatizadas. Assim, este trabalho busca analisar a influência dos discursos eurocêntricos na representação e estudo do termo “barbarismo” no livro didático de Língua Portuguesa de uma escola do município de Palmas. Para atingir os objetivos propostos, esta pesquisa fundamenta-se nas contribuições em Auroux (1992) e Aquino (2012, 2020), que versam sobre a historicidade da língua e a respeito do processo de gramatização. Ademais, fundamenta-se também nas contribuições das pesquisas de Alcalá (2011) sobre a escrita como instrumento linguístico de poder e nos estudos de Bagno (2002) e Guimarães (2005) que tratam, respectivamente, sobre o preconceito linguístico e o ensino da gramática nas escolas. Os resultados apresentam que as propostas do livro didático operam o estudo do termo barbarismo com discursos voltados para a manutenção de ideia de língua única, consoantes com uma visão da tradição greco-Latina.
1. A história do pensamento Linguístico – A gramática como materialização de poderes: O termo Barbarismo
Segundo Auroux (1992), pensar em gramática é pensar em uma tecnologia da língua. Assim, pensar em gramática, é pensar em um grande instrumento linguístico. Dessa forma, um instrumento linguístico é um artefato, um instrumento histórico, técnico que busca descrever, oferecer acesso às regras e formas de uma língua.
Assim, ao desenvolver o seu livro “A gramatização”, Auroux (1992) pontua como a tradição greco-latina tornou-se, por questões históricas e de poder, a base para o mundo ocidental. Dessa forma, o autor discorre que essa predileção pela Gramática Greco-Latina ocasionou em uma rede hegemônica. Cabe mencionar, assim, que a língua é uma construção social, uma vez que, segundo Auroux (1998), a língua não existe por si só, mas a partir das relações sociais, culturais e históricas ( AUROUX, 1992, 1998).
Um dos pontos de partida para a fundamentação desses discursos se dá a partir da Renovação da Gramática Latina, na qual teve a divisão da língua clássica x a língua popular. Assim, a língua da população era marginalizada em detrimento dos clássicos. (AUROUX, 1992).
De maneira análoga, esses discursos ainda são reproduzidos na contemporaneidade. Nesse contexto, discursos são criados e recriados a partir desta busca de classificar e hierarquizar os diferentes usos dos falantes. Nesse aspecto, segundo Alcalá (2011), a gramatização de uma língua também pode ter por objetivo a exclusão do “outro”. Sob esse ponto de vista, Aquino (2012) pontua que “a palavra “(“bárbaro”) é indicadora da indiferença dos gregos pelas línguas estrangeiras e pelos falantes dessas línguas” (AQUINO, 2012, p. 80).
Paralelamente, o uso desse termo no livro didático (doravante LD) pressupõe essa indiferença com os falantes que não dominam as regras gramaticais, ou seja, com aqueles que não dominam a norma-padrão, sendo estes alvos de preconceitos e discriminações pelos seus modos de falar. Diante disso, ao categorizar os outros modos de falar como “barbarismos”, os produtores desses discursos concebem um jeito “certo” e “errado”, ou seja, “o que pode” e o que “não se pode” fazer com a língua. Assim, segundo Alcalá (2011), a Gramática Greco Latina tornou-se um observatório das línguas do mundo, servindo, dessa forma, como um modelo de língua para todas as sociedades, gerando, assim, uma questão de dominação. (ALCALÁ, 2011).
Ainda sob esse viés, Bagno (2012) aponta discursos e camadas de representações no português em relação à norma culta x variações, como, por exemplo: o feio e o belo da língua; o elegante e o grosseiro e, consequentemente, o que é língua e o que é barbarismo. Assim, o autor discorre como o português é confundido e classificado apenas como o ideal de uma língua inalcançável e abstrata.
Desse modo, esses postulados fornecem reflexões sobre as práticas docentes uma vez que nos propiciam condições de compreender de que forma esses discursos têm se materializado no LD: “O que tem sido privilegiado?” Sob esse enfoque, Orlandi (2008), em seu livro sobre Discurso e Leitura, discorre sobre como a escola exclui as diferentes linguagens, priorizando somente o clássico no ambiente escolar. Com isso, a escola tem sido espaço de práticas homogeneizadas.
Dito isso, na próxima seção trataremos do livro didático como um instrumento linguístico não isento de neutralidade.
2. O livro didático de Língua Portuguesa – Um instrumento linguístico e seu uso
A escrita, além de desenvolver o saber necessário e o saber científico, é também um registro de permanência (AUROUX, 1992). Sobre isso, em seu percurso histórico, Alcalá (2011) destaca que a escrita é uma importante ferramenta para reflexão sobre a linguagem e para a construção das cidades. Outrossim, ainda segundo Auroux (1992), para o desenvolvimento desse processo faz-se necessário o desenvolvimento de tecnologias. Assim, tecnologias serviram e servem para organizar os espaços urbanos.
Segundo Choppin (2004), os livros didáticos podem ser descritos como manuais presentes nas salas de aula que tem por objetivo auxiliar nas práticas docentes. Para isso, o LD está organizado em listas de conteúdos de determinado currículo, a partir de unidades e lições que podem ser feitas tanto na escola quanto em casa. Assim, segundo o Programa Nacional do Livro Didático, com base decreto de n° 9.009 de julho de 2017, é objetivo desse programa:
I – aprimorar o processo de ensino e aprendizagem nas escolas públicas de educação básica, com a consequente melhoria da qualidade da educação; II – garantir o padrão de qualidade do material de apoio à prática educativa utilizado nas escolas públicas de educação básica; III – democratizar o acesso às fontes de informação e cultura; IV – fomentar a leitura e o estímulo à atitude investigativa dos estudantes; V – apoiar a atualização, a autonomia e o desenvolvimento profissional do professor; e VI – apoiar a implementação da Base Nacional Comum Curricular.
Dessa forma, o LD materializa-se como um instrumento da língua o qual tem como finalidade ser um suporte para as práticas de linguagem no ambiente escolar. Sobre este, Tagliani (2011) aponta que o livro didático é um suporte histórico social que tem por função estruturar os conteúdos a serem trabalhados.
Ademais, cabe destacar também o livro didático como um instrumento linguístico que direciona o uso da língua:
(…) na história da gramatização, os instrumentos lingüísticos, como gramáticas e dicionários, são tomados como partes constitutivas da língua. Gramáticas e dicionários não só falam sobre a língua, descrevendo-a, normatizando-a, mas também passam a fazer parte de seu próprio funcionamento. (GUIMARÃES, 2005, p. 17)
Diante disso, verifica-se o livro didático como reprodutor de discursos sobre o que é a língua e, consequentemente, o que deixa de ser. Nessa conjuntura, ainda segundo o autor, o registro daquilo que é considerado como “formal” passa a ser compreendido como língua. Por outro lado, tudo aquilo que está fora do padrão é considerado como desvios e erros. (GUIMARÃES. 2005).
Além disso, seguindo essa perspectiva, Aquino (2020) pontua que:
A produção de gramáticas e de outros instrumentos linguísticos elabora, enfim, a ideia de que falamos uma língua, a ideia de que há um modo certo e errado de falar, a ideia de que somos um povo ou uma nação com uma língua única e comum. (AQUINO, 2020, p.121).
Nota-se, dessa forma, que a gramática tornou-se um instrumento de poder e de controle que serve para a manutenção de discursos sobre a ideia de língua única. Nessa perspectiva, Bagno (2002) reforça a importância de compreender que o “padrão da língua” não é um fenômeno e não reflete os usos dos falantes, mas um ideal a ser alcançado. A partir disso, vale destacar que o LD ainda tem se configurado como um dos únicos recursos que professores e alunos têm para o desenvolvimento do ensino e aprendizagem. Nesse contexto, cabe a compreensão de como essas práticas e propostas a respeito da língua têm se configurado.
3. O uso do termo Barbarismo no livro didático – Análise e discussões
Para atingir os objetivos propostos neste trabalho, optou-se por avaliar a coleção POLIEDRO de uma escola do município de Palmas. Nesse aspecto, verificou-se como o termo “barbarismo” é apresentado na referida coleção. Dito isso, foram registradas e, por consequência, analisadas duas ocorrências do tema: uma no livro do 6° ano e outra ocorrência no livro do 9° ano do Ensino Fundamental.
A respeito do uso, temos o seguinte excerto:
A partir da análise, verifica-se no livro do 6° ano a conceituação de barbarismo como um “desvio de fala e escrita pelas pessoas”. Nesse sentido, o modo como esse fenômeno é representado configura-se com a ideia da visão da Tradicional Gramática Latina, na qual fundamenta-se uma representação de “certo” x “errado” na língua. Desse modo, reforça-se a ideia de que o livro didático atua como instrumento linguístico que desempenha o papel de validar que existe uma única língua. (AQUINO, 2020).
Outrossim, na atividade contida no livro do 9° ano, consta também os termos já mencionados anteriormente como “uso incorreto”, “desviando-se da norma padrão”, “vício de linguagem”. Ademais, há juízo de valor ao descrever a variação que a língua sofre com o ato de “tropeçar”. Dessa maneira, o LD tem reproduzido a ideia de que “os compêndios gramaticais se transformaram em livros sagrados, cujos dogmas e cânones têm de ser obedecidos à risca para não se cometer nenhuma “heresia”. (BAGNO, 2012, p. 64). Além disso, ao conduzir os desvios como “vícios de linguagem”, o livro didático aponta os falantes dessas palavras (geralmente pessoas não escolarizadas) como “viciados”, dessa forma, como aqueles que fazem escolhas negativas e condenáveis a respeito da língua.
No boxe “De onde vem a palavra”, reforça-se mais uma vez a representação do livro didático consoante ao discurso dos gregos a respeito da língua latina: o que não é clássico, não é língua, ou está em uma posição inferior. Sobre esses termos, Guimarães (2005) pontua como o formal é caracterizado como o “que regula a língua”, tornando-se, desse modo, confundindo e adotado como língua. (GUIMARÃES, 2005). Diante disso, verifica-se ainda uma visão tradicional da gramática greco-latina de não considerar aquilo que não se relaciona com o “culto”, a ‘norma-padrão”, identificando o uso como algo que não se compreende pelos falantes considerados “corretos”.
Vejamos a continuação da explicação sobre o assunto apresentada no LD:
No excerto acima, verifica-se uma lista dos porquês que o barbarismo deve ser evitado. Nota-se aqui a ênfase em ressaltar o “formal” e “informal” da linguagem. Segundo a representação no LD, o uso do que não é barbarismo compromete a questão do que é crível ou não. Ainda sobre o excerto, os produtores do livro didático enfatizam que o uso deste pode atrapalhar as suas relações pessoais e a forma como o sujeito e o seu texto apresenta-se ao mundo, como visto em “conquista a simpatia de quem o recebe”.
Outrossim, um dos argumentos apresentados no LD valida a questão de preconceito linguístico ao afirmar que ao deparar-se com o fenômeno apresentado, você será alvo de uma preconceito, sendo este feito “naturalmente” pelo interlocutor. Dessa forma, o LD atua como um instrumento linguístico que alimenta as reproduções desses preconceitos. (BAGNO, 2002).
Algumas Considerações
Compreender os aspectos que envolvem o livro didático torna-se importante para o entendimento de quais discursos a respeito da língua têm sido enfatizados nesses manuais. Assim, verifica-se que as práticas sociais do que é língua perpassa também esses instrumentos linguísticos que acabam por atuarem na difusão e ideia de língua única, argumentos esses que estão embasados na Tradição da Gramática Greco-Latina.
Desse modo, apesar dos avanços na relação entre teoria linguística e práticas escolares, nota-se ainda uma visão tradicional do modelo greco-latino nos discursos apresentados no LD aqui analisado, isso contribui para práticas de preconceito linguístico uma vez que silencia, concebe como equivocadas, erradas e deturpadas as outras formas de comunicação e interação que não dizem respeito à língua culta. Faz-se necessário, portanto, estudos que busquem contribuir cada vez mais com um ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa voltado para as práticas reais e sociais da língua que desmistificam a ideia de língua única.
REFERÊNCIAS
RODRÍGUEZ-ALCALÁ, Carolina. Escrita e gramática como tecnologias urbanas: a cidade na história das línguas e das idéias linguísticas. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 53, v. 2. p. 197-217, 2011.
AQUINO, José Edicarlos de. O que há de materno na língua?: considerações sobre os sentidos de língua materna no processo de gramatização brasileira nos séculos XIX e XX. 2012. 204 f. Dissertação – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2012.
AQUINO, José Edicarlos de. Gramática: instrumento técnico/ferramenta político-histórica. In: MEDEIROS, Vanise; Esteves, Phellipe Marcel da. S. et al. (Org.). Almanaque de Fragmentos: ecos do século XIX. Campinas: Pontes, 2020, p. 113-118.
Auroux, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização / Sylvain Auroux; tradução: Eni Puccinelli Orlandi. — Campinas, SP: Editora da Unicamp. 1992.
AUROUX, Sylvain. Língua e hiperlíngua. Línguas e instrumentos linguísticos, Campinas, n. 1, p. 17-30, jan./jun. 1998.
BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico o que é, como se faz. 15 ed. Loyola: São Paulo, 2002.
BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
CHOPPIN, A. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e pesquisa. São Paulo, v. 30, n. 3, p. 549-566, set./dez. 2004.
GUIMARÃES, Eduardo. Multilinguismo, divisões da língua e ensino no Brasil. Campinas: Cefiel/IEL/Unicamp, 2005a.
TAGLIANE, Dulce Cassol. O livro didático como instrumento mediador no processo de ensino e aprendizagem de língua portuguesa: a produção de textos. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 11, n. 1, p. 135-148, 2011. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rbla/v11n1/v11n1a08.pdf>. Acesso em: 28 set. 2023.
1Mestranda em Linguística Aplicada – UFT