REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202410170821
Msc. Rogério Marques Fortes1
Dr. Tales Dias do Prado2
RESUMO
A vesícula biliar tem fundamental importância no armazenamento de bile produzida pelo fígado, qualquer alteração na viscosidade da mesma, pode desencadear alterações em sua mucosa como hiperplasia do epitélio e consequente aumento na produção de muco, levando a formação de lama biliar. A mucocele é um estágio mais avançado na viscosidade da lama biliar que em sua maioria leva a um dos tipos de obstrução extra hepática; os sinais clínicos podem ser bem inespecíficos, e o exame de imagem, ultrassonografia, tem sido fundamental no diagnóstico e nas tomadas de decisões quanto a cirurgias. O presente relato tem por finalidade demonstrar a necessidade da colecistectomia em um paciente com mucocele biliar não diagnosticada pelo exame de ultrassonografia, mas que levou a realização da cirurgia pelo que não foi visibilizado.
Palavras-Chave: Colecistectomia; Bile; Lama Biliar.
1. INTRODUÇÃO
A vesícula biliar localiza-se no quadrante cranial direito do abdome, situada na fossa vesical aderida ao lobo quadrado e ao lobo medial direito do fígado, formada por corpo, fundo e colo que se liga pelo ducto cístico ao ducto biliar comum (SMALLE et al., 2015). Segundo Radlinsky (2021) a obstrução extra hepática é um processo que pode ocorrer por diversos fatores que levam a mudança no fluxo normal da bile, a combinação de alterações funcionais das células muco secretoras e a hiperplasia do epitélio desencadeiam a mucocele. A mucocele define-se pelo acúmulo anormal da bile ou pela maior viscosidade desta no interior da vesícula biliar levando a uma possível distensão da mesma (RIBEIRO et al., 2020). De acordo com Ward et al. (2020) algumas doenças endócrinas podem estar envolvidas na predisposição da mucocele biliar, tais como hiperadrenocorticismo e o hipotiroidismo. Foi relatado por Deusdado et al. (2023) em estudo retrospectivo que a mucocele em sua grande maioria pode estar associada com doenças endócrinas como hiperadrenocorticismo, hipotiroidismo e diabetes, quando comparado com pacientes sem essas comorbidades. As alterações na estrutura morfológica ou processos inflamatórios na vesícula biliar podem comprometer o fluxo de bile para o duodeno e consequentemente colestase; a exposição prolongada do epitélio da vesícula a ácidos biliares concentrados desempenha um papel importante na fisiopatologia de doenças do trato biliar (RAHMANI et al., 2015).
O exame de escolha é a ultrassonografia e tem sido o mais usual para o diagnóstico de mucocele biliar (PARKANZKY et al., 2019). De acordo com CREWS et al. (2009) os achados ultrassonográficos mais comuns identificados e que levam a suspeita de doença de vesícula biliar, incluem líquido peritonial, espessamento de parede e reação ecogênica na fossa biliar. Jaffey et al. (2022) descreveram que a mucocele é a combinação de fatores relacionados ao aumento da viscosidade do conteúdo biliar pela presença de detritos ecogênicos, com filamentos aderidos à parede, apresentando-se estático e com padrão tipicamente estrelado. Para Besso et al. (2000) os sinais clínicos da mucocele biliar podem ser bem variáveis, podendo o paciente apresentar êmese, perda de peso, depressão, febre, dores abdominais e icterícia em casos de obstrução de vias biliares.
2. RELATO DE CASO
Foi atendido na Clínica Veterinária Doutor Amicão, na cidade de Goiânia, um cão da raça Pastor Alemão, 11 anos, fértil, 42,5kg, com histórico de diarreia com presença de pequenos grânulos, semelhantes a borra de café, êmese e letargia.
Durante o atendimento clínico foi coletada amostra de sangue para exames laboratoriais, e por apresentar distensão abdominal e dor a palpação, foi solicitado ultrassonografia abdominal completa.
Os exames laboratoriais determinaram anemia normocítica normocrômica regenerativa, leucocitose por neutrofilia com desvio à esquerda; no perfil bioquímico os valores que se destacaram pela sua elevação foram de colesterol, triglicerídeos, alanina aminotransferase e fosfatase alcalina, o soro apresentava-se discretamente ictérico.
O exame ultrassonográfico visibilizou fígado dentro dos padrões de normalidade; vesícula biliar não visibilizada; esplenomegalia com contornos regulares e ecogenicidade e ecotextura mantidos, a avaliação das alças intestinais determinaram enteropatia; o pâncreas apresentava-se com dimensões aumentadas, com ecotextura heterogênea e ecogenicidade mista, sugerindo uma pancreatopatia; adrenais com dimensões e formato preservados; outros achados identificaram presença de estrutura cavitaria de conteúdo hipoecóico em região mesogástrica com medidas superiores a 12 centímetros, ocupando grande parte da cavidade abdominal, sugerindo um abscesso ou neoplasia (FIGURA 1).
Devido às alterações observadas nos exames realizados e principalmente pela não visualização da vesícula biliar, o que poderia sugerir ruptura; o paciente foi encaminhado para cirurgia de celiotomia exploratória.
FIGURA 1 – Estrutura em região mesogástrica
Fonte: Isabela Ribeiro Neves – Ultrassonografista
Foi realizado incisão pré retro umbilical, ao realizar a abertura da cavidade abdominal foi possível determinar que a estrutura cavitaria visibilizada era a vesícula biliar, que apresentava-se extremamente distendida com sua face ventral de coloração escurecida, sugerindo uma possível necrose incipiente de sua parede, devido a possibilidade de ruptura da mesma durante a manipulação, foi drenado o conteúdo da vesícula com o auxílio de uma seringa de 20ml conectada a uma torneira de três vias, e esta, a um equipo (FIGURA 2), o que possibilitou a coleta de todo o conteúdo em recipiente estéril.
FIGURA 2 – Drenagem da vesícula biliar.
Fonte: arquivo pessoal.
Após o esvaziamento da vesícula iniciou-se a colecistectomia, devido a grande distensão, não foi necessário realizar o descolamento da vesícula de sua fossa (FIGURA 3), uma dissecação com uma pinça Debakey foi necessária para melhor identificar o ducto cístico e evitar possível ligadura de ducto biliar comum ou colédoco, com auxílio de uma pinça hemostática fez-se a oclusão do ducto na base da vesícula e procedeu-se a ligadura do mesmo em duas regiões, com fio monofilamentar absorvível de Polidioxanona (PDX) número 2-0, a ressecção ocorreu entre as duas ligaduras e fez-se a retirada da vesícula, então pode-se avaliar cuidadosamente o abdome do paciente que estava visualmente dentro da normalidade; a celiorrafia foi então realizada.
FIGURA 3 – Vesícula biliar pós drenagem
Fonte: arquivo pessoal
Em avaliação macroscópica a vesícula biliar apresentava aproximadamente 20cm de comprimento e 10cm de largura (FIGURA 4), sendo coletado um volume de 850ml, uma amostra da parede foi encaminhada para exame histopatológico e o conteúdo líquido enviado para cultura e antibiograma.
FIGURA 4 – Vesícula biliar pós colecistectomia.
Fonte: arquivo pessoal
Doze horas após a cirurgia o paciente voltou a alimentar-se espontaneamente em pequenas quantidades e foi progredindo com o passar das horas, foi administrado metronidazol 15mg/kg duas vezes ao dia (BID), cloridrato de tramadol 4mg/dose BID, dipirona 25mg/dose BID e meloxicam 0,1mg/kg uma vez ao dia. A alta clínica ocorreu 48 horas após a cirurgia.
No exame de cultura não houve crescimento bacteriano e o histopatológico identificou espessamento da parede e hiperplasia de mucosa com presença de conteúdo mucoso e regiões de necrose isquêmica, caracterizando a mucocele biliar.
O paciente retornou para revisão e retirada de pontos no décimo segundo dia pós cirurgia e apresentava-se em excelente estado corporal, sem sinais de dor e alimentando-se normalmente.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Diferentemente do paciente apresentado nesse relato as mucoceles biliares são mais comuns em pacientes entre 6 10 anos e sobretudo nas raças pequenas e miniaturas como Spitz Alemão, Schnauzer Miniatura e Pastor de Shetlan, sem predisposição sexual (COGLIATI et al. 2023). Os sinais clínicos descritos não são específicos da mucocele biliar, o que é também descrito por Besso et al. (2000).
No nosso paciente a ultrassonografia não foi o exame pré operatório definitivo para o diagnóstico de mucocele biliar, devido à grande distensão da vesícula, mas contribui para tomada de decisão de celiotomia exploratória, por não ter sido visibilizada em seu leito, o que nos fez suspeitar em possível ruptura, para SMALLE et al. (2015) a ultrassonografia é um método diagnóstico fácil e definitivo da mucocele pois permite visibilizar o aspecto estrelado ou de kiwi, típico da patologia.
Ao se visibilizar a dimensão da vesícula biliar do paciente, tomada de decisão de sua retirada, ou seja, a realização da colecistectomia, foi a mais acertada no momento, e tem sido corroborada por Parkanzky et al. (2019).
4. CONCLUSÃO
Uma vesícula biliar saudável é fundamental para o armazenamento de bile produzida pelo fígado, mas alterações que possam ocorrer nesse órgão, podem desencadear desequilíbrios funcionais de outras estruturas e sintomas desconfortáveis ao paciente. Cada vez mais tem sido relatado por vários autores a presença de obstruções extra-hepáticas e seus efeitos deletérios. A mucocele biliar é uma alteração que necessita de intervenção cirúrgica no momento correto, e assim evitar maiores debilidades ao paciente.
5. REFERÊNCIAS
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1Médico Veterinário Mestre em Ciência Animal pela Universidade Federal de Goiás, UFG, fortesrm@gmail.com
2Docente do Curso Superior de Medicina Veterinária da Universidade de Rio Verde, UNIRV, Doutor pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, talesprado@yahoo.com.br