REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/th10249011515
Jaiene Nascimento Né
Orientador: Ivanildo Ferreira Alves
RESUMO
A violência de gênero, em suas diversas manifestações, constitui um grave problema social e um estigma que perpetua desigualdades e injustiças. Este trabalho apresenta uma revisão bibliográfica abrangente sobre como a violência de gênero é percebida e tratada como um estigma, explorando as repercussões dessa categorização para as vítimas e para a sociedade como um todo. Adotamos um referencial teórico-metodológico que integra estudos de gênero, sociologia e psicologia social, possibilitando uma análise multidisciplinar que destaca tanto a construção social do estigma quanto suas consequências individuais e coletivas. Através da análise de literatura acadêmica, relatórios de organizações não-governamentais e documentos institucionais, identificamos que o estigma associado à violência de gênero contribui significativamente para o silenciamento das vítimas, a perpetuação do ciclo de violência e a manutenção de estruturas de poder desiguais. Destacamos também que as políticas de intervenção frequentemente falham em abordar adequadamente as complexidades do estigma, o que pode reforçar a marginalização das vítimas. Os principais resultados apontam para a necessidade de abordagens mais holísticas e inclusivas nas políticas públicas, que considerem os aspectos socioculturais do estigma e promovam a conscientização e a educação para combater as raízes profundas da violência de gênero. Adicionalmente, enfatizamos a importância de estratégias de empoderamento das vítimas e de revisão dos quadros legais e institucionais para que sejam mais eficazes na proteção dos direitos e na promoção da justiça.
Palavras-chave: Violência de gênero; Estigma social; Políticas públicas; Empoderamento.
GENDER VIOLENCE AS A STIGMA:
A BIBLIOGRAPHICAL REVIEW
ABSTRACT
Gender-based violence, in its various manifestations, constitutes a serious social problem and a stigma that perpetuates inequalities and injustices. This work presents a comprehensive literature review on how gender-based violence is perceived and treated as a stigma, exploring the repercussions of this categorization for victims and society as a whole. We adopted a theoretical-methodological framework that integrates gender studies, sociology and social psychology, enabling a multidisciplinary analysis that highlights both the social construction of stigma and its individual and collective consequences. Through the analysis of academic literature, reports from non-governmental organizations and institutional documents, we identified that the stigma associated with gender-based violence contributes significantly to the silencing of victims, the perpetuation of the cycle of violence and the maintenance of unequal power structures. We also highlight that intervention policies often fail to adequately address the complexities of stigma, which can reinforce the marginalization of victims. The main results point to the need for more holistic and inclusive approaches in public policies, which consider the sociocultural aspects of stigma and promote awareness and education to combat the deep roots of gender-based violence. Additionally, we emphasize the importance of strategies to empower victims and review legal and institutional frameworks so that they are more effective in protecting rights and promoting justice.
Keywords: Gender-based violence; Social stigma; Public policy; Empowerment.
1 INTRODUÇÃO
A violência de gênero como um estigma é uma realidade complexa que permeia diversas sociedades ao redor do mundo, marcada por preconceitos e discriminações enraizados nas estruturas sociais. Este estigma não apenas agrava o sofrimento das vítimas, mas também cria barreiras significativas que impedem a busca por apoio e justiça. A estigmatização das vítimas de violência de gênero manifesta-se através de múltiplas dimensões, incluindo a culpabilização da vítima, a descrença nas suas narrativas e a minimização da gravidade dos atos de violência (Fernández et al., 2018). Essas manifestações do estigma contribuem para um ciclo de silêncio e invisibilidade que protege os agressores e perpetua a violência.
Para Cavalcanti e Oliveira (2017) o estigma associado à violência de gênero tem profundas implicações na saúde mental e física das vítimas. O medo de julgamento e a vergonha frequentemente dissuadem as vítimas de denunciar os abusos ou procurar ajuda médica e psicológica. Este isolamento exacerbado pelo estigma pode levar a consequências devastadoras, incluindo depressão, ansiedade e outros transtornos psicológicos. Além disso, a falta de apoio adequado e a hesitação em buscar ajuda podem resultar em danos físicos de longo prazo, perpetuando o sofrimento das vítimas.
As respostas institucionais à violência de gênero frequentemente refletem e reforçam o estigma existente na sociedade. A descrença e a trivialização das experiências das vítimas por parte das autoridades judiciais, policiais e de saúde contribuem para um sistema que muitas vezes falha em oferecer proteção e justiça. Esse cenário desencoraja ainda mais as vítimas de relatar a violência, alimentando a impunidade dos agressores e perpetuando a violência de gênero como um problema sistêmico (Cavalcanti; Oliveira, 2017).
A mídia desempenha um papel significativo na perpetuação do estigma contra as vítimas de violência de gênero. A representação sensacionalista ou estereotipada da violência de gênero na mídia pode contribuir para a normalização da violência e a estigmatização das vítimas. Tais representações midiáticas não apenas distorcem a realidade vivida pelas vítimas, mas também moldam a percepção pública sobre a violência de gênero, reforçando mitos nocivos e preconceitos (Lorente, 2020). Para combater o estigma associado à violência de gênero, é crucial promover a conscientização e a educação em todos os níveis da sociedade. Programas de educação que desafiam as normas de gênero prejudiciais e promovem a igualdade e o respeito podem desempenhar um papel fundamental na mudança das atitudes sociais. Além disso, a representação responsável da violência de gênero na mídia, que enfatize as histórias das vítimas sem reforçar estereótipos, é essencial para alterar a narrativa em torno deste tema. O problema de pesquisa adotado foi: como o estigma associado à violência de gênero influencia a percepção pública, a resposta institucional e a busca por apoio pelas vítimas, segundo a literatura existente?
O objetivo geral desta pesquisa é analisar, por meio de uma revisão bibliográfica abrangente, como o estigma associado à violência de gênero influencia a percepção pública, as respostas institucionais e a disposição das vítimas em buscar apoio. Já os objetivos específicos consistem em:
- Compreender as dinâmicas que contribuem para a perpetuação da violência baseada em gênero.
- Analisar as consequências do estigma associado à violência de gênero sobre as vítimas;
- Propor recomendações baseadas na literatura para o desenvolvimento de políticas públicas, programas de educação e sensibilização, e estratégias de intervenção.
A violência de gênero é uma problemática global que transcende fronteiras, culturas e classes sociais, manifestando-se através de diversas formas e afetando milhões de pessoas ao redor do mundo. A relevância de investigar essa temática é amplificada pelo reconhecimento da violência de gênero não apenas como um ato isolado de agressão, mas como um fenômeno enraizado em estruturas sociais e culturais que perpetuam a desigualdade e a discriminação. Nesse contexto, a revisão bibliográfica sobre a violência de gênero como um estigma se justifica pela necessidade de compreender as diversas facetas que contribuem para a perpetuação dessa violência, incluindo o papel do estigma na manutenção do silêncio e da invisibilidade das vítimas.
A construção da figura feminina e sua culpabilidade imposta
No período da Santa Inquisição, uma narrativa particularmente perniciosa floresceu sob o pretexto de combater a heresia e a bruxaria: a ideia de que mulheres, supostamente dotadas de poderes malignos, deveriam ser perseguidas, julgadas e frequentemente executadas. Esta caça às bruxas, amplamente justificada e teorizada pelo Martelo das Feiticeiras, escrito por Heinrich Kramer, desempenhou um papel central no silenciamento e na perseguição sistemática das mulheres. O livro argumentava que as mulheres eram mais suscetíveis à influência do diabo devido à sua suposta fraqueza física e moral, uma noção que refletia e reforçava as atitudes misóginas da época. Ao classificar práticas cotidianas e saberes tradicionais femininos como heresia ou bruxaria, a obra serviu como uma ferramenta eficaz para controlar e reprimir as mulheres, contribuindo para um legado de medo, opressão e violência (Freire et al., 2006).
A construção da figura da bruxa como uma mulher maligna que precisava ser caçada e eliminada foi uma narrativa conveniente que permitiu à Santa Inquisição justificar o controle social e político. Mulheres independentes, curandeiras, viúvas, ou simplesmente aquelas que não se encaixavam nos rígidos padrões sociais da época, poderiam ser facilmente acusadas de bruxaria. Esta acusação servia como uma poderosa ferramenta de silenciamento, eliminando vozes dissidentes e reforçando a autoridade da Igreja e do Estado. A acusação de bruxaria era, portanto, menos sobre a suposta prática de magia negra e mais sobre a manutenção do status quo, controlando as mulheres e assegurando que permanecessem submissas e marginalizadas (Freire et al., 2006).
A relevância da obra vai além do seu tempo, refletindo sobre como o silenciamento e a marginalização das mulheres persistem em diversas formas até hoje. A narrativa das bruxas necessitando ser caçadas ecoa nas modernas formas de opressão de gênero, onde mulheres ainda enfrentam discriminação, violência e silenciamento de suas vozes. O legado da caça às bruxas lembra a necessidade contínua de questionar as narrativas convenientes que buscam justificar a exclusão e a opressão, destacando a importância de reconhecer e combater as raízes históricas da desigualdade de gênero. Assim, a história das bruxas e o papel do “Martelo das Feiticeiras” oferecem uma lente crítica para examinar como o poder, o gênero e a autoridade interagem, moldando as sociedades passadas e presentes (Farias et al., 2022).
Entre os séculos XV e XVI, a crença de que Deus está no centro de tudo começou a se deteriorar, sendo substituída pela ideia de que o ser humano é centrado. Essa mudança de pensamento fez com que a arte, a ciência e a filosofia se separassem da teologia cristã, fazendo com que a Igreja Católica perdesse poder e influência. Na tentativa de recuperar o controle e o poder, a Igreja Católica iniciou os “Tribunais da Inquisição” (também conhecidos como “caça às bruxas”), que duraram até o século XIX (Farias et al., 2022).
A caça às bruxas ocorreu na Europa por mais de 400 anos, começando na década de 1450. Ocorreu principalmente nas áreas rurais da Europa e durou até por volta de 1700, quando começou o Iluminismo. Este período de tempo viu uma grande campanha liderada pela Igreja e pelo governo contra mulheres e meninas nas regiões rurais da Europa. A campanha teve conotações religiosas, políticas e sexuais, e muitas pessoas (aproximadamente 9 milhões) foram acusadas, julgadas e mortas durante esse período. Mais de 80% dos que morreram eram mulheres, incluindo meninas que nasceram nesse “mal” (Farias et al., 2022).
Na Idade Média, as bruxas eram mulheres que possuíam grande poder e influência em suas comunidades. Eram enfermeiras, parteiras e assistentes, e utilizavam ervas e plantas para curar doenças. Devido ao seu conhecimento de plantas medicinais, eles foram considerados perigosos e maléficos por muitas pessoas. Nos dicionários modernos, bruxa é definida como uma mulher feia e perigosa. Os livros infantis costumam contar histórias sobre fadas boas e bruxas más (Souza, 2015).
As pessoas e mulheres pobres não tinham outra opção de assistência médica além dessas mulheres. As mulheres aprenderam a ser parteiras umas com as outras e passaram seu conhecimento para suas filhas, suas vizinhas e até mesmo suas amigas. Eles foram originalmente chamados de médicos sem título, pois aprenderam o ofício um do outro, em vez de serem formalmente treinados (Souza, 2015).
A ideia de que as mulheres eram bruxas não surgiu aleatoriamente. A classe dominante aterrorizou as mulheres da população para criar uma atmosfera de histeria, de modo que muitas das mulheres acusadas acreditaram que eram realmente bruxas e fizeram um pacto com o diabo. Muitas das mulheres que eram consideradas bruxas tinham uma aparência desagradável ou tinham algum tipo de deficiência. Algumas eram idosas e mentalmente doentes, outras eram mulheres bonitas que haviam perturbado o ego dos superiores ou despertado desejos sexuais em homens que haviam jurado celibato ou já casados (Pereira, 2021).
A Igreja Católica tornou-se mais poderosa à medida que o patriarcado se estabeleceu. Muitos costumes que incluíam deusas e deuses eram considerados perigosos, e qualquer coisa que uma mulher fizesse sozinha era considerada pecaminosa. Em 1233, o Papa Gregório IX iniciou o Tribunal Católico conhecido como Inquisição ou Tribunal Católico Romano de Santo Ofício. Seu objetivo era parar hereges e práticas pagãs, que a igreja declarou oficialmente uma ameaça ao cristianismo em 1320. Na Europa, houve muitas guerras, revoltas camponesas, pragas e cruzadas neste período de tempo. O poder da igreja também estava perdendo sua estabilidade e se descentralizando. Junto com isso, houve uma caça às bruxas na Europa. Não foi difícil para a Igreja encontrar motivos para a perseguição às bruxas, porque a época estava cheia de mudanças sociais, e as pessoas procuravam alguém para culpar (Pereira, 2021).
Segundo Lopes (2020), a Igreja Católica usou o apoio do Estado para estabelecer tribunais, conhecidos como Tribunais da Inquisição ou Tribunais do Santo Ofício. Esses tribunais processavam, julgavam e puniam qualquer pessoa que pudesse representar uma ameaça às crenças cristãs. As penas incluíam prisão ou morte por queimadura. A Igreja Católica iniciou uma conhecida caça às bruxas em 1484, com a publicação de Malleus Maleficarum, mais conhecido como Martelo das Bruxas. Em seu livro, o escritor listou requisitos e provas necessárias para acusar e condenar uma bruxa. Em uma seção, ele disse que as mulheres deveriam ser consideradas mais seriamente nesse processo, porque elas são naturalmente mais propensas a serem bruxas.
As mulheres foram acusadas de delitos sexuais contra os homens, supostamente tendo se encontrado com o diabo em um pacto e se organizando em grupos para falar sobre seus problemas, compartilhar notícias ou aprender sobre ervas. O establishment médico masculino ficou zangado com essas mulheres porque elas usaram seu conhecimento para ajudar a curar doenças e outros problemas em suas aldeias. Acreditava-se que seus poderes mágicos causavam problemas físicos e espirituais na população, bem como desastres naturais. A Inquisição acabou sendo um bom método de se livrar de sua concorrência, tanto física quanto economicamente (Lopes, 2020).
Qualquer um pode ser acusado em um “tribunal de julgamento”. Os suspeitos, em sua maioria mulheres, foram presos e condenados até que se prove a inocência. Normalmente, eles não são mortos até que admitam ter uma conexão com o diabo. Os procedimentos de tortura são usados quando se busca provas de culpa ou confissão de culpa, como: raspar os cabelos em todo o corpo para procurar sinais de demônios, possivelmente verrugas ou sardas; imersão em água quente; tortura sobre rodas; esfaqueamento com agulhas; espancamentos violentos; estupro com objetos cortantes; decapitação de seios. O objetivo é torturar as vítimas até que assinem uma confissão preparada pelo interrogador. Geralmente, aqueles que permaneciam inocentes acabavam sendo queimados vivos. Aqueles que confessaram morreram mais misericordiosamente: foram estrangulados antes de serem queimados. Em alguns países, como Alemanha e França, a madeira verde é usada em fogueiras para prolongar o sofrimento das vítimas (Assis, 2020).
Como bem define Reis (2019), na Itália e na Espanha, as bruxas eram sempre queimadas vivas. As posições de caçador de bruxas e informantes são muito lucrativas financeiramente. Essas taxas são pagas pelo tribunal de acordo com a condenação, e a propriedade da pessoa condenada é totalmente perdida. O fim da “caça às bruxas” só aconteceu no século XVIII, e a última fogueira foi acesa na Suíça em 1782. No entanto, a lei da Igreja Católica que criou o “Tribunal” permaneceu em vigor até meados do século 20. A “caça às bruxas” é, sem dúvida, um processo bem organizado, financiado e realizado pela Igreja e pelo Estado.
A figura moderna da mulher, o trabalho e preconceitos antigos
A obra “Martelo das Feiticeiras” pode ser vista como um dos primeiros manuais sistematizados de perseguição à figura feminina, estabelecendo um paradigma de misoginia que se estendeu por séculos. Este documento histórico não apenas sancionou a caça às bruxas como uma forma de controle social sobre as mulheres, mas também solidificou estereótipos de gênero que persistem até os dias atuais, especialmente em espaços tradicionalmente dominados por homens, como o ambiente de trabalho. A conexão entre as práticas discriminatórias sancionadas pelo “Martelo das Feiticeiras” e a discriminação de gênero contemporânea no local de trabalho reside não apenas na perpetuação de estereótipos, mas também na manutenção de estruturas de poder que limitam as oportunidades e o reconhecimento das mulheres em diversas profissões.
No ambiente de trabalho moderno, a discriminação de gênero muitas vezes se manifesta através de práticas que ecoam a marginalização histórica das mulheres, refletindo-se em disparidades salariais, sub-representação em cargos de liderança e a prevalência de ambientes de trabalho hostis. Tal como a caça às bruxas visava controlar e reprimir a autonomia feminina através do medo e da punição, práticas discriminatórias no local de trabalho servem para perpetuar um status quo que desvaloriza as contribuições femininas e impede a plena participação das mulheres na força de trabalho. A persistência desses estereótipos e práticas discriminatórias não só prejudica a igualdade de gênero, mas também limita a diversidade e a inovação nos ambientes profissionais, enfraquecendo o potencial de crescimento e desenvolvimento econômico e social.
A discriminação de gênero no ambiente de trabalho privado constitui um obstáculo persistente para a igualdade, particularmente para mulheres que detêm responsabilidades familiares significativas. A prevalência dessa discriminação se manifesta de múltiplas formas, desde a fase de contratação até a progressão na carreira, afetando não apenas a estabilidade econômica das mulheres, mas também seu bem-estar psicológico e profissional. As raízes dessa discriminação estão profundamente enraizadas em estereótipos de gênero e expectativas sociais antiquadas, que pressupõem que as mulheres devem priorizar a família em detrimento de suas aspirações profissionais. Estereótipos de gênero funcionam como uma das principais barreiras à contratação de mulheres com responsabilidades familiares. Empregadores, muitas vezes guiados por preconceitos inconscientes, podem presumir que mulheres com filhos ou outros encargos familiares são menos comprometidas com suas carreiras (Godinho; Silveira, 2004). Esse pressuposto leva à exclusão de candidatas qualificadas, baseando-se na falaciosa correlação entre dedicação familiar e desempenho profissional. Tal discriminação não apenas limita o acesso das mulheres ao emprego, mas também contribui para a perpetuação de desigualdades de gênero no mercado de trabalho.
A expectativa de comprometimento com a família em contraposição ao trabalho emerge como outra dimensão significativa dessa problemática. Essa dualidade de expectativas coloca as mulheres em uma posição vulnerável, onde são constantemente obrigadas a provar sua dedicação ao trabalho. Mesmo quando são contratadas, mulheres com responsabilidades familiares enfrentam escrutínio e dúvidas acerca de sua capacidade para equilibrar com sucesso vida profissional e pessoal, um estigma raramente imposto aos homens em circunstâncias similares. A progressão de carreira é igualmente impactada por essa discriminação de gênero. Promoções e oportunidades de desenvolvimento profissional muitas vezes são negadas às mulheres com base na antecipação de que suas responsabilidades familiares limitarão sua disponibilidade ou comprometimento com o trabalho (Vilela et al., 2020). Esse tipo de preconceito não só desincentiva as mulheres a perseguirem seus objetivos profissionais, mas também limita as organizações em sua capacidade de se beneficiarem plenamente das habilidades e competências de sua força de trabalho feminina.
O desafio de equilibrar responsabilidades familiares com demandas profissionais é exacerbado pela falta de políticas de apoio nas organizações. Embora algumas empresas tenham começado a implementar medidas como horários flexíveis e trabalho remoto, a adoção dessas práticas ainda não é universal. A ausência de um suporte organizacional adequado para o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal não apenas perpetua a discriminação de gênero, mas também reforça a ideia de que as responsabilidades familiares são incompatíveis com o sucesso profissional. A segregação ocupacional por gênero contribui para a manutenção de disparidades no ambiente de trabalho privado (Bergano, 2015). Mulheres tendem a ser super-representadas em setores e posições considerados menos prestigiosos e com menor remuneração, muitas vezes aqueles que oferecem maior flexibilidade para lidar com responsabilidades familiares. Esse fenômeno, conhecido como o “teto de vidro”, impede as mulheres de acessar posições de alto nível, limitando seu potencial de renda e progressão de carreira.
A análise dos marcos legais e convenções internacionais relacionados à discriminação de gênero no ambiente de trabalho revela um esforço concertado para abordar as desigualdades enfrentadas por mulheres, especialmente aquelas com responsabilidades familiares. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979, estabelece um marco internacional para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres em todas as esferas da vida, incluindo o trabalho. Paralelamente, a Convenção de Belém do Pará, formalmente conhecida como Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher, enfatiza a necessidade de proteger as mulheres contra todas as formas de violência, o que indiretamente contribui para um ambiente de trabalho mais seguro e igualitário (Paulilo, 2009). Ao abordar a violência e a discriminação como obstáculos para a plena participação das mulheres na vida econômica e social, essa convenção reforça a importância de criar condições de trabalho que respeitem os direitos das mulheres.
Além disso, os Convênios 156 e 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) são fundamentais para a compreensão das normativas internacionais voltadas especificamente para os trabalhadores com responsabilidades familiares e para a eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho, respectivamente. O Convênio 156, adotado em 1981, foi pioneiro ao reconhecer a necessidade de equilibrar as responsabilidades familiares e profissionais, promovendo a igualdade de oportunidades e de tratamento para homens e mulheres trabalhadores. O Convênio 190, por sua vez, representa um avanço significativo ao estabelecer um marco global para combater a violência e o assédio, incluindo a violência de gênero, no trabalho (Marques et al., 2021). Esta convenção, adotada em 2019, reconhece explicitamente os direitos dos trabalhadores a um ambiente de trabalho livre de violência e assédio, contribuindo para a proteção das mulheres contra práticas discriminatórias que possam impedir sua participação e progresso no mercado de trabalho.
O impacto desses instrumentos internacionais na legislação e nas práticas de emprego no setor privado varia de acordo com o compromisso de cada país em implementá-los. Em muitos casos, a ratificação dessas convenções levou à revisão e à criação de leis nacionais que visam a proteger as mulheres da discriminação e da violência no trabalho, garantindo direitos iguais em termos de emprego e ocupação. Apesar desses avanços, a efetiva implementação dessas normas no setor privado enfrenta desafios significativos. A falta de conscientização e a resistência por parte de alguns empregadores em adaptar práticas de trabalho e políticas organizacionais para estar em conformidade com esses padrões internacionais são barreiras à realização plena dos direitos das mulheres no ambiente de trabalho (Marques et al., 2021).
Para superar essas barreiras, é crucial que haja um esforço contínuo por parte dos governos, organizações internacionais e sociedade civil para promover a educação e a conscientização sobre os direitos das mulheres e as obrigações legais dos empregadores. Isso inclui o fornecimento de recursos e o apoio necessários para as empresas implementarem práticas de trabalho que respeitem e promovam a igualdade de gênero. A monitorização e a avaliação regulares do impacto dessas convenções são essenciais para identificar progressos e desafios na promoção da igualdade de gênero no trabalho (Julião et al., 2021). Isso pode incluir a coleta de dados sobre a representação das mulheres em diferentes setores e níveis hierárquicos, bem como sobre a prevalência de discriminação e assédio baseados no gênero.
A promoção da igualdade de gênero no ambiente de trabalho constitui um desafio persistente para a sociedade contemporânea, exigindo a implementação de estratégias e políticas tanto em nível corporativo quanto governamental. Essas iniciativas visam não apenas combater a discriminação direta e indireta contra mulheres, especialmente aquelas com responsabilidades familiares, mas também criar um ambiente de trabalho mais inclusivo e equitativo. A necessidade de tais políticas é amplamente reconhecida, dada a persistência de desigualdades de gênero no mercado de trabalho, que limitam as oportunidades de emprego e progressão de carreira para mulheres (Julião et al., 2021).
Políticas corporativas que promovem a igualdade de gênero no trabalho incluem a implementação de práticas de recrutamento e promoção justas, que asseguram a igualdade de oportunidades para todos os candidatos, independentemente do gênero. Além disso, medidas como a realização de auditorias salariais regulares ajudam a identificar e corrigir disparidades de remuneração entre homens e mulheres, garantindo que todos recebam uma compensação justa pelo seu trabalho. Essas políticas não apenas promovem a justiça, mas também melhoram a satisfação e a retenção de funcionários, contribuindo para um ambiente de trabalho mais harmonioso e produtivo. No que tange às responsabilidades familiares, a flexibilidade de horário emerge como uma estratégia crucial para apoiar trabalhadores, particularmente mulheres que frequentemente assumem a maior parte do cuidado com filhos ou outros dependentes (Lunardi, 2021). A possibilidade de ajustar horários de trabalho para acomodar necessidades familiares sem prejudicar a carreira é uma medida que beneficia empregados e empregadores, promovendo um equilíbrio saudável entre vida profissional e pessoal.
A licença parental compartilhada representa outra política progressista, encorajando a divisão igualitária de responsabilidades de cuidado entre homens e mulheres. Ao oferecer a ambos os pais o direito de afastar-se do trabalho para cuidar de seus filhos, essa política desafia as normas tradicionais de gênero e promove uma maior igualdade na distribuição de tarefas familiares. Além disso, a licença parental compartilhada pode reduzir o impacto negativo da maternidade na carreira das mulheres, ao distribuir mais equitativamente as responsabilidades de cuidado. O apoio à creche no local de trabalho ou o subsídio para serviços de cuidados infantis externos é outra iniciativa eficaz para auxiliar pais e mães trabalhadores (Lunardi, 2021). Ao facilitar o acesso a cuidados infantis de qualidade, as empresas não apenas ajudam a aliviar uma significativa barreira à participação plena das mulheres no mercado de trabalho, mas também demonstram um compromisso com o bem-estar de seus funcionários e suas famílias.
Além das políticas corporativas, ações governamentais são fundamentais para promover a igualdade de gênero no trabalho. Legislações que proíbem a discriminação de gênero e garantem a igualdade de remuneração são essenciais, mas devem ser complementadas por políticas públicas que ofereçam suporte às necessidades familiares dos trabalhadores, como licenças parentais remuneradas e acesso a cuidados infantis acessíveis e de alta qualidade. A cooperação entre o setor privado e o governo é vital para o sucesso dessas iniciativas. Parcerias público-privadas podem ser particularmente eficazes na implementação de programas de apoio à creche ou no desenvolvimento de políticas de licença parental que beneficiem tanto os funcionários quanto as organizações. Além disso, incentivos governamentais para empresas que adotam práticas de igualdade de gênero podem estimular a adoção dessas políticas em todo o setor privado.
O compromisso com a diversidade e a inclusão deve ser um valor central das organizações, refletido em todas as suas políticas e práticas. Treinamentos sobre igualdade de gênero e sensibilização para questões de diversidade podem ajudar a criar uma cultura corporativa que valoriza e respeita as diferenças, promovendo um ambiente de trabalho mais inclusivo e igualitário. A avaliação e o monitoramento contínuos do impacto dessas políticas são cruciais para garantir sua eficácia. Isso inclui a coleta e análise de dados sobre a composição de gênero da força de trabalho, progressão de carreira, e satisfação dos funcionários (Lunardi, 2021). Essas informações podem ajudar as organizações a ajustar suas políticas conforme necessário, garantindo que elas atendam efetivamente às necessidades de todos os funcionários.
A integração da perspectiva de gênero no direito, especialmente em áreas como o direito ambiental e a saúde das mulheres, é crucial para abordar e mitigar as desigualdades históricas enfrentadas pelas mulheres. Esta necessidade é enfatizada através de uma análise profunda sobre como gênero e meio ambiente se intersectam, a importância dos direitos reprodutivos e não reprodutivos, e os desafios enfrentados pelas mulheres no acesso à saúde, especialmente em tempos de crise global, como a pandemia (Litterio, 2021). O enfoque na relação entre mulheres e meio ambiente revela uma ligação histórica negligenciada pelas estruturas patriarcais e tecnocráticas.
O ecofeminismo, por exemplo, destaca esta conexão e argumenta a favor de um papel mais ativo das mulheres na gestão ambiental, reconhecendo seu impacto positivo potencial. No tocante à saúde das mulheres, é fundamental desmontar a invisibilização histórica de suas escolhas reprodutivas e promover uma legislação que respeite e promova sua autonomia. A educação, a informação e o acesso a serviços de saúde reprodutiva são apontados como pilares para o exercício dessa autonomia (Litterio, 2021). Além disso, as crises sanitárias globais, como a pandemia de COVID-19, exacerbam as desigualdades de gênero, evidenciando a urgência em reforçar políticas públicas que protejam e promovam os direitos das mulheres em tais contextos.
O “Caso Freddo” (CNCivil, 2002), julgado pela Câmara Civil, destaca-se no âmbito do direito ao enfrentar uma questão de discriminação inversa, especificamente práticas discriminatórias contra mulheres na seleção de pessoal. A ação coletiva, movida pela Fundação Mujeres en Igualdad contra a empresa Freddo S.A., argumentou que a companhia favorecia a contratação de homens em detrimento das mulheres, uma prática que não foi adequadamente justificada pela empresa. A decisão de primeira instância, que havia rejeitado a ação de amparo, foi revogada em apelação, reconhecendo a existência de discriminação e impondo à Freddo S.A. a obrigação de contratar exclusivamente pessoal feminino até que se atingisse uma representação equitativa e razoável, refletindo uma abordagem ativa para corrigir desigualdades passadas.
Este caso ilustra a evolução do conceito de igualdade no direito, transitando da igualdade formal para uma noção de igualdade real e de oportunidades. A decisão enfatiza a importância de medidas de discriminação inversa ou ação afirmativa como instrumentos legítimos para corrigir desequilíbrios históricos, reforçando o compromisso constitucional e internacional do Estado argentino com a igualdade de gênero. Esse enfoque alinha-se com os princípios de tratados internacionais ratificados pela Argentina, que preveem a adoção de medidas especiais, temporárias, para acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres, especialmente em domínios como o emprego, onde as disparidades são mais evidentes.
O “Caso Freddo” ressalta a responsabilidade do judiciário na promoção e proteção dos direitos humanos, demonstrando como a interpretação e aplicação do direito podem contribuir para o avanço da igualdade de gênero. A sentença representa um marco importante na luta contra a discriminação de gênero no ambiente de trabalho, indicando que a liberdade de contratação empresarial encontra limites na necessidade de garantir a não discriminação e a igualdade de oportunidades para todos, independentemente do gênero. Este caso sublinha, portanto, a intersecção entre o direito ao trabalho, a proteção contra a discriminação e o direito de acesso a oportunidades iguais, fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e equitativa.
A exclusão de mulheres do mercado de trabalho com base em suas responsabilidades familiares representa uma violação flagrante dos princípios de igualdade de gênero e não discriminação, fundamentos estes consagrados em instrumentos internacionais como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Tais práticas discriminatórias não apenas perpetuam estereótipos de gênero prejudiciais, mas também privam a sociedade das contribuições valiosas que as mulheres podem oferecer ao ambiente de trabalho. Ademais, a discriminação laboral baseada em responsabilidades familiares contradiz diretamente os esforços globais para promover a igualdade de gênero, como evidenciado pelas disposições dos Convênios 156 e 190 da Organização Internacional do Trabalho, que visam proteger os trabalhadores com responsabilidades familiares e combater a violência e o assédio no trabalho, respectivamente.
O impacto dessa discriminação vai além das mulheres afetadas, repercutindo em suas famílias e na sociedade como um todo. A impossibilidade de conciliar a vida familiar com a profissional não apenas impede as mulheres de exercerem seus direitos ao trabalho e à igualdade, mas também contribui para a persistência da desigualdade econômica e social entre os gêneros. A marginalização de mulheres com responsabilidades familiares do mercado de trabalho reflete uma falha sistêmica em reconhecer e acomodar a realidade multifacetada das vidas das mulheres, negligenciando a necessidade de políticas de trabalho flexíveis que permitam a todos, independentemente do gênero, equilibrar eficazmente suas responsabilidades profissionais e familiares.
Portanto, é imperativo que governos e empregadores implementem políticas e práticas que estejam em conformidade com os princípios estabelecidos nas convenções e convênios internacionais mencionados, assegurando que as responsabilidades familiares não constituam um obstáculo para a empregabilidade das mulheres. Isso inclui a adoção de medidas como horários de trabalho flexíveis, licença parental compartilhada e acesso a serviços de cuidados infantis, além de um compromisso firme com a eliminação de todas as formas de discriminação e violência de gênero no ambiente de trabalho. Somente através de um esforço conjunto para abordar e erradicar essas práticas discriminatórias poderemos aspirar a um mercado de trabalho verdadeiramente inclusivo e equitativo, onde mulheres e homens possam contribuir igualmente, livres das amarras de estereótipos desatualizados e práticas injustas.
A violência contra mulher: uma questão além do gênero
A violência de gênero, manifestação cruel das desigualdades entre os gêneros, é profundamente enraizada em normas culturais e sociais que perpetuam o estigma contra as vítimas. O estudo das percepções e manifestações desse estigma revela como ele é intricadamente construído e mantido através de um espectro amplo de práticas e crenças sociais. Este fenômeno não se limita a um único contexto cultural ou social, mas é observado globalmente, influenciando a maneira como a violência de gênero é percebida, discutida e abordada pelas diversas camadas da sociedade (Rodrigues; Cantera, 2016).
A estigmatização das vítimas de violência de gênero ocorre quando preconceitos e estereótipos são perpetuados por meio de narrativas sociais e discursos mediáticos. Estes discursos frequentemente retratam as vítimas sob uma luz que minimiza suas experiências ou questiona sua credibilidade, contribuindo para um ambiente em que o relato de violência se torna ainda mais desafiador. As vítimas enfrentam não apenas a dor e o trauma físico e psicológico da violência, mas também a perspectiva de julgamento social e descrédito, que pode vir de familiares, amigos, autoridades e da sociedade em geral (Rodrigues; Cantera, 2016).
Segundo Catoia et al., (2020) os agressores, por outro lado, são influenciados pelo estigma associado à violência de gênero de maneiras que podem reforçar seus comportamentos violentos. Em muitas sociedades, normas de gênero tóxicas promovem uma masculinidade associada à dominação e controle, fazendo com que atos de violência sejam, erroneamente, vistos como expressões “normais” ou até aceitáveis de masculinidade. Este cenário dificulta a responsabilização dos agressores e a mudança de comportamentos, pois as estruturas sociais em que estão inseridos muitas vezes os apoiam, direta ou indiretamente.
A mídia desempenha um papel crucial na construção e perpetuação do estigma em torno da violência de gênero. A representação mediática frequentemente recorre a clichês e estereótipos que distorcem a realidade das vítimas, contribuindo para a normalização da violência e a estigmatização das pessoas afetadas. Estas representações não apenas moldam a percepção pública sobre o que constitui a violência de gênero, mas também influenciam as políticas públicas e as respostas institucionais à questão. Normas culturais e sociais fornecem o contexto no qual o estigma é gerado e perpetuado. Estas normas, muitas vezes, definem papéis de gênero rígidos e expectativas que limitam severamente a liberdade e a expressão individual (Catoia et al., 2020). Quando a violência é cometida, o estigma frequentemente se baseia nessas normas para justificar, desculpar ou minimizar a gravidade dos atos, culpabilizando a vítima pelas ações do agressor.
A resposta da sociedade à violência de gênero, influenciada pelo estigma, varia significativamente. Em alguns contextos, pode haver um silêncio coletivo ou negação da gravidade do problema, enquanto em outros, movimentos sociais e campanhas de conscientização buscam combater o estigma e promover a igualdade de gênero. Essa variação reflete a complexidade das dinâmicas sociais em jogo e a importância de abordagens contextualizadas no combate à violência de gênero. O reconhecimento e a desestigmatização da violência de gênero requerem uma mudança fundamental na maneira como as sociedades compreendem e tratam as questões de gênero. Educação e sensibilização são ferramentas essenciais nesta luta, visando desmantelar estereótipos prejudiciais e promover uma cultura de respeito e igualdade (Oliveira et al., 2016). Isso inclui desafiar e transformar as narrativas dominantes que perpetuam o estigma contra as vítimas.
A participação ativa e o envolvimento dos homens na luta contra a violência de gênero são cruciais para alterar as normas de gênero prejudiciais e promover modelos masculinos positivos. Reconhecendo os homens não apenas como potenciais agressores, mas como aliados essenciais na promoção da igualdade de gênero, é possível trabalhar em direção a uma mudança social significativa que beneficie todos os membros da sociedade. A análise crítica das respostas institucionais à violência de gênero revela frequentemente uma lacuna entre a legislação existente e sua implementação efetiva. O estigma pode influenciar negativamente a disposição das autoridades em levar a sério as denúncias de violência, resultando em um ciclo de impunidade e desconfiança no sistema de justiça (Oliveira et al., 2016). Portanto, é imperativo que as instituições sejam treinadas e equipadas para responder de maneira sensível e sem preconceitos às necessidades das vítimas.
Para Brilhante et al., (2016) a violência de gênero e o subsequente estigma enfrentado pelas vítimas constituem barreiras significativas não apenas no acesso à justiça, mas também nos esforços de recuperação e reintegração social. Este estigma, muitas vezes enraizado em normas culturais e preconceitos sociais, pode levar a consequências devastadoras para as vítimas, afetando profundamente sua saúde mental e física. A desvalorização e a descrença em suas experiências contribuem para um ambiente em que a busca por ajuda se torna excepcionalmente desafiadora.
O impacto do estigma na saúde mental das vítimas é uma área que requer atenção especial. O medo de não ser acreditado, juntamente com o estigma associado à violência de gênero, pode resultar em sentimentos de isolamento, depressão, ansiedade e até transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Essas condições exacerbam o trauma inicial vivido pela vítima, criando um ciclo de sofrimento que pode ser difícil de interromper sem o apoio adequado. Além dos efeitos na saúde mental, o estigma também tem implicações significativas para a saúde física das vítimas. A hesitação em buscar cuidados médicos ou reportar a violência pode resultar em ferimentos não tratados ou no agravamento de condições de saúde existentes (Brilhante et al., 2016). A falta de intervenção médica imediata não apenas prejudica a recuperação física, mas também pode ter implicações de longo prazo na saúde geral da vítima.
A relação entre o estigma e a subnotificação da violência de gênero é um aspecto crucial dessa discussão. O medo da estigmatização e a descrença potencial por parte das autoridades desencorajam muitas vítimas de relatar suas experiências, contribuindo para a prevalência subestimada da violência de gênero. Essa subnotificação é um obstáculo significativo para a compreensão plena da escala do problema e, por consequência, para o desenvolvimento de políticas públicas e serviços de apoio eficazes. A hesitação das vítimas em procurar ajuda é compreensivelmente agravada pelo medo de retraumatização nas mãos das autoridades ou pela descrença da sociedade (Barufaldi et al., 2017). Essa desconfiança nos sistemas de apoio e justiça não apenas impede o acesso à recuperação e à justiça, mas também reforça o isolamento das vítimas e a percepção de impunidade dos agressores.
As lacunas nos serviços de apoio existentes são uma consequência direta das barreiras impostas pelo estigma. Muitos serviços não estão equipados para abordar as necessidades específicas das vítimas de violência de gênero, faltando sensibilidade ou compreensão das complexidades envolvidas. Isso inclui desde a falta de treinamento de profissionais até a insuficiência de recursos destinados a programas de apoio psicológico e reabilitação. A deficiência nas respostas institucionais à violência de gênero reflete uma necessidade urgente de melhorias nos sistemas de apoio. Uma abordagem mais holística e integrada, que leve em conta as nuances do estigma e suas repercussões nas vítimas, é crucial para a criação de um ambiente mais acolhedor e eficaz no combate à violência de gênero (Barufaldi et al., 2017).
Identificar as necessidades insatisfeitas das vítimas é um passo fundamental para orientar as melhorias nos serviços e políticas públicas. Isso exige um compromisso contínuo com a pesquisa e a consulta às próprias vítimas, garantindo que suas vozes sejam ouvidas e que suas experiências informem o desenvolvimento de estratégias de apoio mais eficientes e compassivas. O desafio de superar o estigma associado à violência de gênero e melhorar os serviços de apoio exige uma mudança cultural profunda. Esta mudança deve promover a empatia, o respeito e o entendimento pelas experiências das vítimas, desafiando as normas sociais e as atitudes que perpetuam a violência e o estigma (Vigano; Laffin, 2019). Somente através de um esforço coletivo e multidisciplinar será possível criar uma sociedade na qual a violência de gênero não seja apenas inaceitável, mas ativamente combatida em todas as frentes.
Por fim, é essencial que as políticas públicas e os programas de intervenção sejam informados por uma compreensão abrangente das dinâmicas de estigma que cercam a violência de gênero. Isso envolve não apenas o reconhecimento das consequências devastadoras do estigma para as vítimas, mas também um compromisso com a eliminação das barreiras que impedem o acesso ao apoio e à justiça (Vigano; Laffin, 2019). Ao abordar essas questões complexas com sensibilidade e determinação, podemos aspirar a um futuro onde a violência de gênero e o estigma que a acompanha sejam erradicados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A revisão bibliográfica realizada neste estudo demonstra claramente que a violência de gênero, além de ser um ato de agressão brutal, carrega um estigma social profundamente enraizado que afeta não apenas as vítimas, mas também as dinâmicas sociais mais amplas. Este estigma contribui para a perpetuação da violência e impede a eficácia das intervenções, mantendo as vítimas em ciclos de silêncio e sofrimento. A compreensão deste fenômeno como estigmatizante revela não só as falhas nas políticas públicas existentes, mas também destaca a urgente necessidade de abordagens que considerem as complexidades psicossociais e culturais envolvidas.
Conclui-se que é crucial desenvolver estratégias que vão além da resposta jurídica e penal, promovendo programas de educação e conscientização que visem desmontar os preconceitos e a discriminação que sustentam o estigma em torno da violência de gênero. Além disso, a adoção de políticas que fomentem o empoderamento das vítimas e a reestruturação de serviços de apoio são fundamentais para garantir que as vítimas recebam a ajuda necessária sem o medo de serem estigmatizadas.
É também necessário enfatizar o papel da mídia e das plataformas digitais na modelagem das percepções públicas sobre a violência de gênero. A representação responsável e ética nas mídias pode desempenhar um papel crucial na redução do estigma, educando o público e mudando as narrativas prejudiciais que cercam as vítimas. Dessa forma, campanhas de sensibilização e colaboração com criadores de conteúdo e influenciadores digitais podem amplificar as vozes das vítimas e promover uma mudança cultural sustentável.
É fundamental incentivar a pesquisa e o desenvolvimento de novas teorias e metodologias que abordem as nuances da violência de gênero como um estigma. A academia tem um papel vital na criação de conhecimento que não apenas ilumina as diversas facetas dessa questão complexa, mas também orienta a formulação de políticas e práticas mais eficazes. Com a colaboração contínua entre pesquisadores, formuladores de políticas e ativistas, pode-se aspirar a um futuro onde a violência de gênero seja destituída de seu poder estigmatizante e suas vítimas totalmente reabilitadas e reintegradas à sociedade.
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