O MANEJO DO LUTO POR PERDAS EM DECORRÊNCIA  DE DESASTRES NATURAIS

THE MANAGEMENT OF MOURNING FOR LOSSES RESULTING FROM NATURAL DISASTERS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249231057


Margarete Almeida 1
Willian Rosa 2
Or. Sandra Mara Dias Pedroso 3


Resumo: Este artigo teve por objetivo realizar a apresentação de um levantamento bibliográfico acerca do manejo do luto em desastres naturais, suas implicações e o papel do psicólogo nesse contexto, onde se destaca que o luto vai além da morte e inclui outras perdas significativas, sendo que desastres naturais geram perdas materiais e emocionais, complicando o processo de luto. A partir do levantamento sistemático de dados, por meio de revisão bibliográfica, observou-se que os autores concordam que a intervenção do psicólogo desempenha um papel essencial na promoção do bem-estar emocional e na facilitação da recuperação e reconstrução das comunidades afetadas por desastres naturais, bem como nas implicações e complicadores do processo do luto nestas condições, sendo o manejo do luto em decorrência de desastres naturais uma demanda extremamente complexa e que requer muito acolhimento e preparo, bem como respeito a subjetividade e empatia.

Palavras-chave: Desastre natural, Luto, Psicólogo, Perdas.

Abstract: This article aimed to present a bibliographic survey on the management of grief in natural disasters, its implications and the role of the psychologist in this context, which highlights that grief goes beyond death and includes other significant losses, with disasters Natural resources generate material and emotional losses, complicating the struggle process. From the systematic data collection, through a bibliographical review, it was suggested that the authors agree that the psychologist’s intervention plays an essential role in promoting emotional well-being and facilitating the recovery and destruction of communities affected by natural disasters, as well as the implications and complications of the grieving process in these conditions, withthe management of grief as a result of natural disasters being an extremely complex demand that requires a lot of acceptance and preparation, as well as respect for subjectivity and empathy.

Keywords: Natural disaster, Grief, Psychologist, Loss.

1  INTRODUÇÃO

As catástrofes naturais frequentemente geram perdas na vida dos indivíduos por elas atingidas, dentre as quais se pode categorizar como perda de vidas, de propriedades e de meios de subsistência, o que gera um impacto psicológico significativo. Os indivíduos que sofrem tais perdas passam por um processo de luto – que sofre influência de variáveis como nível de apoio, tamanho da parda, grau de importância do objeto de perda e questões psíquicas -, o qual pode ser elaborado com facilidade e dinamismo ou não, sendo de suma importância ao profissional de saúde mental e aos profissionais que prestarão o auxílio necessário a comunidade atingida, conhecer os impactos dessas perdas e os desafios encontrados para lidar com esse sofrimento, visto que compreender essas experiências pode facilitar o desenvolvimento de estratégias de apoio eficazes.

Como se dá a atuação do psicólogo e o manejo do luto por perdas em desastres naturais?

Objetivou-se com este estudo avaliar o manejo do luto mediante perdas em decorrência de desastres naturais. Para tal, investigou-se as manifestações emocionais e psicológicas associadas à vivência do luto em indivíduos afetados por desastres naturais; analisou-se os mecanismos de enfrentamento adotados frente ao luto; identificou-se os desafios encontrados por profissionais no atendimento de populações afetadas por desastres naturais e por fim, avaliou-se a importância das intervenções com pessoas enlutadas devido a desastres naturais.

2  FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Tanto no âmbito social quanto no âmbito científico, há uma crescente preocupação em relação aos impactos dos desastres naturais.

De acordo com Torlai (2022, p.24), os desastres implicam elevados danos, tanto materiais quanto psíquicos, para a população atingida. Afetam padrões de vida das comunidades e suas redes de apoio psicossocial, colocando em risco a capacidade de enfrentamento individual e coletivo.

 Para melhor entendimento sobre o tema busca-se o apoio da psicologia.  A Psicologia das Emergências e Desastres, estacada para este momento, por sua vez, encontra-se envolvida em diversas esferas de atuação do psicólogo, estudando os impactos psicológicos nos indivíduos e grupos, bem como no trabalho de prevenção e no auxilio às vítimas diretas e indiretas, de modo a reconstruir suas vidas no pósdesastre (Fávero e Diesel, 2008).

Neste estudo o núcleo utilizado para compreender a vivência da pessoa envolvida em uma situação de desastre natural foi o luto, que é entendido como uma reação normal e esperada para o rompimento de vínculos e que tem como função proporcionar a reconstrução de recursos e viabilizar o processo de adaptação às mudanças ocorridas em consequência do desastre (Franco, 2002).

A dor da perda é um campo de amplo estudo pela psicologia, evidenciada em publicações de grandes autores como Sigmund Freud. Para este autor, o luto é um processo lento e doloroso, que tem como características uma tristeza profunda, afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre o objeto perdido, a perda de interesse no mundo externo e a incapacidade de substituição com a adoção de um novo objeto de amor (Freud, 1915). O sofrimento que uma perda gera é conhecido como “luto”, o qual não se refere apenas a perda de uma vida humana, como popularmente se acredita, mas a perdas vividas durante todo o decorrer da vida de cada indivíduo, como explica também Ramos (2016) ao afirmar que quando há um término de uma relação amorosa, a perda de um membro ou de um animal de estimação. Fala-se igualmente de luto, sendo essas e outras situações, exemplos de perdas, na qual o indivíduo necessita de tempo para elaborar e se adequar a uma vida sem o objeto perdido.

Com isso, entende-se que as perdas decorrentes de desastres naturais geram também um processo de luto, muitas vezes agravados pela situação traumática vivenciada, sendo o processo de luto “bastante complexo na medida em que cada pessoa o vivencia de forma diferente, mediante as culturas, o meio em que está inserida e o próprio contexto da perda” (Ramos, 2016).  Com isso, o presente trabalho se dispõe a investigar e descrever como se dá o manejo do luto por perdas em desastres naturais, visto que catástrofes naturais frequentemente geram perdas na vida dos indivíduos por elas atingidas, dentre as quais se pode categorizar como perda de vidas, de propriedades e de meios de subsistência, o que gera um impacto psicológico significativo.

Os indivíduos que sofrem tais perdas passam por um processo de luto – que sofre influência de variáveis como nível de apoio, tamanho da perda, grau de importância do objeto de perda e questões psíquicas -, o qual pode ser elaborado com facilidade e dinamismo ou não, sendo de suma importância ao profissional de saúde mental e aos profissionais que prestarão o auxílio necessário a comunidade atingida, conhecer os impactos dessas perdas e os desafios encontrados para lidar com esse sofrimento, visto que compreender essas experiências pode facilitar o desenvolvimento de estratégias de apoio eficazes.

De acordo com Franco (2005), ninguém fica imune ao impacto de uma crise, mas cada pessoa a enfrentará com seus recursos, mesmo que em circunstâncias semelhantes. A autora define trauma como uma ruptura no tecido vivo, causado por um agente externo, como resultado de uma cirurgia, um ato violento, um desastre. Geralmente leva a um estado de crise, que pode ser definido como um período de desequilíbrio psicológico, resultante de um evento ou situação danosa, assim constituindo um problema significativo que não pode ser resolvido com estratégias de enfrentamento conhecidas.

O estudo do luto nesse contexto contribui para a psicologia ao ponto que ao se conhecer a vivência do luto, podem-se elaborar projetos de intervenção capazes de minimizar o sofrimento do indivíduo enlutado, bem como, em conjunto a uma equipe multidisciplinar, pode-se contribuir na promoção de resiliência e readaptação nas comunidades e promoção de políticas públicas que amparem a população atingida, especialmente em âmbito de apoio psicológico.

Diante dos limites da pesquisa de campo optou-se por um estudo de revisão bibligráfica.

3  METODOLOGIA

Para a concretização do presente trabalho foi realizada uma revisão bibliográfica a fim de compreender como se dá a vivência do luto mediante perdas em decorrência de desastres naturais, visto que a humanidade presenciou tais ocorrências desde seus primórdios, estando elas cada vez mais frequentes no presente. Realizou-se, então, uma busca ativa por artigos que contemplassem o tema em bases como Google Acadêmico, Repositório Universitário da Ânima (RUNA), Repositório PUCSP, Biblioteca Virtual em Saúde e SciELO.

A escolha dos artigos referentes à pesquisa seguiu uma sequência de etapas. Inicialmente foi realizada uma busca sobre a produção do conhecimento referente ao luto, tendo como objetivo identificar as concepções sobre o luto em decorrência de catástrofes naturais, seu conceito e seu manejo, em geral, e a atuação do psicólogo neste contexto. Nesta busca inicial, consideraram-se os títulos e os resumos dos artigos para a seleção, utilizando-se como descritores: “luto”,

“psicólogo” e “desastres naturais”. Em seguida, realizou-se uma busca mais centrada na atuação do psicólogo no contexto de desastres naturais. 

Em seguida, realizou-se uma leitura exploratória, seguida pela inclusão e exclusão de artigos conforme os objetivos gerais e específicos da pesquisa. Considerou-se como critérios de exclusão (I) a abordagem do luto, (II) a atuação do psicólogo no contexto de luto em decorrência de desastres e o (III) ano de publicação. Encontrou-se 18 artigos e 2 livros sobre o tema, sendo excluídos de acordo com os critérios de exclusão. Dentre os 18 artigos separou-se 13 e 1 livro, sendo subdividido em temas para a ocorrência da análise e discussão. Posteriormente, efetuou-se uma leitura crítica e de interpretação dos artigos selecionados, para enfim, elaborar a redação do estudo.

Os treze artigos selecionados para a  revisão abordam o processo do luto por desastres naturais e a atuação do psicólogo nesse contexto. Estes correspondem a  periodicidade entre os anos de 2011 e 2021. Tais artigos foram dispostos, no Quadro 1, a seguir:

Quadro 1- Material de Análise
ANOTÍTULOAUTOR
2011Luto e perdas repentinas: Contribuições da Terapia Cognitivo-Comportamental.Basso, Lissia Ana; Wainer, Ricardo.
2012Crises e desastres: a resposta psicológica diante do luto.   
Franco, Maria Helena Pereira.
2012Desastres naturais: Perdas e reações psicológicas de vítimas de enchentes em Teresina-PI.Gomes, Erika Ravena Batista; Cavalcante, Ana Célia Sousa.
2013O papel dos psicólogos em situações de emergências e desastres.Trindade, Melina Carvalho; Serpa, Monise Gomes.
2013A atuação da psicologia em desastres e emergências: uma visão estratégica.     
Souza,    Neyde    Lúcia    de Freitas.
2015A intervenção psicológica em emergências: Fundamentos para a prática.Franco, Maria Helena Pereira.
2016Luto em situações de morte inesperada.Carnaúba, Raquel Arruda. Pelizzari, Cláudia Camargo Arthou Sant’Anna. Cunha, Samai Alcira.
2016O processo de luto.Ramos, Vera Alexandra Barbosa.

Fonte: Almeida, 2024.

Quadro 1- Material de Análise
2018Desastres naturais: Aspectos psicológicos e transtorno de estresse pós-traumático oriundos de uma inundação.Leite, Maiara Lurdes; Sttefens, Sandro Rodrigo.
2020A atuação do psicólogo no contexto de emergências e desastres.           
Galindo, Cristiane Maciel dos Santos; Almeida, Isabela Fernanda Mendes de; Luiz, George Moraes de.
2020A vivência do luto no contexto de desastres e emergências. Garcia, Isabela Pereira; Faria, Hila Martins Campos.
2020Saúde mental das pessoas em situação de desastre natural sob a ótica dos trabalhadores envolvidos.Rafaloski, Alessandra Rossoni; Zeferino, Maria Terezinha; Forgearini, Bárbara Aparecida; Oliveira; Fernandes, Gisele Cristina Manfrini; Menegon, Fabrício Augusto.
2021Emergências e desastres: Atuação de psicólogos(as) de orientação clínica em Santarém/PA.Barros, Eloísa Amorim de; Sousa, Mylena Socorro Corrêa de;  Campos, Taynara da Silva.

Fonte: Almeida, 2024.

Os trabalhos apresentados e utilizados para a discussão e análise qualitativa  trazem temas relacionados ao manejo do luto em situação de desastres naturais, suas implicações, a atuação do psicólogo nesse contexto. Os selecionados abordam a presente temática e enfatizam o papel do psicólogo frente a esse contexto, enfatizando-se também os desafios encontrados e necessidades ainda existentes para o manejo do luto em condições de vulnerabilidade decorrida de desastres.

De acordo com Garcia e Faria (2020), o luto é “o processo advindo do rompimento de um vínculo significativo, sendo habituais os sentimentos de tristeza, raiva, reações de choque, negação e isolamento social”, sendo, além de um estado pessoal de profunda angústia, um fenômeno associado a uma grande variedade de perturbações psicológicas e somáticas, conforme afirma Angel (1961) trazido por Ramos (2016), sendo um processo decorrente do rompimento de um vínculo significativo, seja com entes queridos ou por perdas materiais ou sociais. Popularmente, entende-se que o conceito de luto está apenas associado à morte de entes, mas, embora a englobe, fala-se igualmente de luto quando se há o término de um relacionamento amoroso, uma amputação, a morte de um animal de estimação ou a perda de um emprego, visto que para essas e outras inúmeras situações há a quebra, muitas vezes abrupta, de vínculos significativos para o indivíduo.

Diante disto, o luto vem a ser natural na vida de todo ser humano, sendo classificado como “luto normal” quando o indivíduo consegue processá-lo sem grandes complicações, ou seja, quando numa primeira fase o sujeito experiencia os sentimentos de choque, descrença e negação, passa por um período de desconforto somático e emocional, e depois existe um período de reconstituição, onde ele consegue se adaptar a falta do ente ou objeto significativo perdido, adaptando-se a uma nova rotina funcional, sem grandes prejuízos.

Entretanto, a normalidade é definida pela duração do processo de luto e da intensidade de seus sintomas, visto que quando a saudade persistente do falecido, o intenso pesar e dor emocional em resposta à morte e/ou a preocupação com o falecido e/ou com as circunstâncias da morte é experimentado em um grau clinicamente significativo na maioria dos dias e persistiu por pelo menos 12 meses, bem como outros sintomas persistentes e intensos, podem configurar um quadro de Luto Complexo Persistente, de acordo com o Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM-V), sendo mais relacionado com a intensidade e duração das reações (Horowitz apud Ramos, 2016). Ramos (2016), em seu estudo, cita a definição de luto patológicos de Horowitz (1980), a qual diz que este é uma “intensificação do luto a um nível em que a pessoa se encontra destroçada, originando um comportamento não adaptativo face à perda, permanecendo interminavelmente numa única fase, impedindo a sua progressão com vista à finalização do processo de luto”.

Bowlby, conforme explica Ramos, delineou quatro estágios pelos quais um indivíduo supostamente atravessa para reconhecer a perda do vínculo e completar o processo de recuperação do luto, sendo o que (I) primeiro estágio é o choque, no qual o indivíduo ainda não reconhece a perda, seguindo-se para o (II) estágio de protesto, no qual o indivíduo busca e anseia pelo objeto de perda. O (III) terceiro estágio é o desespero, onde o indivíduo percebe que a perda é irreversível, seguido do (IV) quarto estágio que é a aceitação, quando o indivíduo se ajusta à perda e começa a retomar suas atividades normais. Onde a autora afirma que existem duas forças opostas sendo vivenciadas pelo indivíduo enlutado, sendo essas a necessidade de manter a proximidade com o ente perdido e a necessidade de desvincular-se para investir em outros vínculos.

Entretanto, algumas condições e contextos podem agravar o processo de luto e dificultar sua elaboração, contribuindo para o surgimento do transtorno de Luto Complexo Persistente, sendo um dos contextos onde o luto está muito presente e tem grandes chances de ser agravado, o contexto de desastres naturais.

Desastre é definido por Franco (2012) como uma séria ruptura no funcionamento de uma comunidade ou sociedade, causando sérias perdas: humanas, materiais, ambientais ou econômicas.  Estas extrapolam a habilidade dos afetados em utilizar seus recursos de enfrentamento. Franco acrescenta ainda  que , “um desastre ocorre como resultado de um processo de risco” (p. 55)

Ressalta-se que desastre difere de emergência, visto que, como explica Garcia e Faria (2020), frente a uma emergência, dispõe-se de recursos e ferramentas para lidar com a situação. Contudo, quando as estratégias disponíveis não são suficientes ou não podem ser implementadas em uma determinada situação, ocorre o que é considerado um desastre, tendo este capacidade de ultrapassar os recursos de enfrentamento da comunidade afetada.

Com isso, entende-se que os efeitos de desastres, sejam naturais ou provocados pelo homem, resultam em danos humanos, materiais e/ou ambientais, gerando prejuízos econômicos e sociais, que resultam em processos de luto, visto que além das perdas por morte, enfrenta-se outros tipos de perda, como a da identidade, confiança, dignidade, mutilações físicas, animais, projetos de vida, bens materiais, entre outros, abrangendo as dimensões social, familiar, econômica e política, sendo, nestes casos, a capacidade de enfrentamento adquirida ao longo da vida insuficiente (Garcia e Faria, 2020).

Em desastres naturais, há uma ruptura intensa e de muito sofrimento na vida das vítimas, que se encontram frente a perdas totalmente inesperadas, inclusive de mortes inesperadas. Carnaúba et. al. (2016) afirma que “as mortes inesperadas acontecem sem nenhum sinal ou aviso prévio, assim o choque do enlutado, ao receber a notícia, tende a ser maior”, com potencialidade de desorganização, paralisação e impotência na vida do indivíduo enlutado, sendo um risco especial para a saúde mental, mesmo na ausência de vulnerabilidade, conforme relato os autores.

Carnaúba et. al. (2016) relatam, através de estudos realizados, que “os enlutados que não esperavam e não estavam preparados para a morte eram claramente mais perturbados do ponto de vista emocional”, os quais se percebiam sozinhos, ansiosos, deprimidos e sentiam continuamente a presença do falecido, bem como se percebe muitas autoacusações, mais choro, sentimento de entorpecimento e de saudade do ente falecido.

O contexto de desastres naturais, contudo, engloba agravantes no processo de luto, como não encontrar o corpo, não poder velar, sofrer múltiplas perdas, tipo de morte, exposição à mídia, falta de suporte, corpos desfigurados, ausência de corpo, impossibilidade de rituais como velório e enterro, entre outros, possibilitando-se o desencadeamento de um quadro de luto complicado (Garcia e Faria, 2020). Quando há mutilação do corpo do ente perdido, costuma ser um fator agravante, acarretando revolta e desespero, influenciando-se grandemente nas memórias e lembranças, as quais se tornam aflitivas e impedem o surgimento de lembranças felizes, interferindo diretamente no trabalho do luto.

Parkes (1998, apud Carnaúba, 2016) afirma que a morte física não ocorre simultaneamente à morte social para os que ficam, cujo processo leva tempo e, em situações traumáticas, pode gerar dificuldades no processo de luto, bem como um medo catastrófico diante de outras ameaças de perdas. Com isso, revela-se a importância de rituais de despedidas, onde ocorre, muitas vezes, a percepção da morte social, e tem o poder, de acordo com Walsh (1998, apud Carnaúba, 2016), de marcar o desenvolvimento e a mudança dos enlutados, bem como oferecer uma oportunidade para homenagear e se conectar o morto, sendo muito importantes para a reestruturação e fortalecimento dos enlutados, o que também vem a ser prejudicado no contexto estudado, visto que ocorre muito a falta de um corpo para ser velado ou a presença apenas parcial dele, o que dificulta também a concretização da perda. Garcia e Faria afirmam que “as crenças religiosas/espirituais influenciam na maneira de lidar com a perda, podendo favorecer uma maior aceitação do processo, trazendo algum conforto ao enlutado que acredita em um propósito para a existência e partida de seu ente querido” Outros agravantes no processo de luto, neste contexto, conforme observou Franco (2012) em seu estudo, podem ser morar por longos períodos em abrigos provisórios, estar sem perspectiva de retorno a uma situação com alguma previsibilidade, perder a conexão com a terra e com o local que garantia identidade, lembranças involuntárias, recorrentes e intrusivas do evento traumático, entre outros aspectos.

Franco, ao abordar os rituais de despedida em meio a desastres, também fala, convergentemente aos demais autores do tema, que a ausência de rituais dificulta a conclusão da despedida, impedindo que a expressão de agradecimentos e questões relevantes seja feita. Ela diz que isso também impossibilita a resolução de questões pendentes  no  relacionamento  com  o  falecido,  prejudicando  o enfrentamento e a elaboração da perda, bem como a materialização da morte torna- se mais difícil e, mesmo que a dor seja intensa, sua validação e reconhecimento social são dificultados, o que pode resultar em consequências significativas para o enlutado. A impossibilidade de realizar os rituais fúnebres, como em alguns casos de desastres e emergências, pode, portanto, complicar o processo de luto.

Rafaloski et. al. (2020) afirma que nas circunstâncias em que ocorreu a quebra da realidade, o trauma gerado desestabiliza a organização mental e interrompe a continuidade da vida, sendo a intensidade da experiência é tão avassaladora que dificulta a elaboração de seus conteúdos, podendo resultar no rompimento da articulação entre os afetos, podendo ser a mesma experiência ser interpretada de forma distinta, sendo que alguns têm a percepção de que a ameaça faz parte da própria subjetividade e que não encontrarão esforços para lidar com o ocorrido e para outros, essa é uma situação que traz sentimentos de solidão, isolamento social, auto e heteroagressão, entre outras (Rafaloski et. al., 2020).

A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), conforme Basso e Wainer (2011), entende que as crenças sobre a perda de um ente querido serão ativadas e processadas com base na compreensão que o indivíduo tem da morte, sendo assim, a reação dependerá do estilo de enfrentamento e dos padrões previamente aprendidos e internalizados, bem como os sentimentos de incapacidade e vulnerabilidade são preditores das dificuldades enfrentadas na perda, gerando-se a desorganização que afeta as pessoas que perderam um ente querido.

Os profissionais que trabalham pela TCC entendem que a maioria das pessoas que passam por situações de luto desenvolve respostas de enfrentamento desadaptativas como resposta de enfrentamento, para amenizar os sentimentos provocados, onde as respostas são denominadas de hipercompensação – que é quando se luta contra o esquema pensando, agindo, sentindo como se o oposto do esquema fosse verdadeiro, a evitação – organiza-se a vida para que o esquema não seja ativado, bloqueia-se pensamentos e imagens para evitar sentimentos ativados pelo esquema, de acordo com o que outro autores também observaram em seus estudos – e a resignação – que é quando se consente o esquema, aceitase como verdadeiro, não tentam evitar nem lutar contra ele.

Observou-se, ainda, por meio do estudo de Cavalcante (2012) com vítimas de enchente em Teresina-PI, que muitos enlutados optam por não falar ou falar pouco do que foi vivenciado, considerando-se que a fala remete ao momento do ocorrido, ela pode causar uma angústia que essas pessoas não desejam sentir ou demonstrar, também observado por Leite e Steffens (2018), que observam que estímulos associados ao trauma são evitados de maneira persistente, onde as pessoas enlutadas podem recorrer a estratégias para evitar o assunto e não expressar os sentimentos relacionados à perda, o que também pode resultar na perda de sua identidade e de sua posição no mundo. Observou-se também, por Cavalcante, que apesar da forte ênfase nas perdas materiais ao longo das entrevistas, outras perdas, geralmente relacionadas à moradia, emergiram nos relatos dos participantes, revelando perdas simbólicas resultantes das perdas materiais, como segurança, intimidade e dignidade. A autora afirma que, além da perda de bens materiais, os enlutados perdem também a identidade do “eu” quando as águas arrastaram suas casas, bem como a intimidade do lar, a paz e a segurança, passando-se a viver vidas ameaçadas pelos roubos ocorridos nos abrigos, principalmente por aqueles que não possuem mais nada e que já perderam tudo, incluindo a privacidade.

Leite e Steffens (2018) observam que se destaca nas falas de enlutados a dor de terem perdido os bens que tanto “lutaram” para conquistar, ainda que alguns, apesar das perdas de algo tão simbólico, ainda acreditam ser essas perdas pequenas diante da finitude da vida. Os autores afirmam, ainda, que a vivência do luto diante das perdas (humanas, econômicas e materiais) demanda uma resposta à situação e está ligada à capacidade de resiliência de cada indivíduo afetado, a qual gera auto- organização, adaptação e aprendizagem, sendo essas respostas adequadas às experiências singulares, às quais é atribuído um significado próprio.

Contudo, diante da necessidade e das demandas sociais e emocionais decorrentes do contexto de catástrofes naturais, especialmente em quadros de luto complicado, Cavalcante aborda a área da psicologia conhecida como Psicologia das Emergências, com principal foco no estudo do comportamento das pessoas em situações de acidentes e desastres, abrangendo desde medidas preventivas até a assistência no pós-trauma e, quando necessário, intervenções para compreensão, apoio e superação do trauma pelas vítimas.

Franco (2005) diz que, no período pós-desastre, a assistência psicológica visa diminuir o estresse agudo causado pelo impacto do trauma, através de intervenções que visem restaurar o domínio do funcionamento cognitivo sobre as reações emocionais e facilitar a compreensão, em um nível cognitivo, do que aconteceu. Os psicólogos têm, em acordo com o que diz Garcia e Faria, seu trabalho realizado em colaboração com órgãos governamentais e não governamentais, envolvendo uma variedade de ações que partem de intervenções individuais e em grupo, além de interações com equipes e entidades envolvidas. O suporte fornecido deve ser estabelecido por meio de uma relação empática e ativa, com o objetivo de facilitar a elaboração das perdas, seja por meio de mortes, projetos de vida ou bens materiais, e promover o planejamento de um futuro significativo (Garcia e Faria, 2020). Sendo assim, a psicologia desempenha um papel fundamental na preparação e resposta em situações de desastres e emergências, oferecendo suporte emocional, promovendo a resiliência e auxiliando na recuperação das pessoas afetadas, em acordo com o que Souza faz entender em seu estudo (2013).

Galindo et. al. (2020) também afirma que atuação do psicólogo em situações de emergência está intimamente relacionada à compreensão do comportamento das pessoas diante dos desastres, o que contribui nas intervenções voltadas para o apoio e superação do trauma psicológico tanto para as vítimas quanto para os profissionais envolvidos, os quais também merecem atenção, visto que testemunharam as consequências dos eventos. Galindo também reforça que o psicólogo deve ter o cuidado pragmático de não ser invasivo, priorizando a escuta ativa sem pressionar as pessoas a falarem, verificando se estão sendo atendidas minimamente em suas necessidades e demonstrando empatia em seu trabalho.

Os psicólogos atuantes pela TCC, buscam identificar os recursos disponíveis e avaliar as principais preocupações do paciente, sendo recomendável defini-las, priorizá-las e, por fim, abordá-las, levando em consideração e avaliando a rede de apoio social e auxiliando na tomada de decisões, já que o enlutado possivelmente se encontra em estados psicológicos e emocionais prejudicados, sendo essencial que o profissional expresse empatia, respeite e adeque-se ao o ritmo do paciente, principalmente no decorrer do uso das estratégias e técnicas terapêuticas. Para o processo terapêutico, Worden (1983, apud Ramos, 2016) também apresenta algumas tarefas que podem ser revisitadas e retrabalhadas com paciente enlutados, sendo essas “aceitar a realidade da perda, experienciar e processar a dor, a adaptação ao ambiente, no qual a pessoa perdida já não está presente e o reinvestir noutras relações”.Trindade e Serpa (2013), afirmam ser possível construir formas de abordagens que priorizem a subjetividade das pessoas enlutadas, com atuação baseadas no que o indivíduo estiver vivenciando no momento e no sofrimento psíquico em que se encontre, buscando-se desenvolver também a resiliência na população atingida. As autoras também afirmam que os psicólogos que atuam no pós-desastre, devem ter uma visão ampliada da situação para lidar com sua complexidade, bem como a subjetividade do indivíduo, não se limitando apenas ao diagnóstico.

Contudo, Barros et. al. (2021) observou, através de seu estudo realizado com uma amostra de Santarém/PA, que, ainda que os profissionais se sintam aptos a atender a população em situação de vulnerabilidade e luto em decorrência de desastres, reconheceram a necessidade de capacitações específicas nessa subárea, especialmente para lidar com traumas e medos prolongados pós-desastre, ao mesmo passo que afirma que a capacitação pode ser o primeiro passo para atuar em situações emergenciais, mas também o autoconhecimento e o autocuidado do profissional são primordiais, permitindo-se o reconhecimento de sua real capacidade de beneficiar as vítimas com sua atuação, reconhecendo suas potencialidades e limitações.

4  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao considerar os resultados e as discussões apresentadas nesta revisão bibliográfica, ficou evidente que o manejo do luto em decorrência de desastres naturais é um campo complexo que requer uma abordagem sensível e multidisciplinar. Os desastres naturais não apenas causam perdas materiais, mas também geram um profundo impacto psicológico nas pessoas afetadas, que muitas vezes lutam para lidar com a dor, o sofrimento e a desorganização emocional resultantes das tragédias.

No contexto estudado, a atuação do psicólogo desempenha um grande papel na promoção da saúde emocional e na facilitação do processo de recuperação, promovendo a resiliência e contribuindo para a readaptação dos indivíduos e da sociedade. Além disso, a pesquisa e a compreensão do luto em contextos de desastres naturais têm implicações significativas para o desenvolvimento de políticas públicas e programas de intervenção voltados para a prevenção e o manejo de crises humanitárias. Ao reconhecer a importância do suporte psicológico e emocional nas fases de pré, durante e pós-desastre, as autoridades e organizações responsáveis podem implementar medidas mais eficazes para proteger e assistir as populações vulneráveis, minimizando o impacto dos eventos catastróficos na saúde mental e no bem-estar das pessoas afetadas.

Em suma, o estudo do luto em decorrência de desastres naturais é de grande relevância não apenas para a psicologia, mas também para a sociedade como um todo. Ao se integrar das experiências e necessidades das pessoas enlutadas, podese desenvolver estratégias para apoiar e auxiliar esses indivíduos durante esses momentos, promovendo o seu processo de reabilitação, desenvolvimento resiliência e recuperação emocional e social.

REFERÊNCIAS

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