A ESCOLHA DA MEMÓRIA COLETIVA E A ENCRIPTAÇÃO DO PODER: COMO A ESCOLHA DA MEMÓRIA COLETIVA PODE (DES)ENCRIPTAR O PODER

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249031027


                                                                               Iara Alves Etti Fróes1


Este artigo tem como propósito discutir as relações entre o tempo, o poder e as justiças de transição e restaurativa, sob o prisma da construção da memória coletiva e do que dela se espera para a sua repercussão na construção do papel do Direito. Assim, a pergunta que o presente trabalho se propõe a responder é: “como a escolha da memória coletiva pode ser uma (des)encriptação do poder?”. E, em busca de tal resposta, destacar que a ampliação das perguntas que são feitas, por meio das diversas memórias coletivas, pode ser tanto um artifício do poder encriptado quanto uma técnica legítima para desenvolver a (des)encriptação e possibilitar discussões sociais que efetivam as memórias coletivas que estão vigentes e esperando por serem validadas através do próprio reconhecimento das diversidades dos grupos sociais.  

Poder e sua encriptação – A teoria da Encriptação do Poder 

 A Teoria da Encriptação do Poder, de Sanin-Restrepo, traz diversas possibilidades de estruturação para um pensamento crítico que possa servir de inspiração para a construção de novos modos de pensar e operacionalizar o Direito2

 E é nesse sentido que se emprega a teoria no presente artigo, como base para se pensar e repensar a memória coletiva e sua construção e reconstrução, partindo-se do reconhecimento da sua existência e sua importância para o Direito, visando problematizar a questão de sua seleção. Nesse caso, seria ela, a memória coletiva, um artifício para o poder ou uma técnica legítima para desenvolver a democracia, a depender das escolhas que se faça e das fundamentações trazidas a partir de tais escolhas. 

Segundo Sanin-Restrepo, a encriptação do poder “é a imposição de simulações institucionais de diferença que condicionam, neutralizam ou proíbem a agência (atuação) política, reduzindo-a (a diferença) a modelos estáticos e sólidos de identidade que se apresentam como a única forma de poder”. [1] O que se compreende desse conceito, que é tido pelo autor como uma hipótese daquilo que se chamaria de encriptação de poder, é o entendimento de que encriptar é simular que existiria um poder estático, fixo e sólido dentro de um Estado, e, assim, que o próprio conceito formado pela compreensão das instituições “Estado” “Democrático” e “Direito” existiria em um contexto fixo e sólido para pessoas – “cidadãos” – que também seriam fixas e sólidas. 

 Em um outro conjunto de definição, traz a conceituação de que “encriptar (poder) é simular poder (democrático, constituinte) e proibir ou condicionar o ser enquanto colapsa a agência política (poder constituinte, resistência) dentro de estruturas fixas, finas transcendentes e sólidas (poder constituído, o direito)”.  A partir do que se entende que seria a utilização do poder: por meio de um simulacro, que, por sua vez, se utiliza da estrutura para fixar estruturas que estão previamente definidas, e que simula uma possibilidade de fluidez (reestruturação) e – pode-se até dizer – de mudanças, que são engessadas pela impossibilidade da concretização, pois os agentes e pessoas  envolvidas nesse simulacro compartilham do mesmo conhecimento e dos mesmos códigos, o que os impossibilitariam de até mesmo perceberem que são os próprios agentes deste simulacro[2]

O termo “encriptar” consiste naquilo que se faz de um modo intencional, de ocultar os significados de um sistema simbólico, tal qual se faz na linguagem, e não é essa a dimensão que se está em discussão na teoria. No caso da encriptação do poder, o que se parece estar em discussão na teoria é a impossibilidade de, assim o sendo, pela existência de tais códigos já encriptados,  surgir a partir deles uma possiblidade de equidade política, legal, racial, justa, entre sexos, e entre qualquer outra distinção que se tenta fazer para se dizer que possibilitaria a existência de uma participação em bases igualitárias. E, então, partindo dela, de uma real chance de existência de uma possibilidade de existência democrática formada por seres humanos e, principalmente, de uma real possibilidade de pertencimento no mundo contemporâneo. E não uma simulação de tal pertencimento. 

 A saída encontrada pelos estudiosos da Teoria da Encriptação – ou da teoria da (des)encriptação do poder – para se encontrar uma possibilidade de evolução para se estabelecer as reais condições de um poder compartilhado e não simulado se daria somente através da democracia, e através da dimensão democrática em que se entende que é ela uma ordem de diferenciação imanente[3].  

O tempo, a memória e Direito 

 Sobre o tempo, a memória e o Direito, Giorgi traçará a delimitação da ideia de tais conceitos dentro da ciência jurídica e como poderiam ser utilizados a partir da sua dimensão subjetiva, que gera conteúdo, e está, por assim dizer, inserida nas práticas sociais, que também se refletem no direito e na democracia. 

Giorgi, ao trabalhar o aspecto do tempo, da memória e do Direito, faz a reflexão de que o Direito é a sua própria memória, dizendo que ele reproduz as relações sociais, que ele seria a própria recordação de algo que se imprime no Direito[4]

 É necessário aqui relembrar que o Direito tem uma dimensão de produção de uma ordenação de comportamentos em conformidade com as normas do ordenamento jurídico. 

 Assim, tem como uma de suas funções a ordenação das relações sociais. Ao gerar uma sentença, por exemplo, ela produz resultados no mundo fático, de forma positiva ou negativa, ou quando se tem um ato em conformidade com a norma, tal ato também está produzindo algo; ou quando um agente estatal produz uma ação, ou deixa de fazê-lo, também está agindo nessa dimensão daquilo que produz, reproduzido na memória do que se diz que está imprimindo; ali se cria[5]

 Tal criação é realizada com base em pensamentos, crenças, dogmas, doutrinas e signos compartilhados, códigos criados para que se possa perpetuar e possibilitar o diálogo e a continuidade de princípios e ideias. 

 Giorgi trabalha com a ideia e indaga se a memória também não seria um lugar do esquecimento. Se for positiva a resposta, caberia, então, indagar aqui quem é que escolhe o que lembrar e o que esquecer? Tal pergunta já seria por si só difícil de responder num âmbito individual, e como seria, portanto, a sua resposta em âmbito público e compartilhado? 

 Quem tem escolhido as histórias que deverão ser contadas e esquecidas? E os valores sociais que deverão ser propagados e que deverão ter continuidade? 

 Giorgi pesquisou sobre a literatura da memória, dissertando que muitos pensam que os livros são os objetos nos quais se perpassa e se condensa a memória. Que contêm a memória cultural, apresentam a memória coletiva, e a memória individual condensada neles. O autor levanta a questão que parece ser autoevidente, de que a memória relaciona-se com a recordação, e, por ser assim, recorda-se daquilo que está no passado[6]

 A memória, ainda segundo o autor, é uma parte que seria utilizada como a possibilidade de aprendizado, como uma espécie de imaginação, e essa parte imaginativa do aprendizado molda a forma de agir no presente, estabelecendo condições para o futuro. E tendo-se a percepção de que ali está o impulso para se agir, estaria se agindo em conformidade com aquela memória. 

 Seria como se pensasse que a ação se daria através de uma operação lógica, em que se deveria olhar para o passado e achar referências para o futuro, mas o que aconteceria, na verdade, é que a operação se daria como um já prévio embasamento aprendido e já tendo sido uma referência que já não careceria mais de ser pensada de forma crítica. 

 Assim, as bases da ação já teriam sido formadas e bastaria agir, e, agindo de acordo com aquela base, seria uma ação assertiva. 

Não se precisaria mais passar pelo crivo da crítica, pois a base informativa já estaria correta, dentro e conforme as referências atuais, que foram aprendidas.  

 Segue-se a citação segundo Giorgi de tal equívoco e a sua problemática ao se trabalhar com a memória como algo que fosse recordação passada, sem se ter a dimensão da produção que ela está fazendo. 

A memória à qual me refiro é um princípio explicativo (Erklärungsprinzip). Recorre-se a isto quando não se quer mais explicar exatamente o que se pretende explicar. Àqueles que utilizam este princípio explicativo, objeta-se que, quando falam da memória coletiva, cultural ou social, na verdade, estendem a necessidade individual ao coletivo, à cultura ou à sociedade. De acordo com tal objeção, não se está em grau de determinar as características específicas que diferenciam a memória individual daquela social ou cultural. Na realidade, não se trata disto. Quem confirma semelhante dimensão, parte do pressuposto – já formulado na Antiguidade Clássica – de que a memória do indivíduo resgata, reúne e conserva recordação. Segundo eles, este árduo trabalho é igualmente realizado pelos grupos e pela cultura. Na verdade, este entendimento baseia-se em um profundo equívoco da consciência dos indivíduos que é estendido à sociedade, compreendida como um conjunto de indivíduos reunidos por seus particulares rastros. 

Em seguida, pretendo demonstrar que a memória é entendida como um princípio explicativo (Erklärungsprinzip); que os indivíduos inventam sua memória; que a sociedade e, por conseguinte, os sistemas sociais – e, portanto, o direito- inventam uma memória. Trata-se de provar, ainda, que a memória e, naturalmente, também a memória inventada pelo direito, é considerada uma função que é justificativa de si mesma e, consequentemente, decorre da evolução. [7]

 Giorgi, avançando em sua explicação sobre a memória, traz a percepção do tempo, e trabalha com a narrativa de “Funes, o memorioso”[8]. Ele diz que a personagem Irineo morre porque ele não poderia viver; o tempo de vida, segundo o autor, se daria no presente, e tudo o que ele fazia era a mera recordação do passado. “A possibilidade de distinguir entre o tempo dos eventos perceptivos e o tempo de sua reativação seletiva, por meio do seu sistema nervoso”. 

 Além da já explicitada dimensão da automação da ação através da memória, a memória como a função do aprendizado e daquilo que já foi aprendido, que se depreende do trecho citado acima, ainda se conclui uma outra dimensão, que é a lembrança fidedigna daquilo que se acredita que se recorda. Trata-se de uma já criação (invenção) em cima daquilo que se aconteceu, feita através das próprias percepções da pessoa ou grupo que vivenciou, e contada a partir da sua própria recordação, memória.[9] 

 Conforme Giorgi vem a concluir, a memória é um modus operandi que continuamente é definido e redefinido pelo modo de funcionamento do sistema. 

 E a questão do tempo está intimamente ligada a essa construção da memória. Se a memória é uma função, um modus operandi, consequentemente, os sistemas que operam sentido também acessam uma memória, e o direito, sendo um sistema, também faria essa operação. Os eventos que o direito considera juridicamente relevantes transformam-se em presente, e, quando se configuram neste presente, se faz a fragmentação da atemporalidade. Assim,  pode-se tornar possível a distinção entre os momentos: antes e depois; passado e futuro. E também pode ser feita de uma forma sintética a seleção de determinado comportamento, e promover a partir daí uma modificação. 

 É dessa maneira que Giorgi explica o tempo e sua conexão com o Direito: “Deste modo, a atemporalidade das operações é interrompida e essa interrupção constitui o tempo”. E acrescenta que o direito construiu um valor que não tem em si mesmo nada de valoroso, mas que se torna um correspondente que integra o sistema que é a validade. E, ainda, diz que tal símbolo justifica em si o valor de realidade, a capacidade de mudança e de combinação e a capacidade de conexão. E a partir desta composição se pode ser reproduzido o sistema através de si mesmo e daquilo que é validado. 

          Como ensina Gontijo:

Logo, o direito seleciona experiências, atualiza-as de modo a construir discursos permanentes sobre valores e sentidos percebidos no passado que sinalizam o futuro, constituindo, portanto, um fenômeno que une, a um só instante, passado, presente e futuro. Assim como a linha de continuidade da experiência humana pertence a um só tempo às gerações ancestrais, atuais e futuras de uma comunidade jurídica, o direito abarca a consciência coletiva, por fazer pensar como um só avós, pais e filhos.

 Assim, o Direito seleciona experiências e memórias coletivas e indica como que de uma forma social o indivíduo e a sociedade devem agir para estarem de acordo com aquilo que é validado pelo sistema. Se tal seleção foi feita de forma ampla e a mais abrangente possível, pensando na problemática como um todo e respeitando todos os valores compostos pelos diferentes grupos sociais, pode se dar de uma forma efetiva; mas se, ao invés, faz seleções de grupos e valores, isso pode propiciar a ocorrência de simulacros de condições equânimes e de pertencimento, o que gerará direitos – e será respaldado pelo direito vigente; será válido para o direito vigente. 

A problematização da memória e do direito na Justiça de Transição e na Justiça Restaurativa

 A Justiça de Transição foi um termo que surgiu a partir de uma conferência de Direito, e o termo é tido como sendo proposto pela professora Ruti Teitel, em 1992. Já se era sabido que as questões que permeiam o termo já eram discutidas desde os anos 70, mas, a partir da Justiça de Transição, o objetivo é revelar a verdade sobre crimes passados, violações de direito e promover políticas de reconciliação no meio social. [10]

 No campo do direito, “entende-se como justiça de transição o conjunto de ações, dispositivos e estudos que surgem para enfrentar momentos de conflitos internos, violação sistemática de direitos humanos e violência massiva contra grupos sociais ou indivíduos”. 13

 A Justiça de Transição tem sido estudada principalmente em democracias construídas após um período truculento de ditadura, como é o caso do Brasil[11], para se pensar em soluções para fazer a transição de períodos e de memórias coletivas.

 É tido como um caso de sucesso a sua utilização na África do Sul como um aporte para o desenvolvimento democrático quando do fim do Apartheid e do Governo do presidente Mandela15, e, aqui neste artigo, além de se ter conhecimento disso, não se nega e nem se diminui tal feito. Até mesmo porque não se tem uma leitura e um conhecimento especializado para se opor a tal corrente e suas decorrências legais, internacionais e históricas. 

 O filme Invictus é uma narrativa sobre o início do governo de Mandela e o fim do Apartheid na África do Sul. É um filme da Warner Bros. Pictures, inspirado no livro Playing the Enemy, que foi publicado em 2008 pelo jornalista John Carlin. Dirigido por Clint Eastwood, o filme narra a época em que Mandela é liberado da prisão, assume o governo da África do Sul, e utiliza o esporte Rugby, paixão nacional, para unificar o país através do esporte. A narrativa é desenvolvida através da diferenciação trazida pela cor da pele e pela história de preconceitos raciais e sua consequência para a população da África do Sul.[12] Como uma história narrativa – e que virou filme – traz uma romanização da trama, e é sobre esta romanização que se passa a problematizar. 

 Em tal narrativa, e em uma leitura sobreposta do filme, o que se mostra é um conflito gerado através da cor da pele, o que aqui será tomado como a  seleção de memória coletiva a título de exemplificação para a seguinte problemática: como que a memória coletiva pode ser um artifício ou uma possibilidade para (des)encriptar o poder. 

  Ressalta-se novamente que a argumentação é baseada na narrativa do filme, e não se quer nem desrespeitar e nem desmerecer os avanços tidos pela Justiça de Transição, pela Justiça Restaurativa, e pela cultura de paz desenvolvidas a partir da real história da África do Sul, do presidente Mandela, e da cultura de paz propagada a partir dali. E nem de subjugar a questão racial, de cor e toda a sua problemática histórica; o objetivo é trazer luz para outras questões que estariam subjacentes a tais questões. Por exemplo, as questões relativas a gênero, orientação sexual, classe social, religião, descolonização e outros marcadores sociais não são trazidos na trama. 

 A questão argumentativa que se mostra aqui, utilizando-se da trama, é que quando se vai percebendo uma maior aceitação dos indivíduos e sua integração social, necessariamente, surgem a emoção e o alívio da possibilidade de convivência e cultura de paz. Assim, num primeiro momento se pensa que ao solucionar a questão racial estaria se dissolvendo também as demais questões que são coexistentes aos mesmos grupos ou a grupos diversos, suscitando uma percepção de igualdade e de pertencimento que poderia ser questionada: são simulacros ou reais?[13]

 A escolha da narrativa aqui é por ela poder embasar tanto os pontos coerentes quanto os pontos controversos da seleção da memória coletiva e, também, como que a Justiça de Transição e a Justiça Restaurativa poderão servir como base para delimitar qual seria o papel desta memória coletiva tanto para a Justiça de Transição quanto para a Justiça Restaurativa. 

As práticas restaurativas começaram antes mesmo de ter teorias a respeito do que seria Justiça Restaurativa[14]. Tais práticas tiveram seu início ao final da década de 70, e, embora já fossem aplicadas de uma forma institucionalizada, não tinham ainda uma teoria que desse uma formatação mínima para sua prática, o que parece que se segue até os dias atuais.  

Quando se fala em Justiça Restaurativa, parece que é algo que todos sabem que existe e entendem a sua função, mas quando se pede para dizer o que é ou como se aplica, facilmente se perde no meio das explicações e das diversas metodologias que são utilizadas com a finalidade de se fazer uma Justiça Restaurativa. Parece haver, portanto, uma cortina de fumaça; quando atinge a sua finalidade, as pessoas percebem o que está ali. 

Parece também ser utilizada como conceitos diversos: Justiça Restaurativa como um tipo de justiça; Justiça Restaurativa como um meio de solução de conflitos; Justiça Restaurativa como uma ferramenta de solução de conflitos; Justiça Restaurativa como uma prática que se confunde com a mediação; e também Justiça Restaurativa como um lugar físico em que se aplicam métodos restaurativos; como centro de Justiça Restaurativa; além de indicar que o uso de quaisquer métodos que promovam o que é tido como “restauração” estaria no campo da Justiça Restaurativa. Afinal, existiria um método próprio para se fazer a Justiça Restaurativa?

 Ainda carece de uma conceituação teórica, mas que já possui um conceito legal, definido pelo CNJ, Resolução 225.

A Justiça Restaurativa é um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados.

 Tanto na Justiça de Transição quanto na Justiça Restaurativa, a questão seria: quais são as perspectivas e pela vista de quais sujeitos é que os problemas são enfrentados? Do ponto de vista de quais grupos que o significado dos conceitos é construído?

 No exemplo utilizado, trazendo novamente o filme Invictus, a questão racial posta em discussão, e chegando a uma composição de valores e entendimento da necessidade de se ter maior tolerância, apenas isso solucionaria por assim dizer a questão do pertencimento do grupo? 

 Como seria feita essa espécie de seleção? Aqui a violência é tolerada, aqui não, aqui o Estado pode submeter os seus cidadãos através da imposição, naquele outro ponto não. E quais são os grupos que participam desta discussão? Como que estabelece este diálogo? Qual a participação dos pretos? Das mulheres? Dos LGBT…? E dos héteros e brancos? E qual classe financeira está participando? E para quem realmente aqueles valores validados estão construindo direitos? E efetivamente o fazendo de uma forma não violenta? 

 Através de qual grupo, dentre todos estes grupos, e a partir de qual seleção de memória coletiva se está construindo uma Justiça de Transição? E a partir dela a construção de direitos? E a partir de quais condições de igualdade de condições se estaria propondo a Justiça Restaurativa? E validando através dela a construção de direitos?

 Em outras palavras, quais grupos que efetivamente estão participando para se propor bases de uma Justiça de Transição e de uma Justiça Restaurativa? 

E aqui se cai por vezes na própria armadilha democrática, quando se pensa e se diz que os grupos estão sendo representados. Representados por quem? E qual a memória coletiva que é mais apropriada para se criar e deixar perseverar, para depois construir e validar direitos?  

 Tais perguntas ainda não têm uma resposta satisfatória, mas a busca por respondê-las – por si só – já legitima a necessidade da ampliação do estudo e efetiva prática da Justiça de Transição e da Justiça Restaurativa. 

Conclusão

Como a escolha da memória coletiva pode ser uma (des)encriptação do poder?

 O problema da memória coletiva perpassava pelo reconhecimento de que ela existe em uma sociedade, de uma forma subjetiva, e, também, que pode existir mais de uma memória coletiva convivendo na sociedade. Portanto, ao se fazer a seleção de qual validar, faz-se uma divisão do tempo, que trata como válido um direito para uns, e não valida direitos para outros grupos. 

 A memória coletiva, assim como o próprio direito, não é estática, ela se movimenta num espiral de memória coletiva social, e deve ser reconhecida assim. 

 A Justiça De Transição e a Justiça Restaurativa são meios válidos para a percepção desta memória coletiva, ou destas memórias coletivas, e efetivamente conseguem fazer o que se propõem: a transição de períodos e a restauração, ambas visando uma cultura de paz. Porém, para cumprirem tais objetivos, é necessário ficar vigilante para se ampliar as perguntas que são feitas ao reconhecer a partir de quais valores e grupos que os direitos estão sendo validados, e, sempre que possível, fazer a inclusão dos interesses deles. 

Bibliografia

GOMES, Luiz Flávio, et. al. Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência autal da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 

SABADELL, Ana Lucia, et. al. Justiça de Transição: das anistias às Comissões da Verdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. 

TEÓFILO, João. Justiça de Transição: o que fazer com as heranças de um passado violento. In.

Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/justica-de-transicao-historia/.

Publicado em:07 mai. 2018. Acesso: 24/07/20214


[1] Sanin-Restrepo e Araújo, 2020. Pg. 1

[2] Aqui é importante fazer a diferenciação do uso da expressão “utilização” do simulacro do poder, palavra que foi escolhida para se evitar o uso da expressão “manipulação”. Entende-se que “manipulação tem o propósito de falsificação da realidade que busca induzir alguém a pensar de determinada forma. É sutil a diferenciação. 

A diferenciação que aqui se faz é que até se reconhece que poderia ser o caso da utilização, por alguns de forma maldosa e intencional, da encriptação do poder, porém, por muitos, deve-se frisar a incapacidade de se ver e tomar conhecimento de códigos e signos distintos daqueles que são tidos e conhecidos como verdadeiros. Que foram ensinados e compartilhados socialmente como realidade fática, justa e possibilidade real, e muitas vezes têm, inclusive, viés científico. É ter a capacidade crítica de se deixar participar da construção de novos conceitos e se desprender daquilo que foi construído e tido como verdadeiro.  É se possibilitar desconstruir em si e desaprender para aprender novas possibilidades. É perceber a fluidez dos códigos e signos que compõem a sociedade. É ter consciência daquilo que se encontra inserido e compartilhado socialmente. É a insegurança de questionar o que toma para si mesmo como verdadeiro. E, ao mesmo tempo, saber que nem sempre vai conseguir fazer a diferenciação para si mesmo e, ali, vai ser também agente de encriptação do poder. É da sutileza da parte inconsciente humana e daquilo que é compartilhado e construído na sociedade que se trata tal diferenciação. 

[3] Meu ponto de discordância com a Teoria da Encriptação é o seu entendimento de que o ser humano só é desigual, sendo que é justamente aí que demonstra a sua igualdade. Como uma espécie de paradoxo da igualdade.  Igualdade defendida aqui é a compreensão de que todos os seres humanos são por si mesmo, em sua própria natureza, únicos, e, por isso, em sua própria natureza, são diferentes. E assim, ser igual como ser humano é se entender como diferente, entender sua própria diferença e se ver igual ao outro, por ele ser diferente. Aqui, no presente texto, não se utilizará de tal conceito, por entendê-lo como uma opinião pessoal da autora, e que por isso não pode ser tomada como uma noção compartilhada e/ou científica, mas registra-se aqui tal entendimento para referências em trabalhos futuros. 

[4] Giorgi, Rafaelle – Direito, tempo e memória, pg. 37. 

[5] Conforme o conceito tridimensional do direito de Miguel Reale. Reale, Miguel, 202

[6] Raffaele de giorgi – Direito, tempo e memória. Pg. 38. 

[7] Giorgi, Raffaele, Direito, tempo, memória. Pg. 40. 

[8] Funes, o memorioso, é um texto literário, escrito por Jorge Luís Borges.

[9] “Um observador diria que o sistema aprende, que aprende no presente, e que identifica, no aprendizado, uma sequência de comportamentos do sistema, através dos quais se estende sua área de cognição. Da perspectiva da teoria dos sistemas, trata-se de requisitos internos das transformações do sistema. O aprendizado desenrola-se para o sistema como um processo atemporal de transformação. A temporalidade é construída quando o sistema interage através de suas distinções com seus próprios estados. E dado que este processo interativo é contínuo, o sistema é o produto de suas próprias modificações, isto é, ele é seu próprio resultado. O processo não tem começo nem fim, pois o sistema não pode observar nem seu início nem seu final. O sistema se especializa na prática de suas distinções e, assim, pode-se reconhecer. Pode construir temporalidade, pode estender ou edificar o tempo e o espaço ocupado pela cognição”. Giorgi, Rafaelle, Direito, tempo, memória. Pg. 44

[10] Conforme Teófilo, João. Justiça de Transição: o que fazer com as heranças de um passado violento. In. Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/justicadetransicaohistoria/. Publicado em:07 mai. 2018. Acesso: 24/07/2021  13 SABADELL, 2014. 

[11] Gomes, Luiz Flávio. 2011.  15 Pinto, Simone. 2007. 

[12] A opção de se utilizar de uma narrativa baseada em fatos reais, mas que está delineada em um texto narrativo criativo, é para se ater a um exemplo fixo e mais simplista do que os fatos reais e suas decorrências históricas. A argumentação que se quer fundamentar é a de como a memória poderá ser um artifício ou uma técnica legítima para estruturar um poder dentro de uma democracia. 

[13] Não é o objetivo do texto discutir tal natureza e como que o apartheid funcionou na África do Sul, e muito menos desmerecer ou retirar a sua credibilidade, mas estabelecer uma problemática de coerência entre a pergunta se a questão estaria restrita à já problemática racial, ou se teriam outras questões envolvidas, mas que não vieram a ser validadas, ou se vieram, não fazem parte do conhecimento básico histórico. 

[14] Paul MCcold – pg. 24


[1] doutora em Filosofia do Direito pela PUC- MG. E-mail: iaraaef@hotmail.com