O PARADOXO DO SOBREDIAGNÓSTICO DO TDAH E SUAS CONSEQUÊNCIAS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch102024261845


Hagata Lós Melchiades de Souza;
Camila Pizarro Dantas;
Giovanna Apocalypse Souza;
Gustavo Melo Vieira;
Igor de Souza Costa Raimundo;
Thayná de Queiroz da Cruz.


RESUMO

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é definido como um distúrbio do desenvolvimento psicomotor que se caracteriza por um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade e/ou impulsividade. Atualmente, observa-se que discretos sinais de sofrimento psíquico tendem a ser classificados como patológicos, iniciando precocemente o uso de psicofármacos. Nesse sentido, tendo em vista que o aumento da medicalização se torna alarmante em adultos, o panorama torna-se ainda mais grave na conjuntura infanto-juvenil, tendo em vista a imaturidade motora e neuropsíquica da criança. O presente estudo tem como objetivo analisar e discutir sobre o aumento do diagnóstico do TDAH na última década e a consequente hipermedicalização infantil. A metodologia utilizada foi uma revisão de literatura de caráter quantitativo, por meio de pesquisas nas bases PubMed, Scielo e Google Acadêmico, com data de publicação a partir de 2010. Em relação aos resultados, foi observado um aumento do sobrediagnóstico e sobremedicalização em torno de 25% dos estudos avaliados; aproximadamente 40% dos artigos destacaram a importância da realização de projetos de capacitação de profissionais de saúde para efetuar diagnósticos mais exatos e tratamentos mais eficazes; por volta de 25% dos artigos concluíram que a metilfenidato, do grupo das anfetaminas, possui benefícios e aumenta a qualidade de vida, mesmo causando efeitos colaterais. Por fim, conclui-se que é necessário analisar e propor estratégias de capacitação de profissionais da saúde, além de implementar um trabalho multidisciplinar mais eficiente em conjunto com os familiares e educadores, a fim de avaliar a real necessidade do diagnóstico, realizando-o de forma mais eficiente e evitando a medicalização desnecessária de crianças e adolescentes que não se enquadrem nos critérios diagnósticos ideais para o TDAH.

Palavras-chave: “Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade’’, ‘’Sobremedicalização”, “Sobrediagnóstico”, “Psicoestimulantes”, “Analépticos”.

ABSTRACT

Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) is defined as a psychomotor developmental disorder that is characterized by a persistent pattern of inattention and/or hyperactivity and/or impulsivity. Currently, it is observed that discrete signs of psychological distress tend to be classified as pathological, initiating the early use of psychotropic drugs. In this sense, given that the increase in medicalization becomes alarming in adults, the scenario becomes even more serious in the children’s situation, in view of the child’s motor and neuropsychic immaturity. The present study aims to analyze and discuss the increase in the diagnosis of ADHD in the last decade and the consequent hypermedicalization of children. The methodology used was a literature review of a quantitative nature, through searches in PubMed, Scielo and Google Scholar, with publication date from 2010. Regarding the results, it was observed: increase in overdiagnosis and overmedicalization in around 25% of the evaluated studies; approximately 40% of the articles highlighted the importance of carrying out training projects for health professionals to make more accurate diagnoses and more effective treatments; around 25% of the articles concluded that methylphenidate, from the amphetamine group, has benefits and that it increases quality of life, even though it has side effects. Finally, it is concluded that it is necessary to analyze and propose training strategies for health professionals, in addition to implementing a more efficient multidisciplinary work together with family educators, in order to assess the real need for the diagnosis, performing it in a more efficient way. efficient and avoid unnecessary medicalization of children and adolescents who do not fit the ideal diagnostic criteria for ADHD.

INTRODUÇÃO

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) surgiu na literatura médica, na primeira metade do século XX, envolvendo crianças com quadros neurológicos semelhantes. Esse foi batizado e rebatizado muitas vezes, sendo chamado de “criança com defeito no controle mental” ou “hiperativa”, passando por diversas mudanças até ser conhecida como é atualmente (CALIMAN, 2010). Atualmente, de acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o TDAH é considerado uma condição do neurodesenvolvimento que se caracteriza por um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade e/ou impulsividade (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). 

O TDAH afeta cerca de 5 a 15% das crianças e 5 a 8% da população geral mundial, um valor bem superior ao das décadas anteriores. Entretanto, há uma preocupação acerca do seu sobrediagnóstico e uma consequente hipermedicalização com fármacos que possuem diversos efeitos colaterais, como insônia, irritabilidade e distúrbios gastrointestinais (SULKES, 2022).

Dessa maneira, observa-se a importância de um estudo crítico para que sejam esclarecidos os efeitos positivos e negativos do aumento do número de diagnósticos e o uso dos medicamentos nesses pacientes. Além disso, torna-se evidente o cuidado que o profissional da saúde deve ter ao realizar o diagnóstico, a fim do benefício ser maior que o risco causado (SULKES, 2022).

Diagnóstico

O diagnóstico do TDAH é clínico, estabelecido através de uma anamnese ampla e detalhada. A avaliação deve obedecer aos critérios diagnósticos estabelecidos no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014), no qual o paciente deve se enquadrar em pelo menos seis (de nove) dos critérios diagnósticos, que se dividem em padrão de desatenção, hiperatividade e impulsividade. Além disso, para obter o correto diagnóstico do transtorno, é necessário que esses padrões de comportamento tenham influência direta nas atividades cotidianas, além de terem iniciado antes dos 12 anos de idade, uma vez que o TDAH tem seu início, necessariamente, na infância. Contudo, ainda assim, o diagnóstico pode ser realizado em indivíduos adultos (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). Na tabela 1 temos os critérios diagnósticos descritos na DSM-5. Anexo 1.

Um diagnóstico preciso do TDAH deve também afastar afecções que fazem diagnóstico diferencial com o transtorno, uma vez que os sinais e sintomas são comuns a outras disfunções do neurodesenvolvimento, distúrbios de aprendizagem e comportamento, ansiedade e depressão. Além disso, o profissional médico deve afastar causas orgânicas que estejam causando os sinais e sintomas do TDAH, avaliando aspectos como o pré- natal, infecções do sistema nervoso central e doenças cardíacas, por exemplo. (MDS, 2022)

Algumas escalas podem ser utilizadas para firmar a avaliação do desenvolvimento, que inclui a verificação dos Marcos de desenvolvimento, como a Vanderbilt Assessment Scale, Conners Comprehensive Behavior Rating Scale e a ADHD Rating Scale IV. Essas escalas estão disponíveis para as famílias e escolas, permitindo um cuidado e uma avaliação mais longitudinal da criança e do adolescente. Contudo, é válido ressaltar que essas escalas não realizam o diagnóstico de maneira isolada.(MDS, 2022)

São alguns exemplos de transtornos que fazem diagnóstico diferencial com o TDAH: Transtorno de oposição desafiante, Transtorno explosivo intermitente, Transtorno específico da aprendizagem, Deficiência intelectual, Transtorno do espectro autista, Transtorno de apego reativo e Transtornos de ansiedade (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). 

Classificação 

Para facilitar o diagnóstico e tratamento, podemos classificar o TDAH de acordo com  o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014), em:

Subtipos:

Apresentação combinada: se tanto o critério de desatenção quanto o critério hiperatividade-impulsividade são preenchidos nos últimos 6 meses.

Apresentação predominantemente desatenta: se o critério de desatenção é preenchido, mas o critério hiperatividade-impulsividade não é preenchido nos últimos 6 meses.

Apresentação predominantemente hiperativa/impulsiva: se o critério hiperatividade-impulsividade é preenchido, e o critério de desatenção não é preenchido nos últimos 6 meses.

Podemos ainda classificar em  remissão parcial quando todos os critérios foram preenchidos no passado, nem todos os critérios foram preenchidos nos últimos 6 meses, e os sintomas ainda resultam em prejuízo no funcionamento social, acadêmico ou profissional.

Quanto a  gravidade:

Leve: poucos sintomas, se algum, estão presentes além daqueles necessários para fazer o diagnóstico, e os sintomas resultam em não mais do que pequenos prejuízos no funcionamento social ou profissional.

 Moderada: sintomas ou prejuízo funcional entre “leve” e “grave” estão presentes.

Grave: muitos sintomas além daqueles necessários para fazer o diagnóstico estão presentes, ou vários sintomas particularmente graves estão presentes, ou os sintomas podem resultar em prejuízo acentuado no funcionamento social ou profissional.

Ação do medicamento/tratamento

Ainda existem dúvidas sobre o mecanismo de ação do metilfenidato, porém tudo indica que sua atividade esteja situada no enantiômero D, que se liga aos transportadores de dopamina, inibindo-os e, consequentemente, ampliando a oferta de receptores para o neurotransmissor, de forma que aumente o tempo de ação dessas catecolaminas. Esse mecanismo, por fim, tem como consequência uma ativação do córtex essencial na regulação do humor, atenção e memória, mantendo um padrão de alerta no indivíduo e diminuindo os sintomas do TDAH. (FINTA et al., 2021). 

O metilfenidato, geralmente, é associado às medidas educacionais, psicológicas e sociais, direcionado para o tratamento de crianças com TDAH, porém nem todos os casos possuem indicação para o uso dessa medicação. Nesse sentido, torna-se necessária uma avaliação médica individual de cada criança ou adolescente, levando em consideração sua idade, a gravidade e o tempo dos sintomas para o tratamento ideal.  (FINTA et al., 2021). 

A partir da VII Mostra Interna de Trabalhos de Iniciação Científica, observou-se que o fármaco interfere no desenvolvimento de crianças com TDAH, porém, não é o único fator determinante nos comportamentos e atividades motoras dessas crianças. Nos casos submetidos à medicação, é importante considerar uma intervenção fisioterapêutica associada ao uso da substância para que os resultados sejam mais favoráveis. Essas precisam ser estimuladas de forma precoce quanto à prática de atividades físicas para que esses pacientes possuam as mesmas oportunidades das crianças com desenvolvimento motor típico (OCCHI, N.L.O, VIEIRA, G.L, PALÁCIO, S.G, 2014).

Efeitos Adversos

O metilfenidato possui efeitos psicoestimulantes e pode acarretar no aumento do risco cardiovascular, cerebrovascular e transtornos psiquiátricos. Alguns efeitos adversos são relatados, como: insônia, dor abdominal, anorexia e perda de peso, além de inquietação, ansiedade e taquicardia. Quando utilizado em longo prazo, há relatos de associação com déficit de crescimento (PAPALIA, D.E et al, 2013). Ademais, segundo o Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira, o metilfenidato é uma anfetamina que pode causar dependência assim como qualquer outro medicamento da classe a longo prazo (ITABORAHY e ORTEGA, 2013). 

Em 2009, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA), comparou e reavaliou o uso do medicamento com o aumento dos seus efeitos adversos, e constatou que seu uso não está indicado em todos os tratamentos em crianças com TDAH. A prescrição do metilfenidato deve ser analisada juntamente com a avaliação da gravidade e cronicidade dos sintomas da criança, relacionando com sua idade (BRZOZOWSKI; CAPONI, 2015).

Tempo de Tratamento

Quando se trata do tempo de uso do Metilfenidato alguns fatores precisam ser considerados. É importante, quando sugerir necessidade e houver balanço entre os benefícios e malefícios de seu uso, ocorrer o período de descontinuidade do tratamento. Além disso, pacientes que permanecerem assintomáticos em um período de um ano devem ser reavaliados e medida a necessidade da continuidade do tratamento, já os pacientes que mesmo após os ajustes adequados de doses não obtiveram melhora nos sintomas, estes precisam passar por uma nova avaliação médica e a suspensão do tratamento ser analisada.  Vale ressaltar que é indicado que a redução do fármaco seja de forma progressiva.

Fatores de Risco

Alguns fatores de risco estão relacionados ao Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), como o baixo peso ao nascimento (menor que 1500g), encefalite, hipóxia, mãe usuária de drogas, intercorrências durante a gravidez, alterações metabólicas que cursam com danos cerebrais, exposição prolongada ao chumbo e traumas de uma forma geral (FINTA et al., 2021).

JUSTIFICATIVA

Atualmente, existe a  percepção do aumento do número de casos diagnosticados de TDAH e consequentemente o aumento do uso de medicamentos. Sabe-se que o TDAH afeta cerca de 5 a 15% das crianças, porém há uma preocupação acerca do seu sobrediagnóstico e a consequente hipermedicalização, visto que os fármacos  têm diversos efeitos colaterais, como insônia, irritabilidade e distúrbios gastrointestinais. O medicamento mais usado é o  metilfenidato, que iniciou sua comercialização no Brasil em 1998, após a aprovação da ANVISA e seu consumo tem crescido ao longo dos anos, com registros de venda de 23 quilos (equivalente a aproximadamente 2300 comprimidos) em 2000 e, em 2011, as vendas chegaram a mais de 413 quilos (equivalente a aproximadamente 41300 comprimidos (ANVISA, 2012). Esse aumento veio acompanhado de uma possível sobremedicalização e um sobrediagnóstico de TDAH em crianças e adolescentes. Dessa forma, é de extrema importância investigar esse tema desde os efeitos biológicos no neurodesenvolvimento até os efeitos sociais da percepção do comportamento infanto-juvenil, reforçando uma atitude crítica face à medicalização da juventude.

OBJETIVO 

Objetivo Geral

O estudo tem como objetivo principal identificar um possível  aumento do diagnóstico do TDAH na última década e a consequente hipermedicalização na infância e adolescência.

Objetivos Específicos

  • Discutir as implicações do uso indiscriminado de metilfenidato na atualidade, reforçando uma atitude crítica face à medicalização infanto-juvenil.
  • Analisar de forma crítica o papel dos profissionais de saúde. 
  • Avaliar se há capacitação dos profissionais de saúde que estão em contato com crianças e adolescentes.

METODOLOGIA

O estudo trata-se de uma revisão de literatura sistemática de caráter quantitativo. Esse estudo foi realizado por meio de pesquisas nas bases de dados PubMed, Scielo e Google Acadêmico, utilizando os descritores: “Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade’’, ‘’Sobremedicalização”, “Sobrediagnóstico”, “Psicoestimulantes”, “Analépticos”. Os critérios de inclusão são: artigos publicados a partir de 2010, nos idiomas em português e inglês. Foram encontrados 22 artigos, sendo 9 deles excluídos e 13 artigos selecionados dentro dos critérios e descritos na tabela 2. 

RESULTADOS

Durante a pesquisa foram selecionados 13 artigos e foram organizados por ordem de ano de publicação na tabela 2. 

O destacado em rosa faz uma análise mundial sobre a prescrição de metilfenidato, e conclui que existe uma diminuição do diagnóstico de TDAH em crianças e um aumento significativo em adolescentes e adultos mais velhos, com um padrão de uso de medicamentos diferente em comparação com crianças. 

Os destacados em amarelo, que totalizam três artigos, observaram um aumento do diagnóstico de TDAH nos dias de hoje, juntamente com um aumento da dispensação do metilfenidato, que é encorajado pela indústria farmacêutica, pois trata-se de um nicho rentável. Luíse Kazda entende que são necessários estudos de alta qualidade sobre benefícios e malefícios ao longo prazo do diagnóstico e tratamento da doença em jovens com sintomas mais leves (KAZDA et al., 2021).

Em azul, existem cinco artigos que contemplam a importância da realização de projetos de capacitação de profissionais de saúde que estão em contato com os pacientes e familiares, estabelecimento de critérios diagnósticos mais consistentes, atuação de outros profissionais além do médico, como psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais e desenvolvimento de projetos que contemplem intervenções no ambiente escolar e familiar.

Os destacados em verde constatam que apesar do uso do medicamento metilfenidato ter efeitos colaterais relevantes, seu uso acarreta mais benefícios do que malefícios. Sendo observado remissão de sintomas do TDAH e melhora significativa no rendimento escolar, na comunicação, na leitura e na escrita.

Tabela 2: Descrição dos artigos selecionados, organizados em ordem de ano de publicação.

DISCUSSÃO

Sobrediagnóstico

Estudos atuais sugerem uma situação de sobrediagnóstico de TDAH em crianças e adolescentes, onde profissionais da saúde, pais e professores utilizam outros fatores para fundamentar uma epidemia de diagnósticos e não de transtornos mentais na realidade (AMORIM, 2022).

Atualmente, sabe-se que a explicação mais comum para o aumento tão significativo na prescrição de medicamentos para TDAH, dada pela classe médica, é o maior conhecimento acerca do transtorno e, portanto, o maior número de diagnósticos. Essa afirmação, por sua vez, leva a duas outras considerações: o acesso à informação e a falta de conhecimento para interpretá-las. É possível perceber que o acesso a internet facilitou a vida dos indivíduos, principalmente em relação à saúde, já que essa ferramenta possibilitou um maior conhecimento sobre o funcionamento de seus organismos, sensações e sintomas. Dessa forma, observa-se que a busca por sintomas comuns a diversos diagnósticos direciona, muitas vezes, o pensamento para um possível transtorno de atenção e hiperatividade, o que, por sua vez, torna-se uma ferramenta de autodiagnóstico e um fator importante para automedicação. Com isso, observa-se uma busca incessante de medidas para controlar o suposto transtorno e um consequente aumento da medicalização, trazendo inúmeros problemas de saúde para a  criança e o adolescente (AMORIM, 2022).

Nesse sentido, nota-se que a sociedade vive de forma acelerada e pressionada a atingir altos padrões de desempenho e funcionalidade. Como consequência, crianças lidam desde a pré-escola com essas cobranças e expectativas, uma vez que são matriculadas precocemente nas escolas. As instituições, por sua vez, com o intuito de demonstrar melhor ensino e conhecimento, iniciam a alfabetização precocemente, expondo essa criança a conteúdos de forma muito intensa desde cedo. Nesse contexto, é possível perceber que crianças e adolescentes, submetidos a estímulos superiores a sua faixa etária desde a alfabetização, sofrem consequências no seu desenvolvimento, impactando no seu ciclo social e acadêmico (AMORIM,2022). Além disso, observa-se que, muitas vezes, a criança que não se adapta aos altos padrões de exigência, é associada erroneamente a transtornos de atenção como o TDAH, sem um diagnóstico completo, o que corrobora com um grande impacto psicológico, social e acadêmico para essa criança.

Sobremedicalização

A medicalização social, ou sobremedicalização, é um processo pelo qual problemas antes não médicos são definidos ou tratados como problemas médicos, usualmente em termos de doenças (Conrad, 1992)

O uso indiscriminado de medicamentos por pessoas que não têm o diagnóstico correto da doença pode, além de causar danos baseados nos efeitos adversos, implicar numa falsa impressão de que o tratamento não é efetivo, minando a credibilidade e até mesmo aumentando o estigma sobre a doença, já que seu tratamento não seria, supostamente, tão eficaz.

A percepção dos pais, educadores e até mesmo dos médicos sobre o comportamento infantil normal e a pressão sobre o desempenho das crianças teria aumentado desproporcionalmente (Tesser, CD; 2019) podendo ser deturpada por conta dessa sobremedicalização. Desse modo, inicia-se um ciclo vicioso e paradoxal no “tratamento” de crianças saudáveis. 

Evitar a sobremedicalização realizada pelos profissionais e os danos iatrogênicos associados foi chamado na medicina de família e comunidade de ‘prevenção quaternária’ (P4) (Jamoulle, 2015). Esse movimento busca mitigar tais danos em paralelo com a desassociação na população da percepção vigente de que mais medicações implicam em mais saúde, oferecendo “aos pacientes a oportunidade de desmedicalizar sua própria atitude em relação à dor, incapacidade, desconforto, envelhecimento, nascimento e morte” (Tesser, CD; 2019).

Políticas Públicas 

Na maioria dos casos, o transtorno de atenção e hiperatividade somente é reconhecido quando a criança ingressa na escola, pois é o período em que as dificuldades de atenção e inquietude são percebidas com maior frequência pelos professores quando comparadas com outros alunos da mesma idade e ambiente. Isso reflete a importância da instituição no diagnóstico da doença. Agitação, desorganização na questão acadêmica, dificuldade de manter relações de amizade com os demais de sua idade e o fracasso escolar são manifestações que acompanham o transtorno hiperativo. Essas características geralmente se destacam na vida escolar, sendo assim ainda mais possível distinguir essas crianças de seus colegas que não possuem o transtorno (ARGOLLO, 2003).

Os procedimentos necessários para o diagnóstico de TDAH envolvem a coleta de informações dos pais, dos professores e da própria criança. Os pais são, geralmente, bons informantes, enquanto os professores tendem a superestimar os sintomas. Além de coletar as queixas dos pais, estes devem responder ao protocolo padronizado do DSM-6 e aos professores devem ser encaminhados questionários específicos para serem respondidos. (ARGOLLO, 2003)

Dessa forma, é necessário que sejam sancionados projetos de lei como O Projeto de Lei nº 7.081, de 2010, do Senado Federal, que tem como objetivo instituir, no âmbito da educação básica, a obrigatoriedade da manutenção de programas de diagnóstico e tratamento da dislexia e do TDAH, por meio da atuação de equipes multidisciplinares, compostas por educadores, psicólogos, psicopedagogo, médicos e fonoaudiólogos (BRASIL, 2010).

Em relação a equipe de saúde, além de investigar a presença dos sintomas descritos pelo DSM-5 (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION [APA], 2014), torna-se importante conhecer as condições acadêmicas, psicológicas, familiares e sociais da criança, para que seja possível delinear um plano de intervenção adequado para tratamento (GRAEFF, VAZ, 2008).

Dessa forma, fica claro que quanto mais completa for a avaliação, menor a possibilidade de equívocos no diagnóstico, favorecendo o delineamento de um plano terapêutico para o paciente (GRAEFF, VAZ, 2008). O processo diagnóstico deve incluir anamnese, aplicação de testes neuropsicológicos, integração dos resultados à história de vida do paciente, deve realizar discussão e encaminhamentos para outros profissionais e, finalmente, conduzir o encontro de devolução com os pais e os filhos com as orientações e as indicações necessárias para o tratamento (ERBS, 2010). Além disso, atualmente é reconhecida a importância da abordagem multidisciplinar na avaliação clínica e na criação de modelos adequados de diagnóstico e tratamento para pessoas com TDAH (PEREIRA et al, 2005).

CONCLUSÃO

Conclui-se que as equipes de saúde, pais e professores devem estar atentos ao potencial de sobrediagnóstico do transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, especialmente para crianças com TDAH “ligeira” ou “subclínica”, no qual os danos do diagnóstico e da medicação provavelmente ultrapassam quaisquer benefícios potenciais. Somado a isso, é de suma importância, por parte da área da saúde, analisar e propor estratégias críticas ao uso e prescrição indiscriminada de drogas para crianças, para que os profissionais se comprometam com a instalação de políticas educativas e de saúde, a fim de avaliar a real necessidade  na prescrição e encaminhamento indiscriminado de crianças para a realização de diagnósticos e recomendações de administração de psicotrópicos.
Nesse sentido, é essencial investigar cada caso na sua extrema individualidade, excluindo qualquer outro possível diagnóstico diferencial, recusando diagnósticos rápidos, achismos e auto-diagnósticos, valorizando, dessa forma, a importância de um tratamento integrado e multidisciplinar, focando, também, nos componentes ambientais, estilo de vida e avaliando a necessidade de tratamento farmacológico.

Além disso, cabe ressaltar a importância da abordagem do tema durante a graduação do curso de Medicina, com o objetivo de ampliar o conhecimento, a fim de que esse diagnóstico seja feito de uma forma mais correta. Como forma de solucionar esse obstáculo, cabe ao Ministério da educação e cultura, em parceria com o Conselho Regional de Medicina, desenvolver uma carga horária obrigatória no currículo médico, que aborde sobre a importância de um diagnóstico bem feito de TDAH, além de incentivar o uso racional de medicamentos, destacando as consequências do seu uso indiscriminado e abusivo.

Por fim, deve-se tornar instituído nos sistemas educacionais, com ênfase no ensino fundamental, a orientação dos profissionais da educação que possuem contato direto com essas crianças e adolescentes, visto que os professores atualmente são considerados “diagnosticadores” primários de problemas cognitivos e emocionais das crianças. Logo, esses precisam ser capacitados para percepção sobre tal doença, sabendo inclusive diferenciar que nem todos os comportamentos estão atrelados ao TDAH, tornando essa síndrome mais profissional e menos banalizada.

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