SIMILARIDADES E DISSIMILARIDADES DA PERSONAGEM “MAPINGUARI”

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch1020240818656


Lucineide Souza de Morais Ribeiro1


Resumo

Neste artigo, exploramos os fundamentos científicos do pensamento humano voltado para a produção e análise de narrativas, conforme apresentados pelos estudiosos Vansina e Bruner. Vansina propôs o modo narrativo, valorizando a interpretação simbólica e a apreciação estética, enquanto Bruner destacou o modo lógico-analítico, com ênfase na abordagem analítica e científica. Ambos reconheceram a importância da estrutura mental na moldagem das narrativas e na transmissão cultural. Além disso, discutimos a relevância da tradição oral na preservação da identidade cultural e na transmissão de conhecimentos ancestrais, assim como as características da aprendizagem propostas por Bruner. Embora haja similaridades entre as teorias de Vansina e Bruner, cada uma oferece uma perspectiva distinta sobre a produção e análise de narrativas. Por fim, faz uma análise das similaridades e dissimilaridades. Onde tem como resultados:  Similaridades: Bruner valoriza o papel ativo do aprendiz no processo de aprendizagem, enfatizando a importância da motivação e da participação ativa do aluno na construção do conhecimento. Dissimilaridades: Não há uma característica específica sobre a disposição dos indivíduos para aprender na teoria de Bruner.

Palavras-chave:   Mapinguari. Similaridades e dissimilaridades. Narrativas. 

INTRODUÇÃO

A narrativa é uma forma fundamental de expressão humana, presente em diferentes culturas e manifestações artísticas ao longo da história. A compreensão de como as narrativas são produzidas e analisadas pela mente humana é um tema complexo, mas essencial para entendermos a natureza da criação e interpretação de histórias.

Neste artigo, vamos explorar os fundamentos científicos do pensamento humano voltado para a produção e análise de narrativas, conforme apresentados pelos estudiosos Vansina e Bruner. Ambos contribuíram para a compreensão das diferentes formas de pensamento que influenciam a criação e interpretação de histórias.

Inicialmente, vamos examinar o modo paradigmático ou lógico-analítico, destacado por Bruner. Esse modo de pensamento é caracterizado por uma abordagem analítica, lógica e científica, buscando estabelecer provas formais e empíricas para sustentar afirmações. Veremos como esse modo de pensamento se relaciona com a linguagem e a necessidade de consistência e não-contradição.

Em seguida, vamos explorar o modo narrativo ou paradigmático-narrativo proposto por Vansina. Esse modo de pensamento é mais holístico, interpretativo e baseado na experiência pessoal e na subjetividade. Vamos analisar como esse modo de pensamento valoriza a compreensão contextual, a interpretação simbólica e a apreciação estética, destacando a importância das narrativas para a expressão criativa e a transmissão de experiências compartilhadas.

Além disso, vamos examinar a noção de “estrutura mental” conforme discutida por Vansina e Bruner. Essa ideia envolve as representações coletivas inconscientes de uma civilização, que influenciam todas as formas de expressão e moldam a concepção de mundo de uma sociedade. Vamos explorar como as estruturas mentais moldam as narrativas e as formas como são transmitidas e recebidas em diferentes contextos culturais e sociais.

A tradição oral desempenhou um papel fundamental na transmissão de conhecimento, histórias e tradições ao longo da história da humanidade. Nas sociedades em que a escrita não estava desenvolvida, a palavra falada era a principal forma de preservar a memória coletiva e transmitir informações importantes de geração em geração. Dentro desse contexto, surgiram as narrativas orais, que desempenhavam diversas funções dentro de uma comunidade. 

É importante reconhecer a importância da tradição oral na preservação da identidade cultural e na transmissão do conhecimento ancestral. No entanto, também devemos considerar as limitações e desafios associados à tradição oral, como erros de memória e distorções ao longo do tempo. Com o avanço da tecnologia da informação, as sociedades têm adotado métodos de comunicação mais duradouros, mas a tradição oral continua sendo uma parte significativa da herança cultural de muitas comunidades.

A verdade e a verossimilhança desempenham papeis significativos na criação e compreensão de narrativas. Enquanto a verdade refere-se à correspondência dos eventos e informações apresentados com a realidade, a verossimilhança diz respeito à plausibilidade e coerência interna da história. Embora sejam conceitos distintos, eles estão intrinsecamente ligados na construção de uma narrativa envolvente.

Ao examinar a importância desses conceitos, estudiosos como Vansina e Bruner enfatizam diferentes aspectos. Vansina destaca que certas narrativas, especialmente aquelas transmitidas oralmente ao longo das gerações, tornam-se paradigmas de comportamento ideal e de valor, independentemente de sua veracidade factual. Ele ressalta que a qualidade dessas narrativas não deve ser medida pela verdade objetiva, mas sim pela sua capacidade de transmitir modelos de comportamento e valores que são respeitados e seguidos pela comunidade.

Existem 10 características principais identificadas por Bruner em sua teoria. Essas características abrangem diferentes aspectos da aprendizagem, desde a disposição dos indivíduos para aprender até a forma como eles organizam e processam informações. Analisar as similaridades e dissimilaridades dessas características pode ajudar a compreender melhor a abordagem de Bruner em relação à aprendizagem.

Neste contexto, vamos explorar as similaridades e dissimilaridades das 10 características de acordo com a teoria de Bruner.

  1. O MONSTRUOSO MAPINGUARI TRADICIONAL E INFANTIL

Figura 1:  narrativa tradicional: O Mapinguari

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Monstro da Amazônia;
Demônio do mal;
Não tem utilidade;
Mata sempre para comer;
Homem agigantado;
Cabelos negros e longos; 
Recobre todo o corpo;
Unhas em forma de garras
Vulnerável no umbigo;
Não anda durante a noite;
Anda na mata emitindo berros altos, soltos, curtos;
Habita a floresta;
Boca rasgada do nariz ao estômago;
Boca, num corte vertical; 
Lábios rubros estão sujos de sangue;
Grande braço atlético;
Predileção pela cabeça das vítimas;
Arranca a carne de suas vítimas; 
Em largo pedaços;
Teria surgido da transformação de um índio
Velho;
Pés são virados para trás[opistopode]; 
E redondos [hipopode];
Percorre a mata nos dias santos e domingo;
Reina na vastidão amazônica pelo prestígio do medo;

Fonte: Luís da Câmara Cascudo {1898-1986, (2002)}, p. 222 e 223

Figura 02: A versão da narrativa infantil: A lenda

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Bicho mais temido da floresta; 
Enorme gigante, peludo; 
Ao ver sua aparência na água chorou de tristeza; 
Passou a viver intensamente pela floresta; 
Só um olho na testa; 
Isso causou muito assombro aos invasores de tristeza;
De repente, aquele monstro se transformou novamente em um belo índio; 
Fantástico herói;

Fonte: AM0RIM, Enilson, Mapinguari: A lenda  2009 Rio Branco-AC 

Figura 03: O Casamento da filha do Mapinguari

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Gigante Mapinguari;
Bicho tão feio;
Peludo; 
Narigão comprido e torto;
Orelhas horrorosas;
Grande mapinguari;
Pai coruja, de tão emocionado chorava feito criança

Fonte:  Burgel,Roberto, O casamento da filha do Mapinguari; ilustrado por Carvalho, Julio -1ªed.Rio de Janeiro:Rocco,2021.  

2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS

2.1 Dois modos de pensamento

Vansina e Bruner foram dois estudiosos que contribuíram para a compreensão do pensamento humano voltado para a produção e análise de narrativas. Eles propuseram diferentes modos de pensamento que influenciam a criação e interpretação de histórias.

Segundo Bruner (1997), o modo paradigmático ou lógico-analítico de pensamento é caracterizado por uma abordagem analítica, lógica e científica. Ele se baseia em uma estrutura de conhecimento objetiva, busca identificar relações de causa e efeito e procura estabelecer leis gerais e princípios universais. No contexto das narrativas, o pensamento paradigmático tende a enfatizar a estrutura, a causalidade e a coerência lógica das histórias. Esse modo de pensamento é mais comumente associado à ciência, à filosofia e à lógica formal.

 Por outro lado, Vansina (1982) argumenta que no modo narrativo ou paradigmático narrativo os seres humanos possuem um modo narrativo de pensamento. Esse modo é mais holístico, interpretativo e baseado na experiência pessoal e na subjetividade. Ele valoriza a compreensão contextual, a interpretação simbólica e a apreciação estética. No contexto das narrativas, o pensamento narrativo se concentra nos elementos emocionais, na expressão criativa e nas experiências compartilhadas. Ele está mais relacionado às artes, à literatura e às tradições culturais.

Nota-se que esses dois modos de pensamento não são necessariamente excludentes, e muitas vezes coexistem e se complementam na mente humana. A forma como uma pessoa cria ou interpreta uma narrativa pode depender da situação, do contexto cultural e das influências individuais. Compreender esses modos de pensamento pode ser útil para analisar como as narrativas são produzidas, transmitidas e recebidas em diferentes contextos culturais e sociais.

A noção de “estrutura mental” refere-se às representações coletivas inconscientes de uma civilização ou grupo social, que influenciam sua forma de expressão e moldam sua concepção de mundo. Essas representações coletivas são compartilhadas pelos membros de uma comunidade e podem incluir crenças, valores, mitos, símbolos e padrões de pensamento que são internalizados e transmitidos de geração em geração (VANSINA, 1982)

A ideia de estrutura mental está relacionada ao conceito de inconsciente coletivo proposto por Carl Jung, um dos pioneiros da psicologia analítica. Segundo Jung, o inconsciente coletivo é uma camada profunda da psique humana que contém elementos universais e arquetípicos compartilhados por todas as culturas. Esses elementos influenciam a maneira como percebemos, interpretamos e expressamos o mundo ao nosso redor (VANSINA, 1982)

As estruturas mentais não são conscientemente construídas, mas são internalizadas e influenciam nossos pensamentos, emoções e comportamentos de forma inconsciente. Elas moldam nossas narrativas, nossas formas de arte, nossas instituições sociais e até mesmo, nossas interações cotidianas. Por exemplo, a estrutura mental de uma cultura pode determinar quais histórias são consideradas importantes, quais valores são privilegiados e como as emoções são expressas (VANSINA, 1982)

Diante do exposto acima pode-se ressaltar que as estruturas mentais não são fixas ou imutáveis, mas podem evoluir e se transformar ao longo do tempo à medida que uma sociedade passa por mudanças sociais, culturais e históricas. A análise das estruturas mentais pode ajudar a compreender as raízes profundas das narrativas e expressões culturais, bem como a forma como elas são influenciadas por fatores contextuais e históricos.

No modo lógico científico, também conhecido como modo paradigmático, o pensamento é caracterizado pelo uso de argumentos lógicos e empíricos com o objetivo de estabelecer a veracidade de uma afirmação. Nesse modo de pensamento, a linguagem utilizada é guiada pela consistência e pela não-contradição. Os argumentos empregados no modo lógico científico são estruturados de forma a apresentar evidências formais e empíricas que sustentem uma determinada afirmação. Procura-se convencer alguém da veracidade de uma ideia por meio da apresentação de provas, dados, experimentos e observações que possam ser objetivamente avaliados e replicados (BRUNER, 1997)

A linguagem utilizada no modo lógico científico de pensamento é precisa, clara e busca evitar contradições lógicas. As afirmações são formuladas de maneira consistente e coerente, seguindo princípios de racionalidade e lógica formal. No âmbito científico, o modo lógico científico é amplamente empregado na formulação de teorias, na realização de experimentos, na coleta de dados e na análise dos resultados. Esse modo de pensamento busca estabelecer uma compreensão objetiva e baseada em evidências do mundo natural e dos fenômenos observáveis. (BRUNER, 1997)

O domínio do pensamento lógico científico não se limita apenas aos elementos observáveis em si, mas também abrange o conjunto de “mundos possíveis” que podem ser logicamente gerados e testados em relação aos elementos observáveis. Isso significa que o pensamento lógico científico envolve a capacidade de formular hipóteses, construir modelos teóricos e realizar inferências a partir das observações disponíveis (BRUNER, 1997)

De acordo com Bruner (1997), a narrativa é construída em torno da preocupação com a condição humana e pode ter desenlaces cômicos, tristes ou absurdos. Ao contrário do modo paradigmático, a narrativa não requer com probabilidade, ou seja, não precisa ser comprovada ou verificada empiricamente, como é o caso das partes especulativas da física teórica. Nas narrativas naturais, há um padrão estrutural característico. Elas geralmente começam com um estado estável ou “legitimado”, ou seja, uma situação inicial estabelecida e aceita como a realidade dentro do universo da história. No entanto, esse estado estável é rompido por algum evento ou desafio que cria uma crise na história. 

A crise na narrativa gera um desequilíbrio ou conflito que precisa ser resolvido. Essa resolução é alcançada por meio de uma compensação, ou seja, ações tomadas pelos personagens ou desenvolvimentos na trama que visam restaurar um estado de equilíbrio ou alcançar uma nova ordem. É importante notar que a repetição desse ciclo de estabilidade, crise e resolução é uma possibilidade em aberto nas narrativas. As histórias podem seguir esse padrão repetidamente, criando uma série de eventos interconectados, ou podem optar por encerrar a narrativa após uma resolução específica (BRUNER, 1997)

Esse enfoque narrativo difere do modo paradigmático, que busca estabelecer princípios universais e leis gerais com base na consistência lógica e na comprovação empírica. Enquanto o modo paradigmático se concentra na busca por explicações e previsões objetivas, o modo narrativo valoriza a expressão criativa, a experiência pessoal e a exploração de temas humanos, emocionais e simbólicos. Bruner (1997) enfatiza que a narrativa é uma forma fundamental de compreensão humana e uma maneira poderosa de dar significado e sentido às nossas experiências. Ela nos permite explorar a complexidade da condição humana, abordar questões existenciais e emocionais, e refletir sobre a vida e o mundo de maneiras que vão além da lógica formal e da comprobabilidade científica.

Bruner (1997) discute a possibilidade de uma “estrutura profunda limitadora na narrativa”, que não impede a existência de realizações especiais e bem formadas que resultam em boas histórias. Essa hipótese tem sido formulada por teóricos literários de diferentes formações acadêmicas, como antropólogos, filósofos, linguistas, historiadores e folcloristas. Segundo o autor, essa visão sugere que existem certas estruturas profundas ou padrões subjacentes nas narrativas que podem impor limitações ou restrições à forma como as histórias são construídas. Essas estruturas podem ser influenciadas por fatores culturais, históricos e sociais, bem como pelas convenções narrativas estabelecidas ao longo do tempo.

Autores como Victor Turner (1982), Tzvetan Todorov (1977), Hayden White (1981) e Wladimir Propp (1968) são citados por Bruner como defensores dessa visão. Eles exploraram diferentes aspectos da estrutura narrativa em seus campos de estudo, incluindo a antropologia, a filosofia, a linguística, a história e o folclore. No entanto, Bruner observa que nem todos os estudiosos da literatura compartilham dessa visão, citando Barbara Herrnstein-Smith (1981) como uma pesquisadora que se posiciona de forma diferente.

A questão levantada por Bruner (1997) é se essa suposta estrutura profunda limitadora nas narrativas realmente existe e até que ponto ela influencia a criação de histórias. Ele deixa essa pergunta em aberto, sugerindo que a análise mais aprofundada das narrativas e a exploração de diferentes teorias literárias podem contribuir para uma compreensão mais clara dessa questão. Em essência, Bruner reconhece a existência de diferentes perspectivas sobre a estrutura narrativa, mas destaca a importância das “realizações especiais bem formadas” e das “boas histórias” que podem emergir, mesmo dentro das possíveis limitações impostas por essa estrutura profunda.

2.2 A civilização oral, o contexto social da tradição e as narrativas

A civilização oral é um termo utilizado para descrever sociedades que não possuem um sistema de escrita desenvolvido e dependem principalmente da comunicação oral para transmitir conhecimento, histórias e tradições de geração em geração. Nas sociedades orais, a palavra falada é considerada a principal forma de preservar a memória coletiva e transmitir informações importantes. O contexto social da tradição desempenha um papel fundamental na civilização oral. As tradições são passadas de uma geração para outra dentro de uma comunidade específica e são moldadas pelas normas culturais, valores, crenças e práticas dessa comunidade. As narrativas orais, como mitos, lendas, contos e histórias, são frequentemente usadas para transmitir essas tradições e preservar a identidade cultural de um grupo (VANSINA, 1982)

As narrativas orais têm várias funções dentro de uma sociedade oral. Elas podem ser usadas para transmitir conhecimentos históricos, ensinar lições morais, explicar fenômenos naturais, preservar mitos e lendas, entreter e fortalecer o senso de identidade coletiva. As narrativas orais são frequentemente memorizadas pelos contadores de histórias e apresentadas em rituais, festivais ou ocasiões especiais. Uma característica importante das narrativas orais é a sua natureza fluida e adaptável. Ao longo do tempo, as narrativas podem ser modificadas, adicionadas ou recontextualizadas pelos contadores de histórias para se adequarem às necessidades e interesses da comunidade em evolução. Isso permite que as narrativas orais permaneçam relevantes e significativas para as gerações futuras, mesmo em um contexto em constante mudança (VANSINA, 1982)

No entanto, é importante ressaltar que a tradição oral também apresenta desafios. A transmissão oral do conhecimento está sujeita a erros de memória, distorções e omissões. Além disso, sem um sistema de escrita, as sociedades orais podem enfrentar dificuldades para preservar informações complexas e detalhadas ao longo do tempo. Com o desenvolvimento da escrita e outras formas de tecnologia da informação, muitas sociedades que anteriormente dependiam da tradição oral passaram a adotar métodos de comunicação mais duradouros, como a escrita, a impressão e a mídia digital. Essa transição teve um impacto significativo nas culturas e tradições orais, alterando a forma como as histórias e o conhecimento são transmitidos e preservados (VANSINA, 1982)

A civilização oral é caracterizada pela dependência da comunicação oral para transmitir conhecimento, histórias e tradições. As narrativas orais desempenham um papel central nesse processo, preservando a identidade cultural e transmitindo informações importantes de geração em geração. No entanto, com o avanço da tecnologia da informação, a tradição oral tem enfrentado mudanças e desafios significativos.

Segundo Vansina (1982), a categoria de narrativa histórica abrange a maioria das mensagens históricas conscientes e possui uma dupla liberdade em termos de forma e escolha de palavras. Essa liberdade permite uma variedade de combinações, remodelações, reajustes de episódios, ampliação de descrições, desenvolvimentos e assim por diante. Devido a essa flexibilidade, é difícil reconstruir um arquétipo ou uma versão original dessas narrativas históricas. Dentro dessa categoria de “narrativa”, Vansina inclui diversos tipos de narrativas, como narrativas gerais, histórias locais, familiares, épicas, etiológicas, estéticas, memórias pessoais e até mesmo precedentes legais. Além disso, também podem ser considerados comentários sobre registros orais e notas ocasionais relacionadas a essas narrativas. Essas categorias amplas de narrativas históricas mostram a diversidade e a variedade de formas como as sociedades tradicionais transmitem e preservam sua história e conhecimento por meio da tradição oral. Cada tipo de narrativa desempenha um papel único na preservação da memória coletiva e na transmissão de informações importantes de geração em geração.

Vansina (1982) destaca que todas as histórias têm a tendência de se tornarem paradigmáticas e, consequentemente, míticas, independentemente de seu conteúdo ser “verdadeiro” ou não. Isso significa que as histórias se tornam modelos de comportamentos ideais e valores dentro da comunidade, influenciando a forma como os membros do grupo se veem e se relacionam com sua identidade cultural. Essa idealização e criação de estereótipos populares através das narrativas podem ser uma maneira de fortalecer a coesão social e preservar a identidade cultural de um grupo étnico. No entanto, é importante reconhecer que essa idealização nem sempre reflete uma representação precisa da realidade histórica ou social. As narrativas tendem a simplificar e romantizar certos aspectos da cultura e história, destacando elementos positivos e omitindo ou modificando aqueles que não se encaixam no ideal construído.

2.3 A verdade e a verossimilhança em narrativas

Vansina destaca (1982) a ideia de que, ao estudar narrativas orais, especialmente poemas e histórias tradicionais, o aspecto mais importante não é determinar se elas são verdadeiras ou se os personagens realmente existiram. Em vez disso, o valor dessas narrativas está na sua capacidade de se tornarem modelos paradigmáticos de comportamento ideal e de valor. Nesse contexto, a qualidade das narrativas não é medida pela verdade factual dos eventos, mas sim pela sua verossimilhança. A verossimilhança refere-se à percepção de conexão, coerência e harmonia entre os fatos e acontecimentos que compõem a história, bem como os personagens envolvidos. Em outras palavras, o que importa é a capacidade da narrativa de transmitir modelos de comportamento ou valores a serem seguidos ou respeitados.

Essa abordagem destaca que o valor cultural e social dessas narrativas reside na sua capacidade de transmitir sabedoria, normas sociais, tradições e lições importantes para a comunidade. Não se trata de verificar sua veracidade histórica, mas sim de reconhecer seu poder como formas de expressão cultural e transmissão de conhecimento. Dessa forma, a dicotomia entre verdade e mentira não é relevante nesse contexto. O foco está na percepção da verossimilhança, ou seja, na capacidade da narrativa de ser plausível e coerente dentro de seu próprio universo ficcional. A importância reside na mensagem transmitida e nos valores culturais que são compartilhados por meio da história, independentemente de sua veracidade factual (VANSINA, 1982).

Bruner (1991) destaca a visão de que organizamos nossa experiência e memória de acontecimentos humanos por meio de narrativas. Ele afirma que histórias, desculpas, mitos e razões são formas convencionais nas quais estruturamos nossa compreensão da realidade. Essas narrativas são transmitidas culturalmente e moldadas por normas e influências sociais. O autor enfatiza que as narrativas são influenciadas por diferentes níveis de domínio individual, bem como pelas interações com outras pessoas, como mentores e colegas. Essas interações estimulam acréscimos e adaptações nas narrativas, permitindo que evoluam e sejam enriquecidas com novas nuances culturais.

A perspectiva de Bruner (1991) destaca o papel fundamental das narrativas na construção da realidade e na maneira como damos sentido aos eventos e experiências. As narrativas não são apenas formas de comunicação, mas também moldam nossa compreensão do mundo e influenciam nossa percepção de nós mesmos e dos outros. Ao reconhecer a natureza convencional e culturalmente transmitida das narrativas, Bruner ressalta que elas estão sujeitas a mudanças e adaptações ao longo do tempo. Elas refletem não apenas as experiências individuais, mas também as influências sociais e os processos coletivos de significação.

Em suma, a abordagem de Bruner destaca a importância das narrativas como formas fundamentais de organização e construção da realidade, influenciadas por fatores individuais, sociais e culturais. Essas narrativas não são estáticas, mas evoluem e se adaptam em resposta a interações e influências externas, tornando-se um elemento central na forma como compreendemos e comunicamos nossa experiência humana.

3 ANÁLISE SIMILARIDADES E DISSIMILARIDADES DE ACORDO COM AS 10 CARACTERÍSTICAS DE BRUNER

Na figura 01 (A narrativa tradicional: O Mapinguari), O Mapinguari é um monstro lendário da Amazônia, frequentemente descrito como um demônio do mal. Acredita-se que ele não tenha utilidade e mate suas presas para se alimentar. O Mapinguari é descrito como um homem agigantado com cabelos negros e longos que recobrem todo o corpo. Suas unhas são em forma de garras e ele tem uma vulnerabilidade específica no umbigo. Diz-se que ele não anda durante a noite, mas percorre a mata emitindo berros altos, soltos e curtos. Essa criatura habita a floresta amazônica e possui uma boca rasgada do nariz ao estômago, com lábios rubros sujos de sangue. Ele tem um grande braço atlético e uma predileção pela cabeça das vítimas, arrancando a carne em largos pedaços. Há uma crença de que o Mapinguari tenha surgido da transformação de um índio velho. Os pés do Mapinguari são virados para trás (opistopode) e redondos (hipopode). Ele é dito percorrer a mata nos dias santos e domingos, reinando na vastidão amazônica pelo prestígio do medo que inspira nas pessoas. (CASCUDO, 2002).

Já na figura 02 (A versão da narrativa infantil: A lenda), o Mapinguari teria visto sua própria aparência refletida na água e ficou tão triste com sua aparência que passou a viver intensamente pela floresta. Essa peculiaridade de ter apenas um olho na testa causava muito assombro aos invasores e gerava tristeza nele.

No entanto, repentinamente, esse monstro se transformou novamente em um belo índio, tornando-se um fantástico herói. O Mapinguari é uma figura mitológica muito presente nas histórias e tradições indígenas da região amazônica. Ele é considerado o protetor da floresta e dos animais, punindo aqueles que desrespeitam a natureza (AMORIM, 2009).

Por outro lado, na figura 03 (O Casamento da filha do Mapinguari), o Mapinguari é retratado como um gigante peludo com um narigão comprido e torto. Suas orelhas são descritas como horrorosas. Além disso, o Mapinguari é um pai coruja e que ele fica tão emocionado que chega a chorar feito criança. Essa característica adiciona um aspecto emocional à figura lendária, mostrando um lado mais sensível do Mapinguari. (BURGEL E ROBERTO, 2021)

As características de Bruner, um psicólogo cognitivo, podem ser aplicadas para analisar as similaridades e dissimilaridades entre as narrativas do Mapinguari e do Curupira com base em suas características. Vamos analisar cada uma delas:

Todas as narrativas descrevem figuras lendárias e mitológicas da região amazônica. Elas não são retratadas como seres reais, mas sim como elementos do folclore e da cultura local. Em relação à característica da “realidade” na análise da narrativa do Mapinguari, é importante destacar que ele é uma figura lendária e mitológica, não sendo considerado um ser real. O Mapinguari faz parte do folclore e das tradições culturais da região amazônica, sendo retratado em histórias transmitidas oralmente ao longo das gerações. Embora o Mapinguari seja uma criação da imaginação e não possua uma existência física comprovada, ele desempenha um papel significativo na cultura amazônica como uma figura de medo e respeito. As narrativas sobre o Mapinguari refletem as crenças e valores das comunidades locais, transmitindo conhecimentos e ensinamentos sobre a relação entre o homem e a natureza. Portanto, a realidade associada ao Mapinguari está dentro do âmbito da crença e da tradição cultural, em vez de ser uma entidade tangível e comprovada pela ciência (BRUNER, 1969)

Ambas as figuras possuem características complexas e distintas. O Mapinguari é descrito como um monstro da Amazônia com várias características físicas e comportamentais, no pensamento dos três escritores. O  mapinguari é representado como um guardião da floresta com um olho na testa. O Mapinguari é descrito com vários elementos físicos detalhados, como cabelos negros e longos, unhas em forma de garras, boca rasgada do nariz ao estômago e uma vulnerabilidade no umbigo. Essa descrição detalhada contribui para a complexidade da figura. O Mapinguari possui um comportamento diversificado, matando para se alimentar, emitindo berros altos e tendo uma predileção pela cabeça das vítimas. Esses diferentes comportamentos acrescentam camadas de complexidade à sua natureza. A narrativa menciona a crença de que o Mapinguari teria surgido da transformação de um índio velho. Essa origem mítica adiciona um elemento complexo à história e à identidade do Mapinguari. A inclusão do Mapinguari como um pai coruja que chora feito criança acrescenta uma dimensão emocional complexa à figura lendária, mostrando um lado mais humano ou sensível. Essas características demonstram a complexidade do Mapinguari como uma figura lendária. Ele não é apenas uma criatura assustadora, mas também possui uma história de origem, comportamentos distintos e até mesmo emoções associadas a ele. Essa complexidade torna o Mapinguari uma figura mais rica e interessante nas narrativas amazônicas (BRUNER, 1973)

O Mapinguari  tradicional é temido e descrito como um demônio do mal, enquanto o Mapinguari “A lenda” é temido pelos invasores e atua como um protetor da natureza. É descrito como um monstro temido e assustador. Sua aparência física, comportamento predatório e os berros altos que emite enquanto percorre a mata contribuem para o sentimento de medo que ele desperta nas pessoas. Ele é retratado como um predador que mata suas presas para se alimentar, com uma predileção pela cabeça das vítimas. Essa descrição ressalta sua efetividade em causar danos e aterrorizar aqueles que se deparam com ele na floresta. Embora seja temido pelos invasores, o Mapinguari também é visto como um protetor da floresta amazônica. Sua presença e natureza assustadora podem servir como um mecanismo efetivo para afastar pessoas que não respeitam o ambiente natural. (BRUNER, 1973a).

A efetividade do Mapinguari pode ser observada na sua influência na cultura local. Sua presença nas histórias e tradições amazônicas contribui para a transmissão de valores, ensinamentos e a preservação da identidade cultural das comunidades da região. Portanto, a narrativa do Mapinguari demonstra sua efetividade como uma figura que causa medo, protege a floresta e tem um impacto cultural significativo. Essa efetividade é transmitida através das narrativas e crenças populares, moldando a forma como as pessoas percebem e respeitam a natureza e a região amazônica (BRUNER, 1973).

Ambas as figuras têm um escopo geral, pois são consideradas representações lendárias da região amazônica. No entanto, suas características específicas podem variar entre diferentes comunidades e histórias locais. Em relação à generalização na narrativa do Mapinguari, é importante considerar que essa figura lendária é amplamente conhecida e retratada em diferentes comunidades e tradições da região amazônica. No entanto, as características específicas e as histórias que envolvem o Mapinguari podem variar de uma comunidade para outra.

Embora existam elementos gerais que são comumente associados ao Mapinguari, como sua aparência assustadora, comportamento predatório e conexão com a floresta, as narrativas podem diferir em detalhes específicos. Isso ocorre porque o folclore e as tradições orais são passados oralmente e podem ser influenciados por fatores como a geografia, história local e costumes das diferentes comunidades (BRUNER, 1973).

As três versões são representações abstratas, com características físicas e comportamentais que não são encontradas em seres humanos reais. A abstração na narrativa do Mapinguari está presente na representação do monstro como uma figura mitológica e lendária da Amazônia. O Mapinguari não é retratado como um ser real, mas sim como uma criação da imaginação e do folclore amazônico.

Pode-se, para maior conveniência, tornar concreta a distinção entre eles empregando uma balança de travessão, [..] Crianças muito novas podem naturalmente agir como base nos “princípios” da balança, estabelecendo comparação com sua aptidão para brincar nas gangorras: sabem que para abaixar seu lado, tudo o que têm a fazer é deslocar-se para fora do centro. Os mais velhos podem representar a balança, para si mesmo, seja por um modelo “imagens” das balanças podem ser requisitadas, com mais e mais detalhes irrelevantes, como nos diagramas típicos dos livros de iniciação à física. Temos finalmente que uma balança poderá ser descrita em linguagem concreta, sem o auxílio de diagramas, ou, melhor ainda, matematicamente, com base na lei dos momentos de Newton. […] (BRUNER, 1973b, p. 52).

A abstração também está presente nas características físicas e comportamentais do Mapinguari. Ele é descrito com cabelos negros e longos, unhas em forma de garras, boca rasgada do nariz ao estômago, e uma vulnerabilidade no umbigo. Essas características não são encontradas em seres humanos reais, contribuindo para a natureza abstrata da figura. (BRUNER, 1973a).

Além disso, o Mapinguari possui um comportamento predatório, emite berros altos e soltos, e tem uma predileção pela cabeça das vítimas. Esses comportamentos também são abstratos, destacando a natureza lendária e fictícia do personagem. (BRUNER, 1973a).

As narrativas apresentam uma estruturação coerente das características das figuras. Os elementos físicos e comportamentais são organizados de forma consistente dentro de cada história. (BRUNER, 1973a).

Contextualização: As narrativas do Mapinguari  dos três escritores são contextualizadas dentro do ambiente da floresta amazônica e das tradições culturais da região. (BRUNER, 1973a).

Predisposição narrativa: As figuras têm uma predisposição narrativa, pois são personagens em narrativas transmitidas oralmente ao longo das gerações. (BRUNER, 1973a).

Variedade de manifestações: As figuras podem apresentar variações em suas descrições e características específicas, devido às diferentes tradições e comunidades que as contam.

Aplicação cultural: O Mapinguari no pensamento dos escritores são figuras importantes na cultura amazônica, desempenhando papeis simbólicos e transmitindo valores e ensinamentos culturais. (BRUNER, 1973a).

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Em suma, as contribuições de Vansina e Bruner nos ajudam a compreender melhor os processos cognitivos e sociais envolvidos na criação e interpretação de narrativas. Suas teorias ressaltam a importância das narrativas como uma forma de transmitir conhecimento, valores culturais e experiências compartilhadas.

É fundamental reconhecer que as narrativas desempenham papeis diferentes em diferentes contextos culturais e sociais. A tradição oral, por exemplo, desempenhou um papel vital na preservação da memória coletiva e na transmissão de conhecimentos em sociedades onde a escrita não estava desenvolvida. Embora a tradição oral tenha suas limitações e desafios, ela continua sendo uma parte significativa da herança cultural de muitas comunidades.

Ao analisar a produção e a análise de narrativas, devemos considerar a importância da verdade e da verossimilhança. Embora a verdade objetiva seja valorizada em muitos contextos, Vansina destaca que certas narrativas podem se tornar paradigmas de comportamento ideal e de valor, independentemente de sua veracidade factual. A verossimilhança, ou seja, a coerência interna e a plausibilidade de uma história, também desempenha um papel crucial na construção de narrativas envolventes.

Em resumo, as narrativas são formas poderosas de expressão humana, presentes em diferentes culturas e manifestações artísticas ao longo da história. A compreensão dos fundamentos científicos por trás da produção e análise de narrativas nos permite apreciar sua importância na criação de significado, na transmissão cultural e na formação de identidade. Ao explorar as perspectivas de Vansina e Bruner, podemos ampliar nosso entendimento sobre o impacto das narrativas em nossas vidas e na sociedade como um todo.

REFERÊNCIAS 

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1Mestre em Linguística, Letras e artes, sub-área Língua Portuguesa pelo  programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em Letras com linha de Pesquisa Estudos de Diversidade Cultural, da Universidade Federal de Rondônia -UNIR