MIXOMA CARDÍACO E ASSOCIAÇÃO COM AUTOIMUNIDADE: UM RELATO DE CASO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202408052355


Jáderson Pimenta Melo


RESUMO 

As neoplasias cardíacas primárias são entidades raras, em que os mixomas são os mais frequentes. A localização mais comum é no átrio esquerdo, podendo ter recorrências, principalmente se o paciente apresentar história familiar positiva. Os sintomas constitucionais podem estar presentes em 34% dos pacientes, o que pode sugerir a presença de outras entidades sobrepostas, como as doenças autoimunes. Os mecanismos autorreativos contra o coração ainda são pouco conhecidos. Porém, alguns dados mostram que anticorpos podem desempenhar funções na gênese de tumores intracardíacos, especialmente os mixomas, como os anticorpos anti-endoteliais. Esse trabalho relata o caso de uma paciente de 35 anos portadora de lúpus com manifestação cutâneo-mucosa, com achado de um mixoma atrial em crescimento. A paciente apresenta uma história familiar positiva para mixoma atrial, com morte materna por instabilização do tumor em intraoperatório. 

PALAVRAS-CHAVE: MIXOMA ATRIAL; TUMOR CARDÍACO; AUTOIMUNIDADE; LUPUS ERITEMATOSO SISTÊMICO; 

ABSTRACT 

Primary cardiac neoplasms are rare entities, with myxomas being the most common. The most common location is in the left atrium, and recurrences may occur, especially if the patient has a positive family history. Constitutional symptoms may be present in 34% of patients, which may suggest the presence of other overlapping entities, such as autoimmune diseases. The autoreactive mechanisms against the heart are still poorly understood. However, some data show that antibodies can play roles in the genesis of intracardiac tumors, especially myxomas, such as anti-endothelial antibodies. This work reports the case of a 35-year-old patient with lupus with cutaneous-mucosal manifestation, with the finding of a growing atrial myxoma. The patient presents a positive family history of atrial myxoma, with maternal death due to intraoperative tumor instability. 

KEYWORDS: ATRIAL MYXOMA; CARDIAC TUMOR; AUTOIMMUNITY; SYSTEMIC LUPUS ERYTHEMATOSUS; 

INTRODUÇÃO 

As neoplasias cardíacas primárias são entidades raras, apresentando uma incidência entre 0,0017 e 0,28%, segundo séries de autópsias(1) . A maioria são benignas, as quais os mixomas são mais frequentes, representando cerca de 50% na população adulta(2). Na maioria dos casos, o surgimento dessa patologia tem um caráter esporádico, enquanto 10% dos mixomas apresentam um padrão familiar hereditário de surgimento(3). 

As manifestações de tais mixomas podem desencadear uma gama de sintomatologia, tanto relacionada ao prejuízo na função cardíaca, com alteração na hemodinâmica intracavitária, como ao próprio efeito de embolização de fragmentos neoplásicos. Além disso, são frequentes os sintomas constitucionais, como febre, perda de peso e inapetência, além de alterações laboratoriais que podem sugerir a presença de doença do tecido conectivo associada(4). A localização mais frequente do mixoma é no átrio esquerdo, sendo observados padrões de comportamentos à imagem do ecocardiograma, como o achado de mixoma atrial esquerdo flutuante e prolapso para o ventrículo esquerdo(5), o que justifica a sintomatologia relacionada à hemodinâmica. 

Dessa forma, o diagnóstico é realizado por meio de exames de imagem, e o ecocardiograma geralmente fornece as informações iniciais sobre presença do tumor. A ressonância magnética constitui uma opção . Devido ao potencial risco de desfechos graves relacionados, como complicações cardiovasculares, embolização e até morte súbita, a pronta avaliação cirúrgica e ressecção é indicada na maioria dos casos(5) 

Os resultados do tratamento cirúrgico geralmente são bons, com a maioria dos estudos evidenciando uma taxa de mortalidade inferior a 5%, e a recuperação pós-operatória geralmente é rápida (6). Recorrências dos mixomas atriais podem ocorrer em 6% dos casos, segundo série, sendo maior a recorrência naqueles pacientes com história familiar de mixoma, sugerindo fator hereditário(7). 

OBJETIVO 

O objetivo é relatar o caso de uma paciente portadora de LES, com achado de mixoma atrial, discutir a associação do tumor em questão com fatores autoimunes, especialmente relacionados ao lúpus, além de abordar sobre a epidemiologia do quadro e sintomatologia que pode estar presente. Tem o objetivo, inclusive, de abordar a importância da intervenção apropriada a fim de evitar desfechos desfavoráveis. 

Esse documento tem como importância auxiliar o profissional médico a avaliar e tratar o paciente amplamente, levando em consideração diagnósticos diferenciais que possam estar presentes e abordar a necessidade de intervenção precoce a fim de evitar desfechos desfavoráveis ao paciente. 

DESCRIÇÃO DO CASO 

Paciente P.M.A, 35 anos, portadora de Lúpus com acometimento cutâneo-articular, deu entrada em Unidade de Pronto Atendimento com elevação dos valores pressóricos associado a mal estar inespecífico e precordialgia não anginosa. Realizou ecocardiograma que evidenciou achado de imagem hiperecogênica pendular em átrio esquerdo com aparente adesão ao folheto anterior da valva mitral. 

Após a alta hospitalar, com o controle da sintomatologia, realizou ressonância magnética que confirmou a presença do achado, media 19x13x12mm. Desde então, perdeu seguimento médico para condução do quadro. 

Entretanto, após 8 meses, devido aos sinais de atividade de doença do lúpus, com intensa crise de poliartralgia, associado a poliartrite em cotovelos e joelhos limitantes, além de rash malar, procurou, novamente, o serviço de pronto atendimento, com internação e posterior transferência para nossa unidade hospitalar terciária. Inicialmente, foi internada no serviço de reumatologia para controle da atividade da doença, com melhora dos sinais e sintomas apresentados. Após a realização exames de controle, foi identificado o crescimento da imagem em novo ecocardiograma, que, dessa vez, evidenciou imagem pedunculada irregular no átrio esquerdo,móvel aos movimentos valvares e projetando-se para o interior do ventrículo esquerdo com estenose mitral, por obstrução mecânica, à diástole (FIGURA 1). No ecocardiograma transesofágico, as dimensões eram precisamente 35x23mm. O átrio já apresentava aumento importante do volume. 

Figura 1: Ecocardiograma em posição paraesternal de eixo longo, evidenciando tumor com movimentos pendulares. À esquerda, à diástole ventricular, a massa projetando-se para o ventrículo esquerdo, causando estenose mitral.

Fonte: Hospital Universitário Walter Cantídio, 2023; 

Figura 2: Ecocardiograma transesofágico. Massa projetando-se para o ventrículo esquerdo, dimensões 35x23mm, com estenose mitral. 

Fonte: Hospital Universitário Walter Cantídio, 2023; 

Na história patológica familiar, a genitora da paciente também apresentava massa cardíaca intracavitária, e faleceu em cirurgia para remoção de tal estrutura . A necropsia confirmou a presença de mixoma aderido ao septo interatrial medindo 80x60mm, e a presença de dois êmbolos tumorais na cavidade do ventrículo esquerdo, com o maior medindo 55x35mm, e câmaras cardíacas já com alterações estruturais devido ao quadro, além de intensa congestão pulmonar e renal. 

A partir da estabilização do quadro lúpico, a paciente foi transferida para os cuidados da cardiologia, que devido ao risco inerente ao achado cardíaco, indicou a cirurgia para ressecção do tumor. 

O procedimento cirúrgico foi realizado 1 mês após. A paciente foi submetida à circulação extracorpórea e à canulação de ambas as cavas. O acesso à massa tumoral foi obtido por atriotomia esquerda sem intercorrências, o mixoma não estava em contato com a valva mitral, como havia sugerido nos ecocardiogramas prévios, e, portanto, não necessitou de troca valvar . Durante o procedimento cirúrgico, o tumor foi retirado de forma segmentada, haja vista a friabilidade da peça(Figura 3). O anatomopatológico confirmou estrutura sugestiva de mixoma atrial. 

Figura 3: Mixoma atrial. Peça cirúrgica fragmentada 

Fonte: Hospital Universitário Walter Cantídio, 2023; 

DISCUSSÃO 

Os mixomas são a neoplasia cardíaca primária mais comum. Tais tumores são compostos por células com disposição aleatória dentro de um estroma de mucopolissacarídeos. As células que pertencem à composição do tumor são originadas de um mesênquima multipotente (8). Tal arranjo histológico propicia a ocorrência de embolização, visto que, à medida que o tumor cresce, o estroma de mucopolissacarídeo mantém a coesão da estrutura até certo ponto, acima do qual pode ocorrer o rompimento e consequente embolização. A imagem da peça cirúrgica da paciente no relato supracitado, evidencia a fragilidade da disposição, com a fácil fragmentação. 

Cerca de 35% dos mixomas são friáveis, e os tumores maiores têm maior probabilidade de apresentar uma superfície lisa e estarem associados a sintomas cardiovasculares(6) 

A localização do mixoma da paciente respeita a frequência de ocorrência demonstrado na literatura, com a incidência maior no átrio esquerdo e uma menor frequência no átrio direito. A ocorrência de mixomas ventriculares são mais raros (6, 9,10). 

No caso em questão, chama atenção a presença de um substrato autoimune por parte da paciente, por ser portadora de lúpus. Dessa forma, a literatura já menciona em alguns relatos de casos a curiosa associação entre mixoma atrial e lúpus ou síndrome antifosfolípede, muitas vezes sendo um importante diagnóstico diferencial com a endocardite de Libman-Sacks, uma entidade já conhecida em alguns portadores de lúpus(11,12). 

A sintomatologia do portador de mixoma pode ser manifestada tanto pelos efeitos mecânicos sobre a hemodinâmica cardíaca, como a partir de sintomas constitucionais. Devido à maior incidência de localização no átrio esquerdo, as manifestações podem estar relacionadas aos efeitos obstrutivos do tumor sobre a válvula mitral, causando aumento no volume atrial, hipertrofia da cavidade e congestão pulmonar, boa parte já com alterações eletrocardiográficas. Cerca de 67% dos pacientes com mixoma atrial apresentam sintomas cardiovasculares(7,9,10). 

Sobre os sintomas constitucionais, cerca de 34% apresentam febre, inapetência e perda de peso, além de alterações laboratoriais, como elevação da velocidade de hemossedimentação, proteína C ou nível de globulina(7). Importante salientar que tais sintomas constitucionais e alterações laboratoriais fazem parte também dos achados apresentados em portadores de doenças autoimunes, especialmente portadores de lúpus. Tal fato pode tornar o diagnóstico do mixoma mais tardio, principalmente pela tendência do médico assistente considerar tais dados clínicos como secundários à atividade de doença do lúpus(11) 

Apesar de uma literatura abundante sobre os mecanismos impostos pelas doenças neoplásicas ao sistema imunológico, os detalhes sobre a influência imunológica e mecanismos auto reativos contra o coração são mais limitadas. Alguns estudos demonstraram, que complexos imunes circulantes estavam presentes em pacientes com mixoma atrial. Anticorpos antiendoteliais do tipo IgG foram encontrados em 86% dos pacientes com mixoma atrial, segundo série(4). Curiosamente, em outro estudo, o mesmo anticorpo, medido por ensaio imunoenzimático, foi detectado em amostras de soro de 38 dos 41 pacientes com lúpus eritematoso sistêmico(13). Outro anticorpo encontrado foi o anti miocárdio(4). Tais achados podem sugerir a associação entre a formação dos mixomas atriais com fatores imunológicos intracardíacos, em que a atividade pode propiciar a formação e crescimento desses tumores. Tais fatores imunológicos estão presentes em doenças autoimunes como as colagenoses, especialmente o lúpus, cuja fisiopatologia engloba a formação e circulação de imunocomplexos, causando lesão após a deposição nos tecidos. 

Importante reforçar, também, que os mixomas podem ter um caráter hereditário, apesar de uma menor frequência, tal herança pode ocorrer em até 10% dos casos(3). Quando a história familiar é positiva, é importante manter o seguimento médico com realização de ecocardiograma periodicamente, visto que as recorrências são mais comuns em quem tem pais ou irmãos portadores de mixoma(14). A importância do tratamento apropriado e em tempo hábil para a paciente citada em nosso caso torna-se maior diante da grave intercorrência materna, resultando em morte por complicações graves hemodinâmicas do mixoma atrial que apresentava. 

Diante disso, é de suma importância a identificação precoce e a ressecção imediata após avaliação pré-operatória de rotina, haja vista a chance considerável de embolização ou complicações cardiovasculares, como a morte súbita(6). Não menos importante, também deve-se levar em consideração as questões psicológicas dos pacientes. No relato supracitado, inclusive, é de se esperar a grande apreensão por parte da paciente, haja visto que o tumor que ela apresentava foi a causa da morte de sua genitora, o que traz uma carga emocional atrelada à condução do caso 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Portanto, como os mixomas são a neoplasia intra cardíaca primária mais comum, e partindo do pressuposto que as complicações dessa entidade, se não tratadas em tempo hábil e adequadamente, podem causar graves morbidades e elevada mortalidade, esse trabalho foi pautado em um relato de caso buscando alusões e indicações de outros trabalhos científicos. 

Assim, para elucidar as considerações finais, foi objetivada a abordagem sobre a associação entre o tumor em questão e fatores autoimunes, tomando como base a história patológica da paciente e a história familiar. 

O relato demonstrou que os mixomas podem ter crescimento acelerado, aumentando o risco de complicações inerentes, haja vista as suas características histológicas. Foi demonstrado, ainda, a existência de anticorpos relacionados a tais tumores, o que faz considerar a presença de fatores autoimunes que podem contribuir para o desenvolvimento dessa entidade, embora os dados na literatura ainda sejam escassos, o que limitou os dados para a discussão, sendo necessária mais pesquisas no campo da imunologia relacionada a neoplasias cardíacas. 

Importante também é o dado de história familiar positiva, que pode trazer grandes informações no auxílio de tratamento e seguimento clínico, visto que a maior recorrência é observada nesses pacientes. Além disso, tem-se a necessidade da pronta avaliação cirúrgica após diagnóstico, sempre abordando o paciente de forma biopsicossocial. 

REFERÊNCIAS 

1 REYNEN, Klaus. Frequency of Primary Tumors of the Haart. Am J Cardiol 1996; 77:107. 

2 Demarchi V, Peixoto F, Campos F de. Cardiac myxoma. Autops Case Reports 2016;6(2):5–7. 

3 Azari A, Moravvej Z, Chamanian S, Bigdelu L. An unusual biatrial cardiac myxoma in a young patient. Korean J Thorac Cardiovasc Surg. 2015;48(1):67–9 

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6 Vander S, Thomas J. Cardiac Tumors. In: UpToDate. 2022. Disponível em: https://https:https://www.uptodate.com/contents/cardiac-tumors?search=mixoma%20 atrial&source=search_result&selectedTitle=1~46&usage_type=default&display_rank= 1. Accessed on: December 13, 2023, P 6 

7 Pinede L, Duhaut P, Loire R. Clinical presentation of left atrial cardiac myxoma. A series of 112 consecutive cases. Medicine (Baltimore) 2001; 80:159. 

8 Pucci A, Gagliardotto P, Zanini C, et al. Histopathologic and clinical characterization of cardiac myxoma: review of 53 cases from a single institution. Am Heart J 2000; 140:134. 

9 ElBardissi AW, Dearani JA, Daly RC, et al. Analysis of benign ventricular tumors: long-term outcome after resection. J Thorac Cardiovasc Surg 2008; 135:1061. (49 no up) 

10 Vander Salm TJ. Unusual primary tumors of the heart. Semin Thorac Cardiovasc Surg 2000; 12:89. (5 do up) 

11 Marmade L, Tribak M, Laaroussi M, Elkouache M, Moughil 11. S, Konate L, et al. Lupus érythémateux disséminé ayant retardé le diagnostic d’un myxome cardiaque. Rev Med Interne 2006; 27: 424–426 

12 Meter M, Meter D, Ceprnja T, Perkovic D. Left Atrial Myxoma and Antiphospholipid Syndrome-A Case Report. Int J Angiol. 2021 Dec 11;32(4):269-272 

13 van der Zee JM, Miltenburg AM, Siegert CE, Daha MR, Breedveld FC. Antiendothelial cell antibodies in systemic lupus erythematosus: enhanced antibody binding to interleukin-1-stimulated endothelium. Int Arch Allergy Immunol. 1994;104(2):131-6. 

14 Bhan A, Mehrotra R, Choudhary SK, Sharma R, Prabhakar D, Airan B, Kumar AS, Venugopal P. Surgical experience with intracardiac myxomas: long-term follow-up. Ann Thorac Surg. 1998 Sep;66(3):810-3