DOENÇA DE BARLOW EM PACIENTE COM COMUNICAÇÃO INTERATRIAL (CIA): UM RELATO DE CASO.

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.12616716


Anne Sadala
Maria Luiza Gazzana
Milene Fernandes Farias
Victor Hugo Marques Bonfim
Zilma Queiroz Nattrodt


RESUMO

Objetivo: relatar o caso de um paciente portador de uma cardiopatia congênita – Comunicação Interatrial (CIA) tipo ‘’ostium secundum’’ ampla com importante repercussão hemodinâmica associado ao prolapso da valva mitral por Doença de Barlow, permitindo refluxo importante, com efeito coanda, direcionado para a parede lateral. Método: as informações foram obtidas por meio de revisão de prontuário, registro fotográfico dos métodos diagnósticos aos quais o paciente foi submetido e revisão de literatura. Considerações finais: o caso relatado e as publicações evidenciam a análise de um cenário complexo, que é a associação do Prolapso Mitral à Comunicação Interatrial durante a fase adulta, pondo em evidência suas características clínicas, implicações e possíveis prognósticos.

Palavras-chave: Prolapso valvar Mitral, Doença de Barlow, cardiopatia, comunicação inter-atrial.

INTRODUÇÃO

O Prolapso Mitral é uma doença comum da valva mitral, em que há abaulamento dessa estrutura para o átrio durante a sístole ventricular. Anatomicamente, a cúspide é formada por um longo e estreita folheto anterior, enquanto o posterior costuma ser menor e mais largo. Assim, quando a mitral está fechada, ela se apresenta do lado atrial com dois folhetos e duas comissuras. As bases dos folhetos estão conectadas ao anel valvar e suas pontas às cordoalhas, unidas aos músculos papilares (Enriquez-Sarano, M, 2023). Uma das causas de prolapso valvar mitral é a Doença de Barlow, caracterizada por alterações degenerativas difusas, espessamento e redundância de ambas as cúspides, provocando abaulamento sistólico de vários segmentos.

Nesse sentido, cabe caracterizar a Doença de Barlow como uma síndrome marcada por sopros sistólicos tardios e cliques sistólicos sem ejeção. Esses achados na ausculta são decorrentes da regurgitação mitral (Lawrie, G.M., 2015). Esse estudo ressalta que o paciente apresenta cordas alongadas e puxadas em direção ao átrio, gerando inchaço dos folhetos e o som de clique, durante a sístole. A zona de coaptação é perdida de modo progressivo.

Nessa perspectiva, é valido caracterizar, também, a comunicação interartrial (CIA). Essa condição é congênita, desenvolvida de forma assintomática até a fase adulta. Ela é resultado da insuficiência de tecido para completar a separação atrial, sendo classificada de acordo com sua localização no septo atrial.

A septação atrial começa na quinta semana de gestação. O septo primum surge da porção superior do átrio comum, cresce caudalmente em direção aos almofadados endocárdicos, os quais se localizam entre os átrios e os ventrículos, fechando o ostium primum entre os átrios. Um segundo orifício (o ostium secundum) se desenvolve no septo primum; este orifício é coberto por outro septo (o septo secundum) que surge no lado atrial direito do septo primum (M Ammash, N, 2022). Do ponto de vista patofisiológico, essa condição associa-se ao shunt interatrial esquerda-direita, gerando aumento de volume nas câmaras direitas do coração.

A evolução clínica de ambas as condições mencionadas acima convergem na disfunção cardíaca. Enquanto as complicações do prolapso da valva mitral incluem severa regurgitação mitral, endocardite e arritmias (ENRIQUEZSARANO, M, 2023), os portadores de CIA podem desenvolver, também, arritmias atriais, hipertensão pulmonar, cianose e embolia paradoxal (M AMMASH, N, 2022). Logo, a análise clínica se torna imprescindível para o desenvolvimento de assistências direcionadas aos indivíduos que se encaixam neste quadro.

Este estudo tem por objetivo apresentar um relato de caso de um paciente portador de prolapso mitral causado pela Doença de Barlow com importante repercussão hemodinâmica associado ao achado de uma ampla comunicação interatrial em evolução para hipertensão pulmonar significativa, com shunt bidirecional, dilatação importante de câmaras direitas e tronco pulmonar.

Relato de Caso

Um paciente masculino de 48 anos deu entrada no Hospital Pronto Socorro ‘’ 28 de Agosto’’ com queixa de dispneia em repouso, edema em membros inferiores, com piora progressiva. Relatou diagnóstico prévio de insuficiência cardíaca, porém com ausência de qualquer tratamento. Para dar início a sua avaliação, foi transferido ao Hospital ‘’ Delphina Aziz’’ e, posteriormente  à Fundação Hospital do Coração  Francisca Mendes, por via ambulatorial, no dia 18 de abril de 2024.

Em relação as comorbidades, o paciente apresentava hipertensão arterial sistêmica e hipertensão arterial pulmonar moderada. Além disso, ex-tabagista (alta carga tabágica) e ex-etilista. Desse modo, relatou internação hospitalar prévia(02/24) devido a uma fratura de clavícula, tendo conduta expectante.

Ao exame clínico, paciente apresentou-se sem queixas ou demais intercorrências. Manifestou melhora do quadro de origem, tolerando o decúbito dorsal e mantendo-se eupneico. À análise neurológica, deu-se com pupilas isocóricas e fotorreagentes, 15/15 na Escala de Coma de Gasglow. Apresentou fácies atípicas, mucosas hipocoradas, com ausência de linfonodomegalias em região cervical. O aparelho respiratório compreendeu murmúrio vesicular fisiológico sem ruídos adventícios, enquanto o cardiovascular expôs ritmo cardíaco regular, com P2 >A2, desdobramento fixo de B2, sopro sistólico de regurgitação foco mitral ++++/6+ com irradiação para região axilar, como também tricúspide.

Ademais, apresentou abdome plano, flácido, sem abaulamentos ou retrações, indolor à palpação e com ruídos hidroaéreos positivos. Suas extremidades não apresentavam alterações. O paciente não fazia uso de nenhuma medicação.

Nesse espectro, o ecodopplercardiograma transtorácico do nosso serviço revelou aumento das câmaras direitas, do tronco pulmonar e aumento volumétrico importante do  átrio esquerdo; função sistólica global biventricular preservada; valva mitral com aspecto de degeneração mixomatosa, com prolapso de ambos os folhetos, permitindo refluxo importante; presença de um septo inter-atrial multifenestrado, exibindo CIA tipo ‘’ostium secundum’’ ampla, medindo nos maiores diâmetros 2,0 cm com shunt esquerda-direita, todavia apresentando bidirecional de forma intermitente.

Discussão

O Prolapso da Valva Mitral (PVM) é inicialmente descrito como uma lesão valvar progressiva, porém com uma base genética. Para Sabbag et al (2023), a condição tende a ser desenvolvida tardiamente na vida, além de que suas complicações são, também, tardias e, majoritariamente, giram em torna da regurgitação mitral e sua hemodinâmica. No entanto, inclui-se a endocardite, bem como as arritmias atriais e ventriculares, eventos de isquemia neurológica, falência cardíaca e, raramente, morte cardíaca súbita.

Para Pislaru (2019), a história natural da PVM é geralmente benigna, mas complicações sérias podem acontecer, como insuficiência cardíaca, acidentes cerebrovasculares e morte. Outrossim, o autor salienta que a doença é mais prevalente em mulheres, porém apresenta pior prognóstico em homens. A PVM é a principal consequência primária da regurgitação mitral, seguida pela fibrilação atrial.

É pertinente abordar, em adição, a visão de Yalim e Ersoy (2022). Seu estudo menciona que a patologia em questão é causada por alterações mixomatosas definidas como a expansão da camada esponjosa média da válvula, devido ao acúmulo de proteoglicanos, alterações estruturais de colágeno em todos os componentes do folheto e por cordas com estrutura anormal. Nesse complexo, encontraram-se marcadores inflamatórios os quais podem desencadear vários eventos cardiovasculares. Eles foram obtidos de um hemograma completo e, a partir disso, estudou-se a relação desses marcadores com o Prolapso da Valva Mitral. Desse modo, é mister salientar que respostas imunes anormais e o processo inflamatório constroem a patogenia da doença abordada.

Outrossim, vale caracterizar o quadro clínico de pacientes portadores de PVM. Os sintomas mais frequentes costumam ser dor torácica inespecífica, fadiga, dispneia e palpitações. Ante esse viés, na ausculta costuma-se encontrar clicks meso ou telessistólicos e sopro telessistólico. Já no ecocardiograma, encontrase deslocamento sistólico superior dos folhetos da válvula mitral anelar ≥ 2mm acima do anel ou deslocamento sistólico superior dos folhetos da válvula mitral <2mm acima do anel, além de ruptura de cordas ou insuficiência mitral no Doppler (RIVERÓN, CLJ, 2016).

Ademais, é mister salientar que a Doença de Barlow, juntamente com deficiência fibra elástica, é uma das principais formas de degeneração da valva mitral (Anyanwu, A.C., Adams, D.H, 2007). Ante esse espectro, o desgaste apresenta diversas alterações morfológicas, como alongamento ou ruptura de cordas e dilatação anelar, sendo uma importante causa de morbimortalidade. Esse estudo, também, menciona que pacientes com a condição, geralmente, têm lesões múltiplas e complexas que são mais prováveis de serem resolvidos com cirurgias de reparo valvar.

Diante dos fatos mencionados, é fulcral tecer um vínculo entre o Prolapso da Valva Mitral, gerado pela doença de Barlow, e a Comunicação Interatrial. A literatura não correlaciona ambas as condições, diretamente, mas elas podem coexistir e relacionar-se, especialmente, em termos de etiologia e manifestações clínicas.

Algumas pesquisas indicam que certos fatores genéticos e anatômicos podem predispor os indivíduos a desenvolver tanto PVM quanto CIA. Além disso, a coexistência dessas condições pode aumentar o risco de complicações cardiovasculares, como arritmias, embolia e insuficiência cardíaca. Portanto, a avaliação clínica abrangente e o acompanhamento regular são essenciais para pacientes com PVM e CIA, a fim de identificar e gerenciar adequadamente quaisquer complicações potenciais (SHAH, SN, 2023).

Ante esse espectro, torna-se essencial caracterizar a Comunicação Interatrial. Ela é uma anomalia congênita do coração onde há uma abertura anormal na parede que divide os átrios esquerdo e direito. Essa falha permite o fluxo de sangue entre os átrios, o que pode levar a um excesso de volume no lado direito do coração, potencialmente causando sintomas e complicações.

Os defeitos septais atriais (DSAs) são responsáveis por cerca de 6-10% de todos os distúrbios cardíacos congênitos, sendo mais comuns em mulheres do que em homens, com uma prevalência duas vezes maior. Entre os tipos de DSAs, os defeitos do tipo secundum são os mais frequentes e geralmente mais simples de tratar em comparação com outras variedades (DOGAN, E, LEVENT, 2024).

O fechamento desses DSAs pode ser realizado de duas maneiras: por meio de intervenção cirúrgica ou por procedimento percutâneo. Embora haja diretrizes estabelecidas sobre o momento e a abordagem para o fechamento de DSAs secundum, a decisão final é tomada caso a caso, levando em consideração a condição clínica e hemodinâmica de cada paciente. Em casos de DSAs muito grandes, é possível realizar o fechamento já na infância. Pacientes que não são elegíveis para este procedimento, possuem defeitos de grandes dimensões ou apresentam insuficiência de margem são considerados para o fechamento cirúrgico. (DOGAN, E, LEVENT, 2024).

Dessa forma, há diversas complicações da Comunicação Interatrial. O defeito septal atrial geralmente resulta em um shunt da esquerda para a direita, com a direção e magnitude do fluxo sanguíneo determinadas pelo tamanho do defeito, pressões atriais relativas relacionadas à complacência de ambos os ventrículos e mudanças ao longo do tempo (BRIDA, M et al, 2022).

Considerações Finais

O caso relatado e as publicações levantadas evidenciam a discussão sobre as repercussões graves da associação de uma ampla comunicação interatrial e o prolapso valvar mitral. A associação dos dois quadros clínicos descritos piora o prognóstico e dificultam o manejo clínico, sendo também mais desafiador para o tratamento cirúrgico. Desta forma, torna-se imprescindível o diagnóstico precoce para evitar uma evolução desfavorável, irreversível com impacto na qualidade de vida.

Figura 1 (A) do ecocardiograma mostrando alterações físicas das valvas cardíacas. (B) imagem do cardiograma mostrando fluxo. (C) Imagem do ecocardiograma evidenciando a Comunicação Interatrial.

Referências

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