CARTA AO EDITOR SOBRE O ARTIGO “ANÁLISE QUALITATIVA E QUANTITATIVA DO MATERIAL RESIDUAL APÓS A RECONSTITUIÇÃO IMEDIATA DO ÁCIDO POLI-L-LÁTICO “

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.12588788


Antony Barbosaa
Mauricio R. Douradob


Prezado Editor,

Lemos com grande interesse o artigo de Santos & Pereira, ” Análise qualitativa e quantitativa do material residual após a reconstituição imediata do ácido poli-L-lático”, publicado em 2024 na Revistaft1. O estudo teve como objetivo determinar a presença e a quantidade de ácido poli-L-láctico (PLLA) na espuma residual do frasco de Sculptra® (PLLA-SCA; Galderma, Suécia) após reconstituição do produto. Como principal achado, os autores afirmaram que uma média de 37%, ou 54,87 mg, do total de partículas de PLLA-SCA permaneceu aprisionada na espuma do frasco. No entanto, apesar da importância desta questão de pesquisa, identificamos várias falhas metodológicas centrais e inconsistências nas inferências do estudo, que são descritas a seguir.

Em relação ao processo químico de recuperação de PLLA-SCA e sua avaliação através de métodos analíticos qualitativos utilizando Espectroscopia de Ressonância Magnética Nuclear (RMN) de 500 MHz e Espectroscopia no Infravermelho com Transformada de Fourier (FTIR), os resultados são incongruentes e, portanto, inconclusivos. A principal questão diz respeito ao fato de que os autores não realizaram um processo de purificação de PLLA-SCA a partir do resíduo obtido após o processo de partição com clorofórmio. Embora a carboximetilcelulose (CMC) e o manitol sejam mais solúveis em água, algumas partições na fase orgânica ainda podem ocorrer. Isso pode levar a um aumento errôneo no peso residual, elevando falsamente a massa medida de PLLA-SCA2,3. Além disso, a presença de água, que poderia aumentar ainda mais incorretamente a massa de PLLA-SCA, é possível porque o resíduo torna-se higroscópico após a evaporação do clorofórmio, absorvendo a água ambiental. Deve-se atentar para os potenciais resíduos de clorofórmio, pois apesar de sua alta volatilidade, as moléculas de solvente podem ficar aprisionadas dentro dos cristais do resíduo após a partição, liberadas somente quando o material é dissolvido ou fundido.

Para validar essas observações, examinamos o espectro FTIR da amostra de resíduo e comparamos com os espectros padrão de PLA, CMC, Manitol, Água e Clorofórmio do National Institute of Standards and Technology (NIST)4. A avaliação revela picos característicos de CMC em torno de 3400 cm-1, Manitol por volta de 2930 cm-1, Água em aproximadamente 3400 e 1650 cm-1, e Clorofórmio por volta de 1210 e 668 cm-1.  No espectro FTIR do PLA padrão, os picos mencionados acima não são observados, o que confirma que o resíduo contém outras substâncias além do PLLA. Picos característicos de PLA podem ser identificados em 3500 cm⁻¹, 2995 e 2945 cm⁻¹, 1750 cm⁻¹, 1450 e 1360 cm⁻¹, 1080 cm⁻¹, e 870 cm⁻¹ (Fig.1).5,6 

Assim, a atribuição de toda a massa do resíduo do extrato seco ao PLLA-SCA é equivocada. A purificação do resíduo da fase orgânica (clorofórmio) através de cromatografia líquida após a partição é crucial para separar as partículas de PLLA-SCA da CMC e manitol presentes na formulação de Sculptra®. Após a purificação, PLLA-SCA deve ser quantificado usando espectroscopia de ressonância magnética nuclear quantitativa (qNMR) ou cromatografia líquida de ultra-eficiência (UPLC). Portanto, a análise gravimétrica quantitativa baseada no peso do resíduo é falha, pois inclui impurezas residuais, superestimando a massa real de PLLA-SCA remanescente após o processo de reconstituição do Sculptra®.  Em sua seção de Métodos, os autores até mencionam uma análise de RMN de 500 MHz, mas a imagem do artigo mostra um dispositivo de 400 MHz e, no final, o espectro apresentado é infravermelho. Como a RMN qualitativa não foi utilizada para determinar a presença de PLLA-SCA, acreditamos que ela identificaria mais claramente a contaminação com CMC, manitol, água e clorofórmio nas amostras. 

É importante ressaltar que a reconstituição do material é altamente dependente da técnica, levando à potencial variabilidade nos volumes de recuperação da suspensão e formação de espuma, mesmo quando realizada pelo mesmo profissional. Isso poderia explicar a alta variabilidade na quantidade de resíduos sólidos totais e de “PLLA-SCA residual” encontrada nas amostras estudadas. Além disso, as condições de armazenamento dos frascos não foram especificadas e o tempo de armazenamento variou entre as amostras por até três meses. Essa variabilidade poderia introduzir viés, uma vez que a estabilidade da espuma ao longo do tempo é desconhecida.

Mesmo considerando qualquer potencial perda de partículas após a reconstituição, o Sculptra® tem se mostrado eficaz e seguro em vários estudos clínicos desde sua aprovação inicial pelo FDA em 2004 para o tratamento da lipoatrofia facial relacionada ao HIV7-10. Anteriormente, recomendava-se o uso de volumes menores de água estéril e um tempo de repouso de até 72 horas para garantir melhor hidratação e dissolução das partículas, evitando assim o entupimento da agulha ou a formação tardia de nódulos8,11. Entretanto, as evidências atuais têm demonstrado que a reconstituição imediata utilizando volumes maiores de água estéril é um método seguro e não altera as propriedades físico-químicas do produto7,12,13. De fato, as instruções de uso atuais aprovadas pela agência reguladora no Brasil, Anvisa, afirmam que o Sculptra® pode ser injetado imediatamente após os procedimentos de reconstituição14.

Em suma, as lacunas metodológicas aqui identificadas podem comprometer os dados apresentados no artigo original e, portanto, quaisquer conclusões inferidas a partir dele. Se o produto for manuseado de forma correta e cautelosa, seguindo as instruções do fabricante e as evidências científicas atuais, a possibilidade de desperdício de material será significativamente reduzida, mantendo assim sua segurança e eficácia.

Figura 1. FTIR da amostra de PLLA-SCA apresentada no artigo original, com os picos característicos de cada impureza: CMC, manitol, água e clorofórmio. Adaptado de Santos & Pereira, 20241.

Disclaimer

Antony Barbosa é Speaker da Galderma e Mauricio R Dourado Consultor Científico para a Galderma Brasil. 

Referências

  1. Santos MJ, Pereira LC. Análise qualitativa e quantitativa do material residual após a reconstituição imediata do ácido poli-l-lático. Ciências da Saúde, Volume 28 – Edição 131/FEV 2024. DOI: 10.5281/zenodo.10719880.
  2. National Center for Biotechnology Information (2024). PubChem Compound Summary for CID 6251, Mannitol. Retrieved May 17, 2024 from https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/Mannitol.
  3. National Center for Biotechnology Information (2024). PubChem Compound Summary for CID 23706213, Sodium carboxymethyl cellulose. Retrieved May 17, 2024 from https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/Sodium-carboxymethyl-cellulose.
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  6. Wu CS, Liao HT. A new biodegradable blends prepared from polylactide and hyaluronic acid. Polymer (Guildf). 2005;46(23). doi:10.1016/j.polymer.2005.08.056.
  7. Fabi S, Hamilton T, LaTowsky B, Kazin R, Marcus K, Mayoral F, Joseph J, Hooper D, Shridharani S, Hicks J, Brasater D, Weinberg F, Prygova I. Effectiveness and Safety of Sculptra Poly-L-Lactic Acid Injectable Implant in the Correction of Cheek Wrinkles. J Drugs Dermatol. 2024 Jan 1;23(1):1297-1305. doi: 10.36849/JDD.7729. PMID: 38206151.
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a PhD., Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento, Instituto Antony Barbosa, Belo Horizonte, MG, Brazil.
b PhD., Galderma Brasil.