MEDICAÇÃO SEM MODERAÇÃO: DESAFIOS E CONSEQUÊNCIAS DO CONSUMO INDISCRIMINADO DE MEDICAMENTOS NO BRASIL

MEDICATION WITHOUT MODERATION: CHALLENGES AND CONSEQUENCES OF INDISCRIMINATE CONSUMPTION OF MEDICINES IN BRAZIL

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.12575779


Iuri Rodrigues Nogueira1; Ana Carolina Santos de Souza2; Dhemerson Azevedo de Sousa3; Maria Clara Felix Pereira Araújo4; Ian Silva de Sousa5; Yonara Fábila dos Santos Teixeira6; Maria Heloisa Barbosa dos Anjos7; Viviane Maria dos Santos Araújo8; Calebe Elias Araújo Nascimento9; Jaime Louzada10


RESUMO

Vários estudos científicos confiáveis ​​demonstram tendências crescentes de automedicação e uso inadequado de medicamentos no Brasil, tendo incontáveis resultados prejudiciais. Diante desse fenômeno, este artigo objetivou analisar as práticas de uso e abuso de medicamentos no Brasil e os impactos da pandemia de COVID-19 na automedicação e uso irracional de fármacos através de uma rigorosa revisão literária. A indústria farmacêutica exerce uma forte influência nos padrões de consumo, promovendo a “venda de doenças” através de marketing agressivo que supera investimentos em pesquisa. A infodemia agravou ainda mais esse cenário, com figuras profissionais e políticas recomendando medicamentos sem indicação clínica para COVID-19, gerando resultados negativos que ainda são sentidos. Em grupos específicos, o uso indiscriminado de fármacos é especialmente ameaçador, devido à suscetibilidade das pessoas aos efeitos indesejáveis e tóxicos dos medicamentos. É importante que a tendência de “patologizar” converta-se em práticas de promoção de saúde.

Palavras-chave: automedicação, off-label, uso indiscriminado, efeitos adversos.

ABSTRACT

Several reliable scientific studies demonstrate increasing trends of self-medication and inappropriate use of medicines in Brazil, having countless harmful results. Given this phenomenon, this article aimed to analyze the practices of use and abuse of medicines in Brazil and the impacts of the COVID-19 pandemic on self-medication and irrational use of drugs through a rigorous literary review. The pharmaceutical industry exerts a strong influence on consumption patterns, promoting the “selling of diseases” through aggressive marketing that exceeds investments in research. The infodemic further aggravated this scenario, with professional and political figures recommending medications without clinical indication for COVID-19, generating negative results that are still being felt. In specific groups, the indiscriminate use of drugs is especially threatening, due to people’s susceptibility to the undesirable and toxic effects of medications. It is important that the tendency to “pathologize” is converted into health promotion practices.

Keywords: self-medication, off-label, indiscriminate use, adverse effects.

1 INTRODUÇÃO

A inserção massiva de medicamentos no mercado nacional e internacional ocorreu por volta de 1940. Desde então, foram observadas mudanças nos padrões de consumo desses produtos em todo o mundo. Essas mudanças foram fortemente influenciadas por campanhas publicitárias e pelo alto investimento na descoberta de novos fármacos (Cunha, 2021). A venda desses recursos terapêuticos como “pílulas mágicas” que trazem soluções quase imediatas, criou ao longo do tempo, necessidades artificiais e banais de uso de medicamentos, caracterizadas pela tendência de “patologizar” diversos aspectos da vida (de Jesus, 2023; Cunha, 2021).

Durante a pandemia de Covid-19, diversos veículos de informação incentivaram o uso indiscriminado de medicamentos. Entretanto, esses incentivos foram fundamentados no negacionismo científico, levando ao uso sem prescrição médica (Melo et al., 2021; Oliveira e Oliveira, 2023; Silveira e Durigon, 2022). Esse cenário reflete o uso irracional de medicamentos, agravado pela infodemia (Rocha e Camargo, 2023; Silva e Nogueira, 2022; Oliveira et al., 2021). Diversos fatores contribuem para essa prática, resultando em desfechos desastrosos (Bertoldi et al., 2021; Cunha, 2021; Leite et al., 2022). Grupos especiais, como gestantes, idosos e crianças, enfrentam desafios específicos devido às suas características únicas, tornando-os mais suscetíveis aos efeitos prejudiciais do uso inadequado de medicamentos (Sousa et al., 2023; Rocha e Camargo, 2023; Rossi e Natalino, 2022; Bezerra, 2022).

Esse fenômeno tem grande impacto nos desfechos danosos decorrentes do uso irracional de medicamentos em território nacional, sendo responsável por ocorrências de interações medicamentosas potencialmente perigosas, mascaramento de sinais e sintomas de prognósticos desfavoráveis, efeitos tóxicos que se agravam. Em grupos especiais, tais efeitos são exacerbados, dadas suas características fisiológicas. Em face desses múltiplos aspectos, este artigo objetivou analisar as práticas de uso e abuso de medicamentos no Brasil e os impactos da pandemia de COVID-19 na automedicação e uso irracional de fármacos. Como objetivos secundários, (i) examinamos as estratégias de marketing da indústria farmacêutica e suas influências nas práticas de automedicação, (ii) identificamos as consequências da infodemia e das fake news sobre medicamentos durante a pandemia e (iii) exploramos as práticas de automedicação em grupos específicos, como mulheres, crianças, adolescentes e idosos, e seus respectivos riscos e desafios.

3 MÉTODO

3.1 CRITÉRIOS DE SELEÇÃO

Este estudo, trata-se de uma revisão integrativa de literatura de caráter descritivo, possuindo natureza qualitativa, estruturada sobre bases de dados bibliográficos disponíveis para livre consulta. As bases de dados selecionadas para esta pesquisa foram Google Acadêmico® e PubMed®. Nesse estudo, considerou-se materiais adequados, apenas, os redigidos em português ou inglês, publicados entre os anos de 2021 a 2024. 

Os descritores utilizados para a seleção de artigos contemplaram os seguintes termos em português e seus equivalentes em inglês: “riscos” (risks), “uso indiscriminado de medicamentos” (indiscriminate use of medicines), “automedicação” (self-medication), “Brasil” (Brazil). Termos como “revisão” (review), “perfil” (profile), “animais” (animals), “fitoterápicos” (herbal medicines) foram utilizados para desqualificar do processo de seleção, os artigos que continham estes descritores em seus títulos ou resumos, uma vez que os materiais que continham tais expressões não se alinhavam ao escopo deste manuscrito.

As pesquisas foram filtradas pelo recurso de buscas avançadas nas bases de dados supracitadas. Para tal, empregou-se os operadores booleanos: “and”, “or”, “not” e os descritores de interesse para filtragem dos dados. Os artigos selecionados deveriam ser originais e trabalhados sobre dados primários representativos. Estudos não representativos ou que não se relacionavam diretamente ao tema, foram excluídos do processo de seleção, tais como: textos ambíguos e estudos muito localizados. Essa abordagem rigorosa no processo de seleção de dados garantiu a idoneidade das informações contidas neste texto, tornando-a fidedigna com os interesses da esfera científica.

3.2 FLUXO DE SELEÇÃO DE ARTIGOS

Os termos de busca para o Google acadêmico® foram “riscos AND uso indiscriminado de medicamentos OR automedicação AND Brasil -revisão -perfil -animais, -fitoterápicos”. Para o PubMed® foram utilizados “risks AND indiscriminate use of medicines OR self-medication AND Brazil NOT Animals NOT review NOT profile NOT herbal medicines“. Após a aplicação dos descritores por meio de buscas especializadas nas bases de dados selecionadas, um total de 1.230 resultados foram encontrados para o Google acadêmico® e 613 para o PubMed®, totalizando 1.843 artigos (figura 1). Após a delimitação do período desejado, 240 resultados foram encontrados no Google acadêmico® e 165 no PubMed® totalizando 305 artigos (figura 1). Deste total, após a filtragem por conteúdo através da leitura dos resumos, 14 manuscritos foram selecionados a partir do Google acadêmico® e 08 originados do PubMed®, totalizando 22 artigos que foram lidos de forma integral (figura 1).

Figura 1 – fluxo de seleção dos artigos.

Fonte: elaboração própria, 2024.

Em face da diversidade dos contextos encontrados nos diversos artigos, este estudo não pretende esgotar essa discussão, mas busca oferecer subsídios sólidos à ciência para torná-la um tema de reconhecimento público e científico, em vista da sua importância.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ultimamente, as crescentes descrições na literatura nacional e internacional referem os diversos desfechos danosos decorrentes do uso irracional de medicamentos no Brasil. Esse fenômeno representa um problema social, caracterizado por práticas de automedicação, prescrição inadequada, uso off label e uso excessivo de medicamentos. Os indicadores desse efeito são mostrados em números que vêm crescendo de forma exponencial e assustadora ao longo dos anos, trazendo consigo o alerta para os riscos do uso indevido de medicamentos (de Araújo et al., 2022; De Oliveira, Silveira, 2021; Bezerra et al., 2022).

Os determinantes e condicionantes do uso inadequado de medicamentos, possuem características associadas aos múltiplos contextos de vivências pessoais e diferentes cenários nacionais, sendo considerados, portanto, como plurifatoriais. Diversos autores evidenciam que os fatores que incentivam o uso incorreto de medicamentos, ganharam holofotes no período da pandemia de Covid-19, através da infodemia inflamada pelos diversos veículos de informação (Bezerra et al., 2022; da Costa Lacerda, de Morais Barbosa, Dourado, 2022; Lopes, 2021; Melo, 2021, Oliveira, 2021; Oliveira, Ericson, Oliveira, 2023). Levando em consideração, esses multivariados aspectos, discutiremos os contextos e entrelinhas que envolvem o uso irracional de medicamentos no Brasil nas próximas etapas do texto, estruturadas em forma de tópicos de resultado e discussão.

4.1 MARKETING FARMACÊUTICO E A “VENDA DE DOENÇAS”

Desde a introdução em massa dos antibióticos por volta de 1940, a percepção pública dos medicamentos evoluiu junto com seus padrões de consumo (Cunha, 2021).  O fenômeno do marketing agressivo e estratégico moldou a cultura contemporânea de consumo de medicamentos. Tal afirmação pode ser interpretada, analisando os investimentos em divulgação de fármacos, que superam em números muito representativos, os incentivos orçamentários em pesquisas de desenvolvimento de novos remédios (Cunha, 2021; Silva, Mueller, Moraes, 2021; de Jesus, 2023).

 Os altos investimentos de receitas farmacêuticas em publicidade, criou uma demanda artificial para muitos produtos, e com esse fenômeno, campanhas publicitárias frequentemente extrapolam os benefícios dos medicamentos enquanto minimizam ou omitem os possíveis efeitos adversos, contribuindo para a percepção errônea de que as drogas são “pílulas mágicas” que trazem a solução rápida e imediata para os muitos problemas da sociedade atual (de Jesus, 2023; Cunha, 2021;  Rossi, Natalino, 2022; Silva, Mueller, Moraes, 2021).

Uma prova desse cenário está descrita no artigo escrito por de Jesus (2023), intitulado “Mercado da dor: o dito e o não dito na publicidade de analgésicos”. A autora discute que apesar de haver legislações específicas proibindo o incentivo explícito à compra e consumo de medicamentos, as multinacionais farmacêuticas lançam mão de estratégias criativas e implícitas nos anúncios. Essa abordagem, embora sutil, é eficaz o bastante para moldar as percepções e comportamentos de consumo, demonstrando a capacidade das empresas farmacêuticas de contornar regulamentações enquanto promovem seus produtos e influenciam compradores (de Jesus, 2023).

Nesse sentido, um termo descrito por alguns autores como “venda de doenças” tornou-se uma estratégia farmacêutica comum (Cunha, 2021). Esse vocábulo envolve a medicalização de condições cotidianas e a transformação de problemas não farmacêuticos em problemas farmacêuticos, que por sua vez, aumentam a demanda por tratamentos farmacológicos (Cunha, 2021). Tal fenômeno não só aumenta a venda de medicamentos, mas também influencia a forma como as pessoas percebem a própria saúde, levando a um ciclo vicioso e indiscriminado de consumo (de Jesus, 2023; Cunha, 2021).

Com essa perspectiva, Cunha (2021), descreve a banalidade psicofarmacológica, que insere os usuários das mais diversas faixas etárias em um contexto de uso excessivo e indiscriminado de fármacos. Alguns outros autores chamam atenção para este fenômeno, destacando os males dos ciclos viciosos de consumo presentes na sociedade atual, exemplificando as crescentes taxas de crianças e adultos sob a influência de psicomoduladores ou ainda, idosos usando calmantes poderosos para dormir (Cunha, 2021; de Araújo, 2021).

Uma grande parte dos medicamentos disponíveis nas prateleiras das farmácias atualmente, não têm função curativa, apenas paliativa. Este é um meio eficiente de vender mais através da “fidelização do cliente”, desviando assim o foco das ações curativas, uma vez que curados, os indivíduos não precisam mais dos medicamentos. Isso traria prejuízos significativos para a indústria da farmácia (Cunha, 2021; de Araújo, 2021). Os impactos econômicos dessa tendência são preocupantes, uma vez que a dependência contínua de medicamentos paliativos impõe grande ônus financeiro. Esse fator perpetua um ciclo de consumo e dependência que beneficia economicamente apenas quem “vende doenças” (de Jesus, 2023; Leal et.,al, 2019)

4.2  DA DESINFORMAÇÃO À MEDICAÇÃO NA PANDEMIA DE COVID-19

Grande parte dessa mudança do padrão de consumo nos últimos quatro anos, pode ser explicada pelo fenômeno da infodemia. Tal fenômeno trouxe enchentes de informações negativas incentivando a autoadministração de medicamentos, por vezes, com o uso de remédios sem o menor grau de comprovação científica (Rossi, Natalino, 2022). O principal exemplo de uso irracional de medicamentos na pandemia foi o “tratamento precoce” à base do Kit Covid, uma associação de cloroquina/hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, zinco, vitamina D, nitazoxanida e corticosteroides (Melo., et al, 2021; Oliveira e Oliveira, 2023, Silveira, Durigon, 2022).

Os dados demonstram aumentos exponenciais de vendas de alguns medicamentos entre os anos de 2019 a 2020 (figura 2). Esses aumentos súbitos de vendas pressupõem o uso indiscriminado de fármacos, trazendo vários efeitos nocivos aos brasileiros. Um motivo que influenciou o aumento súbito de 829% das vendas de ivermectina (figura 2) foi um estudo que referenciou que esse fármaco conseguiu impedir a replicação do vírus SARS-CoV-2. Embora seja verdade, é importante ponderar que outros estudos sérios, referiram que a dose utilizada para atingir tal efeito supera em números estarrecedores o aceitável para humanos (Lacerda, Barbosa, Dourado,  2021).

Figura 2 – Porcentagem de crescimento do faturamento anual de medicamentos, considerando o período de 2019 a 2020.

Fonte: adaptado de Rossi, Natalino, 2022; da Costa Lacerda, de Morais Barbosa, Dourado, 2022.

Apesar da ampla divulgação nos diversos meios de comunicação sobre a ineficácia dos medicamentos do Kit Covid para o tratamento da Covid-19, as falsas informações persistiram e ganharam força. Essa situação foi agravada por figuras políticas, que incentivaram publicamente o uso não comprovado de fármacos para tratar a infecção por SARS-CoV-2 e pelo atraso em adotar uma posição política adequada diante da situação em questão. Em algumas circunstâncias, esse cenário se desdobrou à custa da aceitação e confiança na eficácia das vacinas contra a Covid-19, inflamando ainda mais o uso irracional de medicamentos (Oliveira, Ericson, Oliveira, 2023).

O manuscrito intitulado “Resistência microbiana a antibióticos: quo vadis?” (de Oliveira, Silveira, 2021) menciona que o uso indiscriminado e sem eficácia comprovada de antibióticos contra o SARS-CoV-2 foi acentuado na pandemia. Esse se torna um motivo de preocupação, uma vez que apenas 15% das infecções virais do covid-19 cursaram com coinfecções bacterianas (Silva, Nogueira, 2022).  A problemática ganha contornos específicos ao analisar os possíveis desfechos negativos desse uso indiscriminado de antibióticos. Rocha e Camargo (2023) descrevem a possível ocorrência de Reações Adversas Medicamentosas (RAMs) graves podendo ser seguidas de intoxicação e seleção de bactérias pan-resistentes a antibióticos específicos.

O manuscrito de Oliveira et., al (2021) descreve outro grupo de medicamentos que foi amplamente usado de forma indiscriminada na pandemia – os psicotrópicos.  Parte das motivações para esse uso, pode ser explicada pelo efeito do distanciamento pessoal sobre os padrões de humor das pessoas devido à mudança abrupta dos padrões de rotina (Oliveira et., al, 2021). O aumento das vendas e consumo de psicofármacos foi acompanhado de uma redução paradoxal dos índices de emissão de receitas médicas para compra de psicotrópicos, caracterizando uma flexibilização das vendas (Oliveira et., al, 2021; de Araújo et., al, 2022).

Embora a compra de alguns fármacos sem necessidade de avaliação e receituário emitido por profissionais da saúde, funcione bem para evitar questões burocráticas, a ausência de supervisão profissional adequada para medicamentos restritos pode abrir as portas para efeitos colaterais e interações medicamentosas perigosas. Quando essa prática não é guiada adequadamente, a exemplo dos psicotrópicos, os pacientes podem cair na armadilha da automedicação inadequada. Isso pode resultar em dependência, efeitos colaterais graves e agravar problemas de saúde existentes (Bertoldi, et al., 2021; Cunha, 2021).

Dos muitos motivos que contribuem para estas ocorrências, destacam-se o desrespeito à legislação de vendas de medicamentos de controle restrito, que proíbe a venda de alguns medicamentos sem receita; o desconhecimento das indicações terapêuticas ou possíveis interações medicamentosas; esquema posológico adequado e o contexto sociodemográfico (Bertoldi, et al., 2021; Cunha, 2021; Leite  et al, 2022).

4.3 O “MEDICALIZAR” EM GRUPOS ESPECIAIS

Embora o Uso Racional de Medicamentos (URM) proporcione prognósticos favoráveis, os impactos dos erros de condução das terapêuticas farmacológicas nas diversas esferas da vida são representativos. A utilização indiscriminada de medicamentos se expande para além dos horizontes da pandemia, e a automedicação emerge como uma prática comum no mundo todo, mas especialmente no cenário brasileiro. Essa é alimentada pela facilidade de acesso à informações e autodiagnóstico em sites de acesso rápido, prognósticos terapêuticos incertos, disponibilidade de medicamentos sem receita médica ou odontológica, informações disseminadas sem comprovação científica, infodemias, influências familiares e outros múltiplos fatores (Sousa., et al, 2023;  Rocha, Camargo, 2023; Rossi, Natalino, 2022; Bezerra, 2022).

Diversos ensaios publicados, revelam de maneira detalhada os impactos do uso impróprio de medicamentos, um tema que continua sendo amplamente explorado tanto na literatura nacional quanto internacional. Em alguns grupos específicos, existem condições subjacentes que tornam necessárias as intervenções farmacológicas para o manejo adequado da situação clínica (Leite et al, 2022). No entanto, o uso indiscriminado ou displicente de fármacos nesses grupos pode desencadear uma série de desfechos negativos, abrangendo tanto efeitos agudos quanto crônicos ou levando ao próprio comprometimento da vida (Sousa., et al, 2023;  Rocha, Camargo, 2023; Rossi, Natalino, 2022; Bezerra, 2022).

O artigo de Seixas (2021) intitulado “Prevalência e fatores associados ao uso de medicamentos para dormir entre idosos no Brasil” trouxe uma amostra representativa de pessoas com mais de 50 anos de todas as regiões do país e investigou a prevalência e os fatores associados ao uso de remédios para dormir entre esses brasileiros. Seus resultados revelaram informações curiosas ao afirmar que o uso de pílulas para dormir está diretamente relacionado à idade. Portanto, quanto mais velho, mais se faz uso de recursos farmacêuticos, neste caso, para buscar a adequada higiene do sono (Seixas, 2021). Contornar essa situação é uma tarefa difícil, pela própria necessidade medicamentosa, em razão do processo fisiológico do envelhecimento. Araújo et al., (2022) consideram fortemente a possibilidade de danos decorrentes de interações medicamentosas, haja vista que grande parte das pessoas estudadas fazia uso de polifarmácia para tratar situações clínicas concomitantes.

Outro estudo de base populacional publicado em 2023 considerou a prática de automedicação em crianças de 0 a 12 anos. Embora, fortemente desestimulada por profissionais pediatras, esta é uma prática comum em todo o globo e muito presente no cenário brasileiro, principalmente entre crianças não cobertas por planos de saúde (Pons et al,  2023). Entretanto, Leite et al (2022) mencionam que o fenômeno da medicalização infantojuvenil não é homogêneo na sociedade brasileira, apresentando variações de acordo com os diferentes níveis de vulnerabilidades socioambientais. Portanto, o contexto socioambiental exerce forte influência na tomada de decisão terapêutica, afetando desde o diagnóstico até a escolha e adesão a tratamentos específicos.

Dentre os principais medicamentos administrados em crianças, destacam-se Anti-Inflamatórios Não Esteroides (AINES), antibióticos, mucolíticos, e outros para as mais diferentes indicações (Pons et al, 2023). A principal motivação para a medicação de crianças pequenas diz respeito à interpretação do cuidador, que por vezes pode estar enviesada, como pode ser o caso em situações autolimitadas como infecções simples por alguns rinovírus (Pons et al, 2023). Esse fator merece ser pensado do ponto de vista clínico. Medicalizar crianças e adolescentes traz a possibilidade de interpretação errônea do quadro clínico, resultando em um tratamento que pode não ser o adequado para a real condição do paciente (Pons et al, 2023; Leite, 2022).

Em gestantes, a automedicação e seus fatores associados foi estudada por Pereira et al (2021) que referenciam uma série de facilitadores da automedicação nesse público. Os autores descreveram que a facilidade de acesso a medicamentos isentos de prescrição profissional, motivou a automedicação. Embora isentos de prescrição profissional, alguns medicamentos trazem ameaças diretas à saúde maternoinfantil. Pereira et al (2021), exemplifica em seu estudo, que a exposição pré-natal a doses altas de acetaminofeno trouxe defeitos de comportamento após o nascimento. Além do prejuízo à criança, o paracetamol também pode cursar insuficiência hepática materna, levando, por sua vez, a danos a outros órgãos e ao bebê.

 Outro prejuízo descrito foi o mascaramento de sintomas que, outrora sutis, poderiam indicar a manifestação de outras condições patológicas, como a dor de cabeça suprimida por medicamentos de venda livre mascarando uma possível pré-eclâmpsia (Pereira et al, 2021). Parte das motivações das gestantes para a autoadministração medicamentosa parte do primeiro trimestre de gestação, que é marcado pelo início dos desconfortos gestacionais e grande parte das mulheres lançam mão de medicamentos de venda livre, na tentativa de combater tais sintomas. Entretanto, mesmo alguns medicamentos de venda irrestrita, têm o potencial de induzir efeitos teratogênicos, principalmente neste período gestacional, que é muito suscetível à xenobióticos. Além disso, o uso indiscriminado de tais medicamentos pode levar a uma falsa sensação de segurança, retardando a busca por atendimento médico adequado (Pereira et al, 2021).

Dois outros motivadores da automedicação em mulheres grávidas nos chamaram a atenção. Aparentemente, o baixo nível de escolaridade e o número de gestações anteriores são apontados como catalisadores da automedicação. Mulheres com menor escolaridade podem ter menos acesso à informação sobre os riscos e cuidados necessários durante a gravidez, confiando mais em recomendações não profissionais ou experiências passadas. Da mesma forma, aquelas que já passaram por várias gestações podem se sentir mais confiantes em administrar medicamentos por conta própria, baseando-se em suas experiências anteriores (Pereira et al, 2021).

Os efeitos adversos decorrentes do uso inadequado de medicamentos podem ter um impacto devastador na saúde dos indivíduos em especial, tratando-se de populações especiais como idosos, crianças pequenas ou gestantes (Seixas, 2021; Araújo et al., 2022; Pons et al, 2023). Reações alérgicas leves até eventos adversos graves, como insuficiência renal ou hepática e depressão do Sistema Nervoso Central, são riscos consideráveis. Outro aspecto muito preocupante é o mascaramento de doenças subjacentes que pode suprimir sinais e sintomas de condições de saúde, que por sua vez podem evoluir silenciosamente, levando a complicações mais sérias no futuro. Esse fenômeno pode resultar não apenas na progressão de doenças existentes, mas também na manifestação de novas patologias, talvez preveníveis com diagnóstico e tratamento adequados.

De modo geral, os desenlaces do uso indiscriminado de medicamentos no Brasil trazem consigo, o reflexo de problemáticas intrincadas no comportamento brasileiro de “patologizar” e “medicalizar” (Silva, Mueller, Moraes, 2021). Essa cultura é uma pedra de tropeço, à medida que a banalização medicamentosa parte do postulado de buscar soluções imediatistas e simplórias que consideram o indivíduo apenas a partir da visão biomédica e  reducionista (Mueller, Moraes, 2021). Ainda que o olhar biomédico, em sua essência, seja fundamental para auxiliar a tecer a mais próxima e eficaz forma de tratamento pessoal, a saúde não pode ser vista tão meramente com os olhos fisiopatológicos, nem tida como objeto de medicalização. Em verdade, consideramos importante que haja tendências para converter esta cultura de “medicalizar” em temperamentos de promoção de saúde.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fenômeno do uso irracional de medicamentos é amplamente documentado na literatura nacional e internacional, representando um problema complexo com raízes profundas na sociedade brasileira. Diante disso, afirmamos que os fatores que influenciam o comportamento da automedicação são multifacetados e foram fortemente inflamados durante a pandemia, em meio à disseminação de informações infundadas em bases científicas.  O uso indiscriminado de medicamentos no Brasil reflete a tendência de “patologizar” e “medicalizar” os variados pontos da vida, indo de encontro às tendências paradoxais da indústria farmacêutica de “vender doenças”. Nesse contexto, consideramos neste manuscrito, os efeitos potencialmente destrutivos decorrentes da automedicação à saúde das pessoas.

Os resultados dessa tendência são desastrosos e preocupantes para as sociedades, especialmente considerando o aumento exponencial deste fenômeno ao longo do tempo. Esses desfechos ainda não foram totalmente compreendidos e os impactos, provavelmente continuarão a ser sentidos. Entretanto, esperamos que num futuro próximo, a “conscientização sobre medicação” torne-se parte do comportamento das sociedades. Este artigo apresenta alguns limitadores, como o fato de os artigos de revisão serem naturalmente restritos a partes de um amplo tema. Portanto, sugerimos como perspectivas futuras, pesquisas estruturadas em bases de dados representativas em números de artigos. Para alcançar este objetivo, pode-se adotar um recorte temporal maior e o rastreio do perfil de automedicação antes e após a pandemia de Covid-19.

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