BIOÉTICA E TRANSSEXUALIDADE: A POPULAÇÃO TRANSSEXUAL AINDA É INVISÍVEL PARA A CIÊNCIA

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.12123793


Esthefânia Garcia de Almeida
Gustavo Ariel Borges Fernandes


INTRODUÇÃO

O conceito de bioética, como idealizado por Van Rensselaer Potter, surgiu a partir de uma necessidade de chamar a atenção das pessoas para as possíveis implicações dos avanços da ciência sobre a vida (Junqueira, 2011). Não somente isto, mas também para abranger debates sobre ciência, saúde e justiça juntos, levando sempre em consideração o respeito, proteção e cuidado com os organismos vivos, incluindo seres humanos e animais (Motta et al., 2012).

Em 2013, através da Portaria no 2830, foi regulamentado o tratamento transexualizador. Assim, o tratamento hormonal para afirmação de gênero em pessoas transgênero (trans) tem sido respaldado por órgãos médicos como a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia e o Conselho Federal de Medicina, visto o impacto na saúde dessa população (Brasil, 2013).

Todavia, atualmente, ainda há resistência no Brasil e no mundo quanto ao tratamento hormonal da pessoa transgênero e suas implicações para o organismo que recebe tal tratamento (efeitos colaterais dos medicamentos e benefícios do tratamento) (Barbosa; Silva; Seródio, 2020; Brasil, 2013). Tudo isso, inserido em um contexto de preconceito e marginalização dessa população, inclusive por profissionais de saúde (Cruz, 2014; Muller; Knauth, 2008). É importante ressaltar que artigos científicos sobre harmonização de pessoas transsexuais são relativamente recentes, não existindo estudos de seguimento por mais de 10 anos, com muitas questões em aberto, como os impactos da terapia no longo prazo e opções de tratamento diversas como estrogênio intramuscular ou subcutâneo em mulheres trans (D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Houssayni; Nilsen, 2018). Além disso, a falta de informação sobre efeitos adversos e alterações fisiológicas que o tratamento transexualizador é capaz de produzir dificulta o acompanhamento farmacoterapêutico do paciente (Barbosa; Silva; Seródio, 2020; D’Hoore; T’Sjoen, 2022).

A pessoa transgênero é aquela que não se identifica com o fenótipo de gênero (ainda caracterizado na literatura como “sexo biológico”) apresentado ao nascimento. Essa característica é chamada também de disforia ou incongruência de gênero. Hoje em dia, estima-se que 4,6 em cada 100.000 mil pessoas apresentem disforia de gênero e comecem o tratamento transexualizador, sendo maior para mulheres trans do que para os homens trans (Trindade et al., 2020).

Assim, é possível perceber diversas situações, além do preconceito que ainda existe, que dificultam instituir o tratamento adequado dessa população no país, tais como dificuldade de prever efeitos adversos, terapêuticas para manejo desses efeitos e quais são as consequências a longo prazo da utilização desses hormônios (D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Houssayni; Nilsen, 2018).

A partir disso, este trabalho objetiva uma revisão de literatura a respeito da terapia hormonal de afirmação de gênero em adultos, de modo a esclarecer os profissionais de saúde, ampliar o acesso dessa população à assistência e evidenciar a população trans e a importância de seu tratamento correto e digno dentro dos ditames da lei.

JUSTIFICATIVA

A população transgênero no mundo encontra-se em constante crescimento (Trindade et al., 2020). Há uma década já se respalda o tratamento de tal condição no Brasil, considerando o impacto na sobrevida e qualidade de vida (Motta et al., 2012). Todavia, muitos profissionais de saúde ainda não assistem essa população em suas demandas devido ao preconceito e estigmatização (Barbosa; Silva; Seródio, 2020; Silva; Mendonça, 2022). Além disso, o Brasil ainda não possui campanhas de assistência à saúde para a população transsexual e ainda há utilização inadequada de anticoncepcionais para hormonização (Krüger et al., 2019). O presente trabalho traz uma revisão de literatura quanto à terapia hormonal em transgêneros adultos: seus riscos, benefícios e implicações éticas, de modo a conscientizar os profissionais de saúde quanto à sua aplicabilidade e segurança, bem como estimular a realização de novas pesquisas, para que o acesso da população trans aos serviços para afirmação de gênero seja facilitada. 

OBJETIVOS

Através de uma busca bibliográfica de periódicos em inglês e português por meio de recursos eletrônicos na base de dados PuBMed e na biblioteca eletrônica Scientific Eletronic Library On-line (SciELO), publicados entre 2010 e 2023, valendo-se dos descritores transgênero (transgender) e saúde (health), foi realizada uma revisão de literatura, que tem por objetivos:

  • Caracterizar a terapia hormonal utilizada no Brasil para homens transgênero;
  • Caracterizar a terapia hormonal utilizada no Brasil para mulheres transgênero;
  • Apresentar riscos e benefícios da terapia hormonal nessas populações e estabelecer correlação com terapias hormonais utilizadas em pessoas cisgênero;
  • Elucidar mediante a evidências científicas os impactos da terapia hormonal de afirmação de gênero;
  • Demonstrar que a população transsexual ainda é invisível para a ciência, visto que a literatura sobre ainda é limitada.

Uma vez encontrados os artigos, estes foram analisados e aqueles publicados com relevância no assunto em destaque e que atendiam aos objetivos do estudo foram incluídos na revisão. 

REVISÃO DE LITERATURA 

Ainda hoje, embora tenham surgido mais pesquisas a respeito do tratamento da pessoa transgênero, ainda encontramos muitas barreiras aos cuidados em saúde (D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Houssayni; Nilsen, 2018). Dentre elas: Medo de serem vistos como diferentes (estigma e violência), dificuldade de encontrar bons profissionais na área, dificuldade de acesso a informações, falta de acesso a prescrição e monitoramento da terapia hormonal. O estudo apresentado por Houssayni e Nilsen (2018) indicou que 50% dos transgêneros em pesquisa informaram que tiveram que educar profissionais a respeito da saúde trans.

Recentemente, mais medidas têm sido tomadas para apoiar os cuidados em saúde da pessoa trans, como políticas de respeito à pessoa trans em busca dos serviços de saúde e providência de cuidados às pessoas em todas as fases da transição, porém, cuidados médicos para transição de gênero ainda é a causa mais comum de negativa em seguros de saúde nos Estados Unidos, embora muitos planos já autorizam o tratamento. O aumento crescente de pessoas trans e a necessidade de tratamento exige que os planos sejam mais abrangentes à medida que mais pesquisas sejam conduzidas, evidenciando o benefício da terapia hormonal, sem viés e com novas formas de avaliação à resposta (Houssayni; Nilsen, 2018).

Segundo o guia de cuidados da Associação Mundial de Profissionais para Saúde Transgênero (World Professional Association for Transgender Health – WPATH), adultos buscando terapia hormonal para afirmação de gênero devem apresentar: incongruência de gênero persistente e bem documentada, capacidade de tomar decisões e autorizar o tratamento, ter atingido maioridade e ter controlado qualquer distúrbio psiquiátrico que possa impactar no tratamento. Idealmente, a terapia hormonal deve ser iniciada aos cuidados de um endocrinologista ou outro médico especialista na prescrição de hormônios (Coleman et al., 2022; D’Hoore; T’Sjoen, 2022).  

Desde 1979, com o primeiro guia de cuidados da WPATH, a terapia hormonal para afirmação de gênero já tinha sido aceita como necessária do ponto de vista médico. A WPATH vai ao encontro de diretrizes médicas da Endocrine Society (norte-americana), publicadas em 2009 e 2017 e, também, do parecer da Sociedade Europeia (European Society for Sexual Medicine), publicado em 2020 (Coleman et al., 2022).

 Quando fornecida sob supervisão médica, a terapia hormonal para afirmação de gênero em adultos é segura (Coleman et al., 2022; Safer; Tangpricha; 2019; Tangpricha; den Heijer, 2017). Todavia, há potenciais riscos no longo prazo e o acompanhamento cuidadoso com rastreio para complicações e comorbidades se faz necessário para reduzir efeitos adversos (Coleman et al., 2022; D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Vieira, 2019).

Diante do exposto, esta monografia objetiva trazer as atualizações mais recentes na terapia de afirmação de gênero para pessoas trans, seus benefícios, como ela tem sido administrada e seus possíveis efeitos colaterais e riscos, bem como identificar lacunas científicas de modo a melhor educar profissionais de saúde, para que a assistência seja oferecida de forma adequada a essa população. 

O principal objetivo da terapia hormonal para afirmação de gênero é melhorar a qualidade de vida através do alinhamento do aspecto físico com o gênero de identificação. Becker et al. (2018) demonstraram em estudo multicêntrico que indivíduos que passaram por tratamento de afirmação de gênero se sentiam mais atraentes e confiantes em seus corpos. Além disso, acredita-se que há impacto da terapia hormonal em problemas de saúde mental, pois a população estudada apresenta incidência de suicídio, depressão e ansiedade 2 a 3 vezes maior que a da população em geral. Além disso, o estudo apontou menor aparecimento de problemas psicológicos e dificuldades interpessoais, menos depressão e ansiedade e aumento da satisfação pessoal (D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Ruppin; Pfäfflin; 2015). Em estudo alemão, nenhum paciente expressou arrependimento quanto ao início da terapia para afirmação de gênero. Além disso, ainda foi evidenciado em estudo que o uso de testosterona não aumenta a agressividade em pessoas trans (Becker et al., 2018; Defreyne et al., 2019; D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Ruppin; Pfäfflin; 2015).

Homens transgênero são designados do sexo feminino ao nascimento, mas se identificam como sexo masculino. Seu tratamento hormonal consiste na administração de testosterona para alcançar o máximo de virilização/masculinização de suas características sexuais (D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Vieira, 2019).  Os níveis de testosterona são aumentados através da administração via transdérmica ou intramuscular, buscando níveis entre 300 e 1000 ng/dl (D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Vieira, 2019). No primeiro ano, a avaliação deve ser trimestral para sinais de masculinização e efeitos colaterais. O efeito mais marcante é a amenorreia, aumento de pelos faciais e corporais, aumento de massa muscular com mudança de gordura corporal para um padrão mais masculino, aumento de acne e libido. A voz fica mais grossa e há clitoromegalia, além do aumento de chance do aparecimento da calvície. Caso o início da terapia seja após os 40 anos, pode-se observar menos sinais de virilização (D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Vieira, 2019). 

Mulheres trans são aquelas que nasceram com sexo biológico masculino e, em sua terapia hormonal, requerem um bloqueio de testosterona (efeito antiandrogênico) e aumento de estrogênio (Houssayni; Nilsen; 2018). O tratamento objetiva reduzir a testosterona a níveis femininos (30-100 ng/dl) e obter níveis de estrogênio que não ultrapassem a referência feminina (<200 pg/ml) (D’Hoore; T’Sjoen, 2022). Usar agentes anti androgênicos como espironolactona e ciproterona oral pode reduzir a dose necessária de estrogênio (Coleman et al., 2022). No Brasil, o tratamento com estrogênio é por meio de estradiol via oral, transdérmica ou, mais raramente, intramuscular (Augusto; Oliveira; Polidoro, 2022). As mudanças estéticas objetivadas são redução de pelos, da oleosidade da pele, redução de massa muscular com redistribuição de gordura corporal em padrão feminino, redução de ereções espontâneas, libido e desenvolvimento de mamas, que atingem seu pico após 2 anos do uso de hormônios (D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Vieira, 2019).  

Considerando a forma já bem caracterizada de manejo hormonal da pessoa transgênero e os benefícios em qualidade de vida e saúde mental para pessoas com indicação para o tratamento, uma questão preocupante para profissionais de saúde seriam os efeitos adversos e riscos da terapia. Embora ainda existam poucos estudos, em especial de longo prazo, os resultados apresentados são promissores em termos de segurança, em especial para pacientes que realizam rastreio de comorbidades (em especial câncer e alterações cardiovasculares) e monitorização médica do tratamento hormonal (D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Houssayni; Nilsen, 2018). 

Dentre as principais preocupações quanto ao tratamento de afirmação de gênero estão: saúde osteoarticular, segurança cardiovascular e risco trombogênico, além de risco de câncer (D’Hoore; T’Sjoen, 2022).

A saúde óssea não obteve impacto negativo em homens transgênero (Wiepjes et al., 2020). Inclusive, em homens trans com mais de 50 anos, houve benefício da terapia hormonal na saúde óssea, considerando aromatização da testosterona em estrogênio, foi possível reduzir a perda óssea pós-menopausa (Vlot et al., 2019). Em conclusão, não houve aumento do risco de fratura (Vlot et al., 2019; Wiepjes et al., 2020). Quanto às mulheres transgênero, estudos mostram que antes do início da terapia hormonal, 21,9% das mulheres trans já apresentavam baixa densidade mineral óssea em comparação a mulheres cis da mesma idade (Van Caenegem et al., 2013). Outros estudos mostraram alta porcentagem de hipovitaminose D em mulheres trans (Motta et al., 2020). Um estudo holandês, com coorte nacional, avaliando mais de 2000 mulheres transgênero, evidenciou maior risco de fratura em mulheres trans acima de 50 anos em comparação a homens cis da mesma idade (Wiepjes et al., 2020). Em mulheres trans jovens, o risco de fratura tendeu a ser maior do que em mulheres cis da mesma idade (Wiepjes et al., 2020). Diante desse risco, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia recomenda a realização de rastreio com Densitometria Óssea bianual (Vieira, 2019; Wiepjes et al., 2020). 

Quanto ao risco cardiovascular, notou-se em estudo relacionado a infarto agudo do miocárdio uma incidência em homens trans duas vezes maior do que em homens cis e quatro vezes maior do que em mulheres cis, mesmo após ajuste para outros fatores de risco cardiovascular. As mulheres trans tiveram incidência duas vezes maior do que as mulheres cis, mas não houve diferença comparado a homens cis. Uma limitação do estudo foi a falta de informações detalhadas quanto ao tipo de terapia hormonal utilizada pelos participantes (Alzahrani et al., 2019).

No tocante a situações peça chave na ocorrência de eventos cardiovasculares, como disfunção endotelial e arterioesclerose em pessoas trans, segundo estudo da Associação Americana do Coração (AHA), não foram encontrados grandes estudos quanto à disfunção vascular e transgêneros, mesmo aqueles sob uso de hormônios. Embora estrogênio e testosterona estejam associados com a melhora da função endotelial e redução do enrijecimento das artérias em pessoas cis, não há estudos equivalentes na população trans (Streed et al., 2021). 

Estudo de caso-controle avaliando função endotelial comparando homens trans recebendo cipionato de testosterona e mulheres cis demonstrou piora da função endotelial (Gulanski et al., 2020).  Quanto a mulheres trans, a função endotelial e o enrijecimento arterial melhoraram com a TH, foi feita avaliação da dilatação arterial mediada pelo fluxo em arterial braquial, que foi maior em mulheres trans sob uso de estrogênio, do que em homens cis, mas similar a mulheres cis (New et al., 2000; Sharula et al., 2012). 

Quanto à incidência de tromboembolismo venoso e derrame, estudos ainda apontam aumento de incidência em mulheres trans comparadas tanto a mulheres cis quanto homens cis. Essa incidência aumentada tem relação com o uso de progestinas associadas ao estrogênio, via de administração (transdérmica tende a ser mais segura) e idade da paciente (idosas têm mais risco) (D’Hoore; T’Sjoen, 2022).

Por isso, a WPATH, recomenda que, devido ao risco aumentado de trombose, não se use etinilestradiol ou estrógenos conjugados, onde formas bioidênticas de estradiol (como valerato de estradiol) estiverem disponíveis, como é o caso do Brasil, e dar preferência pelas formas tópicas de estradiol em casos de alto risco para tromboembolismo, como idade maior que 45 anos e história prévia de tromboembolismo venoso. Ainda, recomenda-se o uso associado de medicação anti-androgênica (como espironolactona, agonistas do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH) ou acetato de ciproterona), para que seja necessário menor dose de estrogênio diário para obtenção do resultado almejado (Coleman et al., 2022).  

No caso de homens trans, não foi encontrado efeito pró-coagulante do tratamento, seja com testosterona em gel, seja via intramuscular (D’Hoore; T’Sjoen, 2022).

No tocante à hipertensão, não foi observado aumento da incidência em pessoas trans durante o tratamento. Quanto ao perfil lipídico, foi observado aumento do colesterol total em homens trans, com aumento do LDL e triglicerídeos e redução do HDL já no primeiro ano da terapia hormonal. Quanto às mulheres trans, foi observada redução do colesterol total, LDL, triglicérides e resultados conflitantes foram apontados quanto ao HDL (alguns estudos mostraram queda dos níveis e, outros, aumento) (D’Hoore; T’Sjoen, 2022).

Quanto a variações no hematócrito, homens trans, em especial no primeiro ano de tratamento, apresentaram aumento do hematócrito e hemoglobina, com possibilidade de evolução para eritrocitose até 20 anos após início do tratamento. Mulheres trans, por sua vez, apresentaram queda do hematócrito (D’Hoore; T’Sjoen, 2022).

Embora o número de eventos cardiovasculares seja pequeno, é recomendada atenção a essa população com o avançar da sua idade. Esses pacientes também devem ser monitorados quanto ao perfil lipídico, hemograma, glicemia, pressão arterial, índice de massa corporal, tabagismo e estilo de vida sedentário (D’Hoore; T’Sjoen, 2022). 

O risco de câncer observado em pessoas trans não ultrapassa o risco já conhecido identificado em pessoas cis. Profissionais de saúde devem conhecer a anatomia dos pacientes trans e realizar o rastreio habitual. Sugere-se seguir diretrizes de rastreio para câncer de acordo com os órgãos presentes e fatores de risco (D’Hoore; T’Sjoen, 2022). 

Conhecendo esses fatores de risco e efeitos adversos, a WPATH recomenda que profissionais de saúde avaliem e apresentem condições de saúde que possam ser exacerbadas com a redução dos hormônios sexuais endógenos e tratamento com hormônios exógenos antes do início da terapia de afirmação de gênero. Recomenda-se ainda que os pacientes sejam educados sobre a evolução natural das mudanças físicas causadas pelo tratamento hormonal. Visto o impacto na qualidade de vida e funcionamento psicossocial, a WPATH recomenda ainda que seja iniciada e mantida a terapia hormonal de afirmação de gênero para pacientes com indicação, mesmo em um contexto de piora da saúde mental temporário durante o uso dos hormônios, enquanto se investiga a sua causa (Coleman et al., 2022).

Em suma, a terapia hormonal de afirmação de gênero reduz problemas de saúde mental em pessoas trans e ajuda a obter o efeito físico desejado. Ainda assim, considerando a prevalência de transtornos psiquiátricos em pessoas com incongruência de gênero, a figura de um profissional de saúde mental deve acompanhar esses pacientes (D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Nguyen et al., 2018). 

Do ponto de vista somático, as principais preocupações são saúde óssea, saúde cardiovascular e risco de câncer. Em homens trans, a massa óssea melhora com a terapia, em mulheres trans, os resultados são inconclusivos, uma vez que há viés como hipovitaminose D e baixa massa óssea já antes da terapia hormonal (D’Hoore; T’Sjoen, 2022). 

A literatura quanto ao risco cardiovascular é escassa e o foco está em futuras pesquisas, uma vez que o artigo encontrado associando aumento do risco cardiovascular, em especial no caso dos homens trans, não caracteriza a terapia hormonal em uso. Contudo, as mulheres trans apresentam, sim, um risco aumentado de tromboembolismo venoso. O perfil lipídico apresenta piora em homens trans e melhora em mulheres trans. O hematócrito em homens trans tende a aumentar de forma discreta (D’Hoore; T’Sjoen, 2022). 

Não há diferença documentada na incidência de câncer em pessoas trans com relação a pessoas cis. Prolactinomas podem ocorrer com mais frequência em mulheres trans, bem como meningiomas em mulheres trans em uso de altas doses de ciproterona (D’Hoore; T’Sjoen, 2022). 

Por isso, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia estimula o acompanhamento trimestral no primeiro ano, semestral no segundo ano e anual após dois anos para pessoas trans em uso de terapia hormonal, de modo a diminuir os riscos associados à terapia (Vieira, 2019). 

Enfim, estudos de curto prazo sobre a terapia hormonal de afirmação de gênero são tranquilizadores. Por isso, grandes sociedades médicas como a Endocrine Society e a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia têm apoiado seu uso em pessoas com indicação. Além disso, as diretrizes guiam a monitorização do tratamento e manejo de complicações. Todavia, ainda faltam pesquisas sobre o tratamento no longo prazo, em especial quanto à saúde cardiovascular e mental dessa população no Brasil e considerando que a procura da pessoa trans pelos serviços de saúde encontra-se em ascensão (Coleman et al., 2022; D’Hoore; T’Sjoen, 2022; Houssayni; Nilsen, 2018; Vieira, 2019).

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