COVID 19 NO BRASIL E VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA DISPUTAS ENTRE A AUTODETERMINAÇÃO INDIVIDUAL E O DIREITO À SAÚDE COLETIVA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11534665


Keila Cristina Souza Oliveira Soares[1]
Rafael Schettini Filho[2]
Prof. Orientador:Fabio Ramos Barbosa[3]


RESUMO

A OMS foi alertada acerca de casos de pneumonia na cidade de Wuhan, ocasionados por um novo vírus denominado como SARS-CoV-2 e em decorrência da alta taxa de transmissibilidade. Frente à um cenário de complicações à saúde pública e mortalidade considerável, foram desencadeadas iniciativas pelo desenvolvimento de uma vacina, com cerca de 200 projetos de desenvolvimento registrados na OMS. Assim, como medida de caráter emergencial e desespero público frente à saúde brasileira, foi instaurada a Lei 13.979/2020, na qual, foi descrito a possibilidade de obrigatoriedade de determinadas medidas, como a vacinação. Assim, o presente artigo de revisão bibliográfica, tem por objetivo analisar os elementos da normativa jurídica estabelecida durante a Pandemia da COVID-19, acerca da obrigatoriedade da vacinação, para entender se eles foram à contramão do direito humano à autonomia. Dessa forma, a partir da análise de uma amostra de 13 artigos, observou-se que a vacinação obrigatória em massa da população, diante princípio de proporcionalidade, e não violação do direito fundamental de outros indivíduos, sem que haja uso da força ou imposição física para o ato da vacinação, configura-se como ação constitucional, sendo embasadas sanções indiretas àqueles que se opuserem a administração da dose de vacina.

Palavras-chave: Vacinação obrigatória; COVID-19; Saúde coletiva.

ABSTRACT

The WHO was alerted about cases of pneumonia in the city of Wuhan, caused by a new virus called SARS-CoV-2 and due to the high rate of transmissibility. Faced with a scenario of public health complications and considerable mortality, initiatives were launched to develop a vaccine, with around 200 development projects registered with the WHO. Thus, as an emergency measure and public despair regarding Brazilian health, Law 13,979/2020 was introduced, in which the possibility of making certain measures mandatory, such as vaccination, was described. Therefore, this bibliographic review article aims to analyze the elements of the legal regulations established during the COVID-19 Pandemic, regarding mandatory vaccination, to understand whether they went against the human right to autonomy. Thus, from the analysis of a sample of 13 articles, it was observed that mandatory mass vaccination of the population, based on the principle of proportionality, and not violation of the fundamental rights of other individuals, without the use of force or physical imposition for the act of vaccination, it is configured as a constitutional action, with indirect sanctions being based on those who oppose the administration of the vaccine dose.

Keywords: Mandatory Vaccination; COVID-19; Public Health.

1. INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) foi alertada acerca de diversos casos de pneumonia na cidade de Wuhan, na China, ocasionados por um novo vírus denominado como coronavírus 2 da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2), que estaria produzindo a doença posteriormente classificada como COVID-19. Essa nova comorbidade apresentou como sintomas de maior frequência a febre, tosse seca, cansaço, coriza, obstrução nasal, diarreia e dor de garganta. Contudo, cerca de 14% dos pacientes podem apresentar sintomas severos, como dificuldade em respirar e falta de ar, com necessidade de internação para oxigenoterapia, ao passo que, 5% podem cursar com sintomas críticos, como insuficiência respiratória e risco de morte (Prado et al., 2020, p. 2).

Nessa perspectiva, em decorrência da alta taxa de transmissibilidade, a infecção pelo SARS-CoV-2 determinou o estabelecimento de estado pandêmico em todo o mundo, com números expressivos de infectados e de óbitos, na qual, até 03 de junho de 2020, já haviam sido notificados 6.287.771 casos confirmados de contágio, e 379.941 óbitos pelo novo coronavírus, sobretudo com quadros de infecção nos continentes americano e europeu (Teixeira et al., 2020, p. 3466).

De forma similar, no epicentro do quadro ainda epidêmico, em Hubei na China, a média de idade dos pacientes admitidos em Unidades de Terapia Intensiva foi em torno de 66 anos, sendo que 58% apresentavam condições crônicas, como hipertensão arterial, diabetes, problemas cardíacos e insuficiência renal. Além disso, a taxa de letalidade se mostrou elevada em 10,5% para pacientes com doenças cardiovasculares, 7,3% para diabéticos e 6,3% para doenças respiratórias crônicas e 6% para hipertensos (Moreira, 2020, p. 6).

Assim, frente à um cenário de complicações à saúde pública e mortalidade considerável, foram desencadeadas iniciativas pelo desenvolvimento de uma vacina, com cerca de 200 projetos de desenvolvimento registrados na OMS, a partir do investimento de governos, empresas farmacêuticas e instituições não governamentais para a criação de vacinas seguras e eficazes. No cenário brasileiro, três acordos de transferência de tecnologia foram assinados: um referente ao Instituo de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)/Ministério da Saúde, com o laboratório de pesquisa AstraZeneca, que manteve trabalho conjunto com a Universidade Oxford, do Reino Unido; outro do Instituto Butantan do Estado de São Paulo, com a empresa Sinovac, da China (Coronavac); e com o Instituto de Tecnologia do Paraná (TECPAR) do Estado do Pará com o Instituto Gamaleya, na Rússia (Sputinik V) (Domingues, 2021, p. 2).

De forma concomitante, como medida de caráter emergencial e em um contexto de alarme e desespero público frente à saúde brasileira, foi instaurada a Lei 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, e em seu Art. 3°, foi descrito a possibilidade de obrigatoriedade de determinadas medidas, como a vacinação:

Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: I – isolamento; II – quarentena; III – determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou tratamentos médicos específicos […] (BRASIL, 2020).

Dessa forma, o presente estudo tem por objetivo, analisar os elementos da normativa jurídica estabelecida durante a Pandemia da COVID-19, acerca da obrigatoriedade da vacinação, para entender se eles foram à contramão do direito humano à autonomia, não preservando nem protegendo as liberdades individuais ou garantiram essas liberdades resguardando, ao mesmo tempo, os direitos coletivos à saúde, além de pesquisar os fatos históricos e acontecimentos sociais que ocasionaram a pandemia mundial de COVID-19; mapear e discutir a legislação, projetos de leis e normativas estabelecidas durante a emergência de COVID-19 que doutrinavam sobre obrigatoriedade da vacinação; e identificar os principais argumentos de base científica, legal e filosófica, levantados no âmbito dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, que se posicionaram a favor ou contra inação compulsória.

O presente artigo trata-se de uma revisão bibliográfica, de cunho integrativa, que é a abordagem metodológica mais ampla, no que tange às revisões, na qual permite uma compreensão completa do fenômeno analisado por possibilitar o uso de estudos experimentais e não-experimentais (Souza; Silva; Carvalho, 2010), e assume a forma qualitativa de pesquisa, que é adequado para áreas, temas ou problemas que não são totalmente elucidados, uma vez que demanda de processos voltados para aprofundamento e compreensão sobre os fenômenos estudados. (Sampieri; Collado; Lúcio, 2013; Minayo, 2014, apud Silva et al, 2018).

Além disso, o nível desta pesquisa é exploratório, tendo em vista a sua característica de levantamento bibliográfico e documental com a finalidade de esclarecer e desenvolver conceitos e ideias. (Gil, 2008).

A coleta de dados se deu por meio de buscas nas bases de dados científicas, Periódicos CAPES e Google Acadêmico. Em consonância, foram utilizados os seguintes descritores e operadores booleanos: Vacinação Obrigatória AND COVID-19.

Foram incluídos artigos originais, na íntegra, gratuitos, redigidos em português, inglês ou espanhol, entre os anos de 2020 à 2024 e que foram compatíveis o objetivo de pesquisa. De forma concomitante, foram excluídos os artigos de opinião, cartas ao editor, e os estudos não compatíveis com o objetivo de pesquisa.

2. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com a pesquisa nas bases de dados, foram encontrados 760 artigos, destes 42 artigos foram selecionados para leitura e conforme o objetivo do presente trabalho e 13 artigos foram incluídos na pesquisa: 09 artigos do Google Acadêmico e 03 artigos da Periódicos CAPES como representado na figura 1.

Figura 1 – Representação esquemática de síntese e análise de resultados

Fonte: Soares, Schettini Filho, Barbosa, 2024.

2.1. Conjectura do direito humano à autonomia: perspectiva filosófica

De acordo com filosofia kantiana, a liberdade está intrinsecamente ligada ao fato de o indivíduo obedecer ou não à lei moral, sendo assim, ocorre no sentido prático de ação moral daquilo que é feito ou deixado de fazer com relação à lei. Assim, no que tange o pensamento kantiano, a sua conceituação de liberdade ocorre a partir do princípio do imperativo categórico e a partir da compreensão da lei moral, como sendo uma “Lei universal” (Silva, 2016, p. 6).

Dessa forma, o homem totalmente livre, na perspectiva de Kant, é aquele que têm a capacidade de escolher o que lhe é bom, ou seja, livre é aquele dotado da qualidade de escolha, dentro do que lhe se mostra ser bom. Por conseguinte, o indivíduo assim que exerce a sua escolha, está sendo autônomo e colocando em função plena a sua liberdade (Silva, 2016, p. 6).

Com aprofundamento na perspectiva de liberdade desenvolvida por Rousseau, a partir do “Contrato Social”, onde o “O homem nasce livre, mas está em toda parte acorrentado”, (Do, 2023, p. 312), Kant transforma este conceito em autonomia da vontade, na qual, entende-se como princípio básico, norteador, que é pautado sobre perspectivas de axiomas morais e universais, onde o identifica como:

[…] o único princípio da moralidade e, afirma ainda, que o princípio da moralidade deve ser um imperativo categórico […]. A pessoa autônoma é a que consegue transpor as barreiras do próprio quere e é capaz de viver uma vontade que seja universalizada” (Silva 2016, p. 9).
A autonomia é aquela sua propriedade graças à qual ela para si mesma a sua lei (independente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é, portanto, não escolher senão de modo que as máximas da escolha estejam incluídas, simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal. (Kant, 1994, p. 85, apud Barreto Neto, 2015, p. 5).

O Direito é, em si, nesta conjuntura, um instrumento de regulação social que dispõe de uma série de comportamentos aos indivíduos de forma coercitiva. Então, descumprir normas jurídicas resulta em consequências sancionadores aplicadas pelo Estado e este, procura promover a harmonia social e minimizar a desordem, com proibição de muitas condutas que promovam tais desestruturações sociais.

Em consonância, a condição em que uma autoridade estatal impõe ao indivíduo a fazer algo sem que o ordenamento jurídico de alguma forma informe ou justifique que este última detenha o dever de fazê-lo, é um indicativo do exercício ilegítimo do seu poder coercitivo. Assim, apenas podem ser receptivos de obrigações, os indivíduos capazes de agir por razões, na medida em que um dever, ou imposição deste, não pode ser a causa de uma causa, mas, consiste em uma razão para agir de acordo com o que é definido. Em vista disto, a ameaça de sanção por não cumprimento de deveres impostos sem justificativa, por si só não é e nem deve ser capaz de gerar uma obrigação de exercício legal de determinadas imposições (MacDonald, Storck, 2013, p. 14).

Uma vez que o direito têm em sua posse a função de regular os termos da cooperação social, de forma justa, com redistribuição de encargos e benefícios a pessoas e os deveres oriundos desse ordenamento necessita de constituir razões autônomas para que seus indivíduos receptores ajam em conformidade a estes deveres, as razões que foram impostas para justificar a restrição de liberdade ou autonomia de um cidadão, têm de se impor da mesma maneira a casos semelhantes, com o objetivo de evitar prejuízos ao caráter recíproco da cooperação social (MacDonald, Storck, 2013, p. 22).

2.2. Implicações da obrigatoriedade da vacinação do COVID-19 ao direito da autonomia

A vacina é a principal forma de combate e contenção de diversas doenças virais. Os altos índices de mortalidade pelo Sars-CoV-2 apresentados em diversos países, instigou estados e municípios brasileiros a buscar recursos para ampliar a cobertura vacinal, incluindo a possibilidade de tornar a vacinação obrigatória (Barbosa et al., 2022).

A vacinação compulsória é definida, de acordo com Freitas e Basso (2021, p 4), como uma ação de imunização obrigatória, prevista em lei, onde aquele indivíduo que se recusa a receber a imunização fica sujeita a punições, em decorrência da prerrogativa de pôr em risco a saúde daqueles que estão à sua volta. Dessa forma, em um contexto de pandemia de COVID-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade da vacinação compulsória por meio do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 6.585/DF.

Com o advento do Programa Nacional de Imunizações, listando as vacinas obrigatórias, de acordo com o Decreto Federal 78.231/76, o Ministério da Saúde afirma o “dever de todo cidadão de submeter-se a si e aos menores sob a sua guarda ou responsabilidade pela vacinação obrigatória”, sendo o atestado médico única forma de isenção permitida ao mandato vacinal. Por conseguinte, a vacinação tornou-se obrigatória apenas para grupos específicos, com determinação, por exemplo, a partir da Portaria 94/2024 do Ministério da Defesa, de vacinação aos militares.

Contudo, a Lei Federal 13.979/2020, estabeleceu condições estritas e de fornecimento de poderes amplos para obrigar a população a vacinar enquanto estiver em vigência a duração da pandemia, não especificando grupo específico alvo (Barbosa et al., 2022). Ademais, conceitos como requisição administrativa e suspensão temporária do direito de livre circulação também foram conceitos abordados na respectiva Lei, denominada por alguns como “Lei COVID” (Lima, Santana, 2021).

No decorrer do desenvolvimento das vacinas durante a crise sanitária de Covid-19, diversos argumentos foram propostos contra a obrigatoriedade de imunização, tendo como base o Código de Ética Médica, a Constituição Federal vigente e contextos relacionados à história pregressa de obrigatoriedade vacinal no Brasil. Com isso, um caso de concessão de liminar fornecida à uma professora municipal do estado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, com decisão judicial  de desobrigação da vacinação, utilizou como argumentos iniciais os princípios fundamentais do Código de Ética Médica, em seu capítulo I, em associação com o Código Civil Brasileiro, em seu art. 15 (Delduque et al., 2022, p. 871), que descrever que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”.

No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas (Conselho Federal de Medicina, 1990).

Entretanto, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina, em tempo, apresentou agravo de instrumento, contrariando os argumentos da liminar supracitada, concedida, com o discurso que os riscos inerentes à vacinação são demonstrados como inferiores aos danos possíveis provocados pela circulação desordenada do vírus, de forma que, a referida professora desobrigada inicialmente da vacinação, colocaria em risco as crianças/adolescentes em exposição, em conjunto com os demais funcionários do sistema de educação do município (Delduque et al., 2022, p. 871).

Em concomitância, com a argumentação de manutenção da proteção à saúde coletiva, entende-se que, a proteção a saúde urge como direito fundamental, que por intermédio de ações e prestação de serviços, auxilia para a garantia de fruição da plena saúde. Dessa maneira, ações de vacinação coletivas, contribuem para a garantia do direito à saúde, sendo estas, um forte princípio de proteção da saúde (Delduque et al., 2022, p. 873).

De acordo com Lima e Santana (2021, p. 5026), a análise acerca da constitucionalidade da obrigatoriedade da vacinação passa, no entender do Supremo Tribunal Federal:

Pelo cortejo dos direitos individuais de intangibilidade do corpo humano e inviolabilidade do domicílio, decorrentes do princípio da dignidade humana, de um lado, e de outro o inegável interesse da coletividade em se ver imunizada do vírus causador da pandemia (Lima, Santana, 2021, p. 5026).

Além disso, é perceptível, que no entender do Supremo, a partir do seguinte trecho proferido pelo Ministro Relator, Ricardo Lewandowski em julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.586, movido pelo Partido Democrático Trabalhista, que a Lei Federal n° 13.979/2020, em seu artigo 3°, inciso III, alínea “d”, fornece hipótese permitida de vacinação compulsão, desde que não forçada, de forma a sanções a não vacinação serem postas como indiretas aos indivíduos que se recusarem receber a imunização.

A obrigatoriedade da vacinação a que se refere a legislação sanitária brasileira não pode contemplar quaisquer medidas invasivas, aflitivas ou coativas, em decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, afigurando-se flagrantemente inconstitucional toda determinação legal, regulamentar ou administrativa no sentido de implementar a vacinação sem o expresso consentimento informado das pessoas (BRASIL, 2020).

Tal fato é corroborado com o esclarecimento fornecido pelo Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, em sua participação na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6.586 (Delduque et al., 2022, p. 872):

O que decorre do caráter obrigatório da vacinação é ela ser exigida como condição para a prática de certos atos, como a matrícula de uma criança numa escola, pública ou privada, ou como condição para a percepção de benefícios, como é o caso do próprio Bolsa Família, ou também permite que sejam aplicadas as penalidades em caso de descumprimento. Como regra geral, o Direito não admite que as obrigações de fazer sejam cumpridas à força – manu militari – pelo Poder Público.

Não obstante, Barroso (2013, apud Carmo Filho, Montagner, 2023, p. 5), em seu livro ‘Dignidade da pessoa humana do Direito Constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial’, aponta que, a análise da dignidade embasa-se no processo de restrição à autonomia individual, ou seja, limitação a direitos e liberdades individuais, em prol da dignidade de outros e valores socialmente compartilhados.

Nessa perspectiva, o autor propõe que as intervenções do Estado se tornam legítimas apenas quando há um direito fundamental de outras pessoas sendo desrespeitado, invadido ou com dano potencial para o próprio indivíduo, pressupondo que haja consenso social sobre a matéria (Carmo Filho, Montagner, 2023, p. 6).

Assim, Lima e Santana (2021, p. 5041), concluem que a obrigatoriedade da vacina, não deve entendida como vacinação forçada, uma vez que há garantido ao administrado o direito de recusa da imunização, desde que, ciente do acompanhamento de sanções indiretas a pessoa, como proibição de exercício de determinadas atividades, de frequentar determinados lugares ou outras funções, com expressa previsão legal, a partir do objetivo de pleno atendimento ao interesse coletivo.

Observar-se que, de acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, têm-se expressamente reconhecido o direito à liberdade e à individualidade, no que tange os direitos e garantias fundamentais aos cidadãos, de maneira que a autonomia da vontade está estreitamente interligada com a liberdade individual. Porém, esta não deve ou pode se sobrepor ao interesse coletivo social, em decorrência da sua maior função social (Lemos Junior, Vasconcelos, 2021, p. 75).

Sendo assim, o princípio da proporcionalidade tem de ser observado diante a relativização de algum direito fundamental, sem que haja prejuízo de sua eventual aplicação para os atos de sujeitos privados. Este princípio é um dos fundamentais limites às limitações de direitos fundamentais e divide-se em três outros subprincípios: adequação, proporcionalidade e necessidade, na qual, a proporcionalidade diz respeito a otimização em relação a colisão, sendo uma ponderação propriamente dita, ao passo que, a necessidade e adequação, objetivam a máxima realização das possibilidades factícias (Lemos Junior, Vasconcelos, 2021, p. 76).

Essa perspectiva, corrobora com o reconhecimento de caráter coletivo do direito à saúde, utilizado como embasamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 17 de dezembro de 2020, para estabelecimento da constitucionalidade da obrigatoriedade da vacinação contra a COVID-19, podendo ser, então, aplicadas medidas indiretas de coerção, desde que não seja traduzido em vacinação forçada (Lemos Junior, Vasconcelos, 2021, p. 75).

Um ponto importante para corroboração da justificativa de obrigatoriedade da vacina do COVID-19 em um contexto de alarme de saúde pública, se dá a partir da apuração da eficácia da vacina em reduzir o número de mortes, como demonstrado com a observação realizada em 53 países com instituição de programa vacinal contra o vírus Sars-CoV-2, na qual, foi denotado uma eficácia para redução no número de casos de complicações ou sequelas associadas a doença causada por esse vírus. Assim, reforça o conceito de que a vacina contra o COVID-19 demonstrou ser necessária para a preservação da saúde coletiva e da dignidade mínima exigível (Oliveira, Duarte, 2022, p. 20).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia de COVID-19 foi um marco histórico de situação de calamidade da saúde pública, na qual, como instrumento de medidas de contenção de propagação do vírus Sars-CoV-2, processos de isolamento social, instituição de estado de quarentena, imposição quanto ao uso de equipamentos de proteção individual, e esforços para desenvolvimento de vacinas foram incentivados.

Neste contexto, com o avançar do desenvolvimento tecnológico no campo da saúde para a criação de uma vacina segura e viável, com rápida distribuição para os países do globo, tornou-se necessário, frente aos altos índices de complicação associado a infecção pelo vírus, a instauração de medidas de obrigatoriedade vacinal no País. Com isso, a Lei Federal 13.979/2020 urge como respaldo jurídico para interposição de recursos e medidas estreitas para o estabelecimento de um cenário vacinal de cunho obrigatório, visando a manutenção da proteção à saúde em âmbito coletivo.

Contudo, foi questionado quanto a legitimidade da adoção desta medida, tendo em vista, a hipótese de provável violação dos direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal de 1988, por meio da instauração de Ações Direitas de Inconstitucionalidades, promovidas, inicialmente por representantes de Partidos Políticos brasileiros. Assim, foi determinado, por julgamento do Supremo Tribunal Federal, que a vacinação em massa da população brasileira, diante princípio de proporcionalidade, e em respeito a não violação do direito fundamental de outros indivíduos, frente a recusa de administração de imunização, em um contexto de obrigatoriedade vacinal, sem que haja uso da força ou imposição física para o ato da vacinação, configura-se como ação constitucional, sendo embasadas sanções indiretas àqueles que se opuserem a administração da dose de vacina.

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[1] Discente do curso de direito da Faculdade Independente do Nordeste

[2] Discente do curso de direito da Faculdade Independente do Nordeste

[3] Docente do curso de direito da Faculdade Independente do Nordeste