DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E A (IM)POSSIBILIDADE DE SUA DESCONSTITUIÇÃO

SOCIO-AFFECTIVE PATERNITY AND THE (IM)POSSIBILITY OF ITS DISCONSTITUTION

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11106223


Júlio Flávio Barbosa Carvalho1
Matheus Rodrigues Kallas2
Karoline Oliveira de Carvalho3
Zaíra García de Oliveira Soares4


RESUMO

O princípio da afetividade emergiu com a publicação da Constituição de Federal de 1988, momento em que se possibilitou o reconhecimento de diversas formas de família constituídas fora dos limites legalmente impostos até então. Partindo de tal premissa, o presente artigo tem como objetivo analisar o instituto da paternidade socioafetiva, seus efeitos e a possibilidade ou não de sua desconstituição. Primeiramente, estuda-se a previsão legal da filiação e da afetividade dentro do direito brasileiro, para então investigar o conceito, características e elementos constituidores da paternidade socioafetiva enquanto modalidade de família, levando em conta tanto os efeitos jurídicos quanto emocionais na vida da criança. Por fim, debate-se a problemática da possibilidade ou não da desconstituição e quais seriam suas repercussões jurídicas. Trata-se de uma revisão da bibliografia com sistematização e discriminação dos livros e demais materiais utilizados. Dentre eles, foi definida a bibliografia de livros nacionais, artigos jurídicos, decisões judiciais e legislações.

Palavras–chave: Paternidade Socioafetiva; Desconstituição; Afetividade.

ABSTRACT

The principle of affection emerged with the publication of the 1988 Federal Constitution, a moment in which it became possible to recognize different forms of family constituted outside the limits legally imposed until then. Based on this premise, this article aims to analyze the institute of socio-affective paternity, its effects and the possibility or not of its deconstitution. Firstly, the legal provision of filiation and affection within Brazilian law is studied, to then investigate the concept, characteristics and constituent elements of socio-affective paternity as a type of family, taking into account both the legal and emotional effects on the child’s life. Finally, the issue of whether or not deconstitution is possible and what its legal repercussions would be is discussed. This is a review of the bibliography with systematization and breakdown of the books and other materials used. Among them, the bibliography of national books, legal articles, judicial decisions and legislation was defined.

Keywords: Socio-affective paternity; Deconstitution; Affectivity.

INTRODUÇÃO

O conceito de “família” apresenta constante mutação tanto para a sociedade quanto para o Direito, seja na sua forma de constituição ou nas suas várias modalidades. No Brasil, essa fluida mudança acentuou-se a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que inseria no direito brasileiro, dentre inúmeros princípios norteadores, o princípio da afetividade. Aos poucos, o caráter objetivo, patriarcal e patrimonial foi cedendo lugar ao elemento subjetivo do afeto, no tocante ao reconhecimento jurídico da constituição familiar.

Desta feita, surge a paternidade socioafetiva, que pode ser conceituada como um vínculo entre pai e filho, no qual não há consanguinidade, mas uma relação de afeto entre eles. Investiga-se no presente estudo como procede legalmente o reconhecimento dos filhos afetivos e quais são os consequentes efeitos jurídicos produzidos, culminando na problemática da possibilidade da desconstituição dessa paternidade e as consequências na vida da criança na procedência dessa ação. Trata-se de tema ainda incipiente, mas que vem ganhando espaço na academia e, aos poucos, começa a chegar nos Tribunais, o que demonstra a sua atualidade e relevância. 

Assim, o presente artigo tem como objetivo geral aprofundar os conhecimentos disponíveis sobre a temática da paternidade socioafetiva e investigar a problemática da possibilidade de sua desconstituição jurídica. Para alcançar o objetivo geral foram traçados os seguintes objetivos específicos, contemplados em cada uma das sessões do presente artigo: a) análise do tratamento da filiação no direito brasileiro, bem como o princípio da afetividade; b) conceituação e caracterização da paternidade socioafetiva; c) reconhecimento legal e jurisprudencial da possibilidade da desconstituição da paternidade socioafetiva.

O trabalho reveste-se de caráter qualitativo, tratando-se de utilizando de revisão bibliográfica a partir da literatura existente sobre a temática, utilizando produções científicas e pesquisas bibliográficas de renomados juristas como referencial teórico, bem como a legislação vigente e decisões consolidadas nos tribunais pátrios. 

Tem-se um resultado positivo quanto ao traçado, uma vez que, ao final de toda a análise doutrinária, legal e jurisprudencial, conclui-se pela possibilidade da desconstituição da paternidade socioafetiva de acordo com as peculiaridades do caso.  

1  A FILIAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO E A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

O conceito de família apresentou diversas alterações ao longo do tempo, adaptando-se à evolução social por meio de alterações legislativas. Em 1979, João Baptista Villelapublicava sua pesquisa intitulada “Desbiologização da Paternidade”, na qual relatou as transformações recentes pelas quais a organização e estrutura da composição familiar estava passando, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar como grupo de afetividade e companheirismo, abandonando a necessidade de esforço biológico para a paternidade, sendo essa postura que as legislações posteriores viriam a consagrar (Villela, 1979).

Adotando a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) prescreveu em diversos dispositivos uma radical mudança no paradigma do direito de família brasileiro. Através do artigo 226 da CF/88 consolidou-se a família como base estrutural da organização da sociedade com o devido amparo judicial do Estado, englobando direitos e responsabilidades (Brasil, 1988). No mais, o conteúdo do texto constitucional abriu caminho para o reconhecimento de novas formas de família, como a união estável e a monoparental. 

Nesse sentido, a filiação diz respeito do reconhecimento dos filhos pelos pais como tal, representando o vínculo tanto sanguíneo quanto afetivo que os une em uma instituição familiar. A CF/88 encerrou a discriminação na filiação no direito brasileiro, reconhecendo a igualdade entre filhos biológicos e filhos adotivos dentro de uma família:

O texto constitucional em vigor habilita-se a consagrar o princípio da isonomia entre os filhos, ao pretender estabelecer um novo perfil na filiação, de completaigualdade entre todas as antigas classes sociais de perfilhação, trazendo a prole paraum único e idêntico degrau de tratamento, e ao tentar derrogar quaisquer disposiçõeslegais que ainda ousassem ordenar em sentido contrário para diferenciar adescendência dos pais. Qualquer movimento de distinção dos filhos representaria,como diz Luiz Edson Fachin, um passo na contramão do Estatuto, cuja gênese impõeum tratamento unitário aos filhos credores de proteção integral contra quaisquerdesignações discriminatórias (Madaleno, 2020, p. 885).

Posteriormente, o Código Civil de 2002 (CC) solidifica tal entendimento sobre a filiação através do artigo 1.596, determinando que “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (Brasil, 2002). Assim, a filiação originada no afeto e na solidariedade recebe a devida proteção jurídica.

Acerca do reconhecimento implícito da afetividade como um princípio na CF/88, Ricardo Calderón preceitua:

A partir da segunda metade do século XX, passou-se a disseminar um novo papel para as Constituições, que era descrito por intermédio de um chamado novo constitucionalismo. Com a percepção de que ela estava no vértice do ordenamento jurídico e era dotada de eficácia, sustentou-se paulatinamente a eficácia aos direitos fundamentais até mesmo nas relações interprivadas, o que passava a conferir guarida jurisdicional a tais direitos (que até então restavam praticamente desamparados, sendo, portanto, constantemente ofendidos e não realizados nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento).

Esse novo papel da Constituição levaria a uma nova leitura dos demais ordenamentos, com atenção especial para a prevalência dos valores e princípios constitucionais sobre as demais normas (Calderón, 2017, p.48).

A introdução do princípio da afetividade no ordenamento jurídico consubstanciou na base do Direito de Família contemporâneo, deixando para trás dispositivos ultrapassados e possibilitando o reconhecimento de diversas formas de família (Cunha, 2021). O princípio ganhou força no ordenamento jurídico a partir do momento que as pessoas optaram por se casar por amor e a família perdeu o seu status de instituição e adquiriu caráter formador, estruturador e de afeto.

A jurisprudência também desempenha um papel fundamental na consolidação desse princípio no direito de família brasileiro, conforme explicado por Ricardo Calderón, acompanhando a crescente aceitação doutrinária do tema:

Essa sólida construção jurisprudencial foi edificada durante vários anos, com contribuições de diversos juízes e tribunais, a ponto de ser possível afirmar que há jurisprudência consolidada – inclusive no âmbito do STJ – que respalde o reconhecimento jurídico da afetividade como princípio de Direito de Família [ainda que muitas vezes os tribunais não utilizem esta terminologia, mas com claro reconhecimento de que tratam de vínculos afetivos]. Os tribunais têm procurado se aproximar das relações fáticas que são travadas na sociedade contemporânea, o que, inevitavelmente, os têm levado ao encontro da afetividade que é imanente a tais relações.

O Supremo Tribunal Federal também tem acolhido expressamente a afetividade em seus julgados, o que indica a sua proeminência no acertamento de vários casos relevantes também naquele colegiado. Diversos julgados do STF, dotados de repercussão geral, fizeram remissão explícita à temática da afetividade na edificação de soluções familiares e sucessórias. Para citar apenas três deles, todos com decisões de relevância ímpar para a comunidade jurídica brasileira: o reconhecimento das uniões homoafetivas [ADPF 132, j. em 2011]; o acolhimento da multiparentalidade [RG 622, j. em 2016] e a equiparação do regime sucessório dos cônjuges e dos companheiros [RE 878694, j. em 2017] (Calderón, 2017, p. 99).

Cristiane Fariadestaca o crescente papel da afetividade no cenário jurídico brasileiro, ampliando a proteção da filiação e possibilitando o reconhecimento da paternidade socioafetiva, priorizando a realidade afetiva em vez do fator biológico, representando uma das maiores conquistas do direito de família contemporâneo (Faria, 2018).

Dessa forma, verifica-se que a afetividade se torna princípio e elemento constituidor da família brasileira a partir da CF/88, possibilitando o reconhecimento por meio de novas legislações e pelas jurisprudências de novas entidades familiares, assegurando a essas pessoas os seus direitos.

1.1 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Diante da busca da igualdade entre os filhos, a paternidade socioafetiva é entendida como vínculo afetivo construído de forma recíproca e contínua entre os pais e o filho, mediante convivência, mesmo inexistindo conexão biológica entre eles. Na definição de Rodrigo da Cunha: “Filiação socioafetiva é a filiação decorrente do afeto, ou seja, aquela que não resulta necessariamente do vínculo genético, mas principalmente de um forte vínculo afetivo. Pai é quem cria e não necessariamente quem procria (Cunha, 2021, p.636).” 

As características da filiação e parentesco fundados nos laços afetivos constituem a teoria doutrinária da “posse do estado de filho” (Dias, 2021), abarcando três requisitos para a sua configuração: 1) o tratamento que o filho recebe dos pais no tocante à sua criação e educação; 2) o uso do nome da família e; 3) sua apresentação perante a sociedade como parte da família.

Os elementos presentes para o reconhecimento relação da afetividade são justamente para verificar a verdade real do vínculo a fim do futuro reconhecimento. Valendo destacar, que ainda que a doutrina dispense que o filho utilize o nome do pai, o tratamento como filho é indispensável, por meio do amparo econômico, emocional, carinho, educação e a notoriedade da relação, atos que deverão ser contínuos e se perpetuar, edificando a relação de afeto entre os pais e o filho.

Deve-se levar em conta que nem sempre a paternidade biológica conterá também afeto, podendo ocorrer em muitos casos, relações que resultam em um fruto indesejado para os genitores, levando essa criança a outros lares, nos quais devem prevalecer o afeto do pai afetivo em decorrência do genitor que forneceu o material genético. 

Dessa forma, o direito brasileiro trouxe formas de realização do reconhecimento de filhos havidos fora do casamento, sendo de forma voluntária, declaratória, solene, pública e personalíssima, que poderá ser realizada por ambos os pais, pelo pai ou pela mãe, por meio de escritura pública ou de forma particular, por testamento ou mesmo por manifestação expressa diante do juiz (Fujita, 2011). É um ato irretratável, que configura em confissão da paternidade ou maternidade, contudo, poderá ser anulado, em hipóteses em que ocorra vício de vontade.

Embora a prova mais contundente da paternidade e consequentes futuros pedidos de alimentos sejam o exame de DNA, a jurisprudência brasileira admite a declaração de paternidade ou maternidade socioafetiva nas referidas ações sem a necessidade de legislação específica para tanto, conforme já decidido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SÓCIOAFETIVA PORT MORTEM. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. No processo onde se postula declaração de paternidade socioafetiva post mortem deve haver a participação de todos os herdeiros do falecido investigado. No caso dos autos, o falecido deixou sete filhos, mas a citação da sucessão ocorreu apenas na pessoa da inventariante. Logo, é de rigor a desconstituição da sentença para que seja regularizado o polo passivo da demanda.SENTENÇA DESCONSTITUÍDA EM MONOCRÁTICA.(ApelaçãoCível, Nº 70079936613, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em: 09-07-2019)(TJ-RS – AC: 70079936613 RS, Relator: Rui Portanova, Data de Julgamento:09/07/2019, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 15/07/2019)

Com a possibilidade desse reconhecimento, consolidando os direitos fundamentais da pessoa previstos na Constituição Federal e respeitando a dignidade da pessoa humana, constituiu a multiparentalidade, possibilitando a multiplicidade de registros, biológicos ou não, com um ou mais vínculos afetivos, que neste caso deverá ser submetido à revisão do Ministério Público e à decisão judicial.

Desta feita, Maria BereniceDias destaca a constitucionalidade da coexistência dos vínculos registrais, com a necessidade preservar os direitos fundamentais de todos, sendo direito da criança o assento da realidade de sua família, passando a constar em seu registro dois ou mais pais ou mães (Dias, 2021). Assim, os pais registrais assumem responsabilidades perante os filhos assumidos, independente da forma da família afetiva, participando da vida da criança, cumprindo com a obrigação alimentar e o direito sucessório, visando a verdade real.

A tese de Repercussão Geral nº 622 aprovada pelo STF trouxe também efeitos decorrentes além do reconhecimento da multiparentalidade, como pontua Ricardo Calderón:

O reconhecimento da multiparentalidade exige que essa nova filiação seja averbada no registro de nascimento do respectivo filho em adição à paternidade anterior. Isso porque a filiação produz diversos outros efeitos jurídicos, de modo que é essencial que essa relação de parentesco esteja formalizada, tanto para segurança jurídica das partes como para de terceiros.

Assim, deverão ser acrescidos no assento de nascimento do filho (e demais documentos correlatos) o nome do novo pai reconhecido (se for esse o caso), também com a adição dos respectivos novos avós. Essa providência deverá ser determinada na mesma decisão que reconhece a relação multiparental e, como visto, independe da vontade da parte (Calderón, 2017, p. 228).

A paternidade socioafetiva apresenta-se de várias formas, dentre elas destaca-se a adoção civil e a adoção de fato. A adoção civil é definida por Jorge Fujita como:

[…] o negócio jurídico pelo qual se promove, mediante sentença judicial constitutiva, o ingresso de uma pessoa, menor ou maior de idade, capaz ou incapaz, como filho na família do adotante, independentemente da existência entre elas de uma relação parental consanguínea ou afim, desfrutando o adotado de todos os direitos e deveres inerentes à filiação (Fujita, 2011, p. 74).

Dessa maneira, mediante decisão judicial após longo processo, o filho é encaminhado para sua nova família, que independente de ser uma adoção unilateral ou bilateral, será uma relação de afetividade, na qual deverá ser concedida à criança todas as suas necessidades básicas, bem como a inscrição dos pais em seu registro civil, conforme disposto no artigo 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 199). 

A adoção de fato, popularmente conhecida como “filho de criação” consiste naquela relação que dispensa vínculo registral, porém há os requisitos mencionados acima para a configuração da relação entre pai e filho afetivo, de modo que mesmo que o filho saiba que não é seu filho biológico, prevalece a relação de afeto, a qual é autorizadora do reconhecimento judicial do estado de filiação.

Nessa ordem, verifica-se o significado da paternidade vai além do fornecimento do material genético, mas principalmente pelo amparo e afeto presente na relação, primando pela verdade real. Contudo, é necessária cautela nesse avanço, de modo a coibir pleitos que visem enriquecimento ilícito, visando somente o patrimônio do pai ou do filho, devendo as relações afetivas serem devidamente tuteladas, abordando as especificidades de cada caso como deve ser, para dessa forma alcançar a igualdade da filiação necessária.

2 A POSSIBILIDADE DA DESCONSTITUIÇÃO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Esclarecido o conceito e as características da paternidade socioafetiva e seu reconhecimento jurídico, passa-se ao debate da problemática sobre a possibilidade de sua desconstituição. No ordenamento jurídico brasileiro é possível debater em juízo a desconstituição da parentalidade por meio da Ação Negatória de Paternidade, sendo direito personalíssimo do pai e tal ação imprescritível, podendo seus herdeiros prosseguirem com a ação, que será em face do filho ou de seus herdeiros. Dessa maneira, o pai deverá comprovar, para a procedência da ação, a inexistência de filiação biológica, a ausência de relação afetiva que configura paternidade socioafetiva.

O assunto encontra previsão legal nos seguintes dispositivos do CC:

Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.

Parágrafo único. Contestada a filiação, os herdeiros do impugnante têm direito de prosseguir na ação.

Art. 1.602. Não basta a confissão materna para excluir a paternidade.

Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil (Brasil, 2002, online, s.p.).

A comprovação da existência ou não de vínculo biológico se dá por meio do exame de DNA, sendo indispensável também a comprovação que não há vínculo afetivo entre o filho e o pai que configuram partes na lide. Sobre o tema, já decidiu o Tribunal de Justiça da Bahia:

RECURSO DE APELAÇÃO. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. AÇÃO JULGANDO PROCEDENTE A PRETENSÃO AUTORAL, COM FUNDAMENTO EM EXAME DE VÍNCULO GENÉTICO FAMILIAR POR ANÁLISE DE DNA. REFORMA DA SENTENÇA.

DESNECESSIDADE. […] A Apelante objetiva, através do presente recurso, que lhe seja facultada a realização de contraprova do exame realizado às fls. 16/20, requerendo, portanto, que os autos retornem ao Juízo de origem “para realização de um novo exame de DNA, devendo-se no caso de uma conclusão positiva, ser reconhecida a paternidade do Apelado com relação a menor: C.D.C.S.”. III – A irresignação da Apelante não merece prosperar. Isso porque, na esteira do entendimento consolidado no âmbito dos Tribunais de Justiça pátrios, “Em ação de investigação de paternidade, o exame de DNA apresenta-se como prova científica precisa e segura, devendo ser acolhida a sua conclusão, em que se garante o resultado da exclusão da paternidade com 99,999% de certeza”. IV – Na hipótese vertente, constata-se claramente da análise do Exame de Vínculo Genético Familiar por análise de DNA, realizado seguindo os protocolos padronizados pelo FBI [Federal Bureau of Investigation – Estados Unidos] padrões [fls. 16/20], que concluiu-se que “diante das evidências [ausência dos alelos paternos do suposto pai no filho nos locos acima analisados], que Andre Antonio da Silva NÃO É PAI BIOLÓGICO de C. d. C. S.”.  (TJ-BA – APL: 00003402420098050127, Relator: Carmem Lucia Santos Pinheiro, Quinta Câmara Cível, Data de Publicação: 04/05/2016).

Na decisão, o recurso proposto ao Tribunal de Justiça da Bahia trata-se de apelação em face da decisão de primeira instância que julgou procedente a pretensão do pai na ação negatória de paternidade com base em exame de DNA. Em sede recursal, o filho requereu novo exame de DNA para ao fim concluir a respeito da existência ou não do vínculo biológica, no entanto, a sua pretensão não prosperou, tendo o exame inicial já tendo apresentado resultado negativo e não sendo demonstrado qualquer erro ou omissão na perícia produzida, mantendo-se assim a sentença recorrida.

Caio Mário da Silva Pereira (2020) destaca os efeitos da sentença proferida nas ações de estado de filiação, sendo ele erga omnes, fazendo coisa julgada entre as partes, não prejudicando terceiros, conforme é disposto no artigo 506 do Código de Processo Civil. Também menciona a impossibilidade da impugnação nos casos que o genitor, no momento do casamento, já conhecia a gravidez e teve conhecimento do parto sem oposição do registro do filho como seu.

No que concerne à adoção, esta não poderá ser revogada, conforme expresso no artigo 39, parágrafo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990): “A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa (…)”. Sendo irrevogável a adoção, não poderá o pai pleitear a anulação do registro ou a negatória de paternidade por qualquer fundamento, o que é comumente pleiteado na separação dos casais.

Sobre o tema, Gabriela Borges (2018) reflete sobre a importância integral fornecida pelo Estado às crianças e aos adolescentes, bem como a obrigação de prevalecer pelo seu melhor interesse, o que requer um ambiente estável em sua realidade, não merecendo provimento demandas frívolas pleiteando a desconstituição que violarão a dignidade da pessoa humana da criança.

Contudo, em contraposição a esse posicionamento, há decisões levando em consideração a ausência dos elementos constituidores da relação de afeto, configurando a inexistência da paternidade afetiva e consequentemente a procedência da sua desconstituição, devendo esses fatos serem comprovados na ação negatória ou anulatória. Nessa linha, há decisão judicial sobre uma ação negatória de paternidade em razão de posterior descoberta que inexistia o vínculo biológico com os filhos:

Civil. Processual civil. Ação negatória de paternidade cumulada com exoneração de alimentos. Erro substancial no registro civil configurado. Filhos concebidos na constância de vínculo conjugal com posterior descoberta, por exame de DNA, da ausência de vínculo biológico em relação aos filhos. Presunção de erro quando ausente dúvida séria ou razoável acerca do desconhecimento da inexistência de vínculo genético. Erro substancial no registro civil que não exclui a necessidade de investigação dos vínculos socioafetivos. Longa convivência entre pais e filhos que deve ser sopesada com a superveniente ausência de socioafetiva por longo período, em decorrência do rompimento abrupto e definitivo da relação paterno-filial. Paternidade socioafetiva ficcional de parte a parte. Impossibilidade. Necessidade de aderência das relações jurídicas às relações humanas e sociais. (REsp 1741849 / SP(2018/0115747-6), rel. Min. NANCY ANDRIGHI – TERCEIRA TURMA, julg.20/10/2020, publ. 26/10/2020).

No caso exposto, o genitor foi induzido a erro e registrou filhos que achava serem seus, no entanto, anos depois ao constatar a inexistência de vínculo biológico houve um rompimento do vínculo deste com as crianças por mais de 6 anos, não havendo qualquer elemento caracterizador da paternidade socioafetiva. Assim, a paternidade foi desconstituída com a decisão da ministra que primou pela verdade real, sendo que a manutenção da paternidade registral sem qualquer relação de afeto seria apenas ficcional.

Borges (2018) destaca a necessidade que o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente prevaleça nesses casos excepcionais, sendo que o melhor caminho que o magistrado encontra é a desconstituição da paternidade como uma forma de proteger o jovem de sofrer com o abandono e represálias. Da mesma forma, a ruptura de um vínculo adquirido ao longo do tempo deve ser evitada, pois poderá refletir na formação da criança e na sua socialização.

Discute-se a possibilidade da responsabilização civil do pai que pleiteia a desconstituição da paternidade, para tanto, há de se destacar a influência das normas de responsabilidade civil no direito de família, que possuem como conceitos estruturais o ato ilícito e o abuso de direito, diante do abalo psicológico causado. Sobre o assunto, Rolf Madaleno pontua:

Submeter um filho socioafetivo, que não pediu para ser registrado e nem pediu para ser tratado como filho natural, daquela união familiar, com efeito, haverá de gerar para o rebento rejeitado um sofrimento muito grande, pois enfrenta uma ação de repúdio andando na contramão da sua história pessoal e sociofamiliar, unicamente porque o seu pai quer revogar o falso registro por ele conscientemente promovido. 
A correta improcedência da ação negatória de paternidade e a tortura psicológica sofrida pelo filho por conta do mero arrependimento da adoção registral permitem enveredar para o terreno da reparação civil pelo dano moral causado pelo abuso do direito do pai do falso registro.
Senão porque adotou e assim causou o falso fato que quer desconstituir, então por pretender desperfilhar a filiação, sem se importar com a dignidade e a identidade do filho por ele conscientemente adotado, pretendendo subtrair do filho afetivo o patronímico, sua história familiar e seu passado, como se depois de adulto e com a personalidade e identidade formadas, pudesse voltar a ser ninguém, ou simplesmente apenas filho de sua mãe (Madaleno, 2020, p. 663-664).

Desse modo, embora a doutrina e jurisprudência seguem avançando no que concerne ao reconhecimento da paternidade, ainda há longo caminho a ser trilhado quanto aos seus efeitos jurídicos, bem como as decorrências de sua eventual desconstituição. Esta que não poderá ocorrer ante a presença do afeto entre o pai afetivo e o filho, sendo elemento basilar na constituição da família, ocorre que, demandas são ingressadas pelos pais primando por interesses pessoais em decorrência do direito adquirido do filho.

Portanto, a presente questão, bem como a paternidade socioafetiva em si e seus efeitos, deverão ser devidamente discutidas e carecem de devida regulamentação por nossa doutrina, jurisprudência e legislação pátria. De modo a evitar a perpetuação de injustiças a filhos que tem direito de receber o afeto e reconhecimento de seu pai, porém, em razão de lacunas legislativas são privados de seu direito fundamental da família.

CONCLUSÃO

O presente artigo teve como fim a análise do instituto da paternidade socioafetiva, seu conceito, elementos constituidores, efeitos, suas diversas formas e complexidades, bem como a possibilidade ou não de sua desconstituição e as consequências advindas desta.

Para tanto, apresentou-se a abordagem legislativa da filiação no direito brasileiro, desde o seu tratamento discriminatório até a atual possibilidade de equiparação de direitos e obrigações, bem como a possibilidade de reconhecimento voluntário ou judicial da filiação ou de sua desconstituição. Sendo verificado que o atual modelo de família vem buscado a igualdade entre os participantes na busca da felicidade, primando pela igualdade e pelo melhor interesse da criança.

Diante disso, passou à análise do instituto da paternidade socioafetiva, sua relação baseada no afeto, convivência contínua e pública, ainda que inexistindo conexão biológica entre estes. Decorrendo desta os mesmos direitos e obrigações simultâneos, preservando o melhor interesse da criança, levando em consideração a “posse do estado de filho”.

Finalmente, investigou-se as formas de paternidade socioafetiva e discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a desbiologização da paternidade, ou seja, aquele que o critério biológico passa a não ser mais suficiente para determinação da parentalidade, devendo ser auferida a verdade afetiva. Dessa maneira, o Supremo Tribunal Federal consolidou entendimento no sentido de admitir a multiparentalidade, superando o conflito entre a paternidade socioafetiva e biológica.

Com a constante evolução da família, o direito deve acompanhar os avanços regulamentando as novas formas de família existentes, contudo é necessária cautela na análise individualizada por parte do Poder Judiciário, de modo a coibir pleitos com finalidades ilícitas e frívolas, protegendo as partes envolvidas, de modo a buscar a igualdade e melhor interesse da criança almejado.

No contexto abordado, a discussão centrou-se na possibilidade de desconstituição da paternidade socioafetiva, exigindo uma distinção inicial entre as ações de negatória de paternidade e anulação de registro. Concluiu-se que a paternidade socioafetiva é considerada irrevogável quando fundamentada em elementos que configuram uma relação afetiva, sob pena de gerar consequências irreparáveis para a vida da criança.

No entanto, mediante análise envolvendo perspectivas doutrinárias, legislativas e estudos de casos de jurisprudências, foram encontradas decisões, as quais foram admitidas a desconstituição da paternidade pois houve vício de consentimento no momento do registro e ausente a relação duradoura de afeto. Destacando que o julgador deve analisar o caso de pormenorizada, aplicando os princípios constitucionais afetos ao direito de família, de modo a evitar prejuízos, com vista a verdade real do caso concreto.

Em caso de desconstituição, sendo caso que pode gerar consequências graves para a vida do filho, foi analisada a possibilidade de responsabilização civil desse pai pela prática de possível ato ilícito. Nesse diapasão, verifica-se que o dano poderá ser demonstrado em eventual ação indenizatória pleiteada pelo filho, conforme apontado pela doutrina e já decidido em decisões judiciais, sendo presentes os elementos caracterizadores da responsabilidade civil.

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1741849 / SP (2018/0115747-6). Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequenci al=117039392&num_registro=201801157476&data=20201026&tipo=5&formato=PDF. Acesso em 08 abr. 2024

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Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4447863/mod_resource/content/1/VILLELA%2C%2 0Jo%C3%A3o%20Baptista.%20Desbiologiza%C3%A7%C3%A3o%20da%20Paternidade.pd f. Acesso em 08 abr. 2024


1Bacharel em Direito pela Universidade de Franca, Advogado Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Damásio e Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG – Subseção de Passos.

2Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (2023). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (2016). Professor designado de Filosofia e Sociologia pela Secretaria da Educação do Estado de Minas Gerais.

3Bacharel em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais, Advogada, pós-graduada em Direito e Processo Civil, membra da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG – Subseção Passos.

4Doutora em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente pela Universidade de Araraquara. Mestre em Desenvolvimento Regional pelo Centro Universitário de Franca (Uni- Facef); Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UNIDERP, Especialista em Docência do Ensino Superior pela Universidade Gama Filho.