PILARES DA GESTÃO CLÍNICA: ALGUMAS IMPLICAÇÕES

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.11093878


Sandrielli Leticia Zambrano Marcondes
Rosa Maria Braga Lopes de Moura


RESUMO 

A gestão clínica tem como centralidade a produção de uma atenção integral à saúde, com qualidade e segurança, orientada às necessidades de saúde por meio da transformação de práticas de atenção e gestão. A partir dessa definição foram identificados princípios que caracterizam uma abordagem problematizadora e extrapolam os marcos iniciais atribuídos à expressão “gestão da clínica”. Desse modo, o presente estudo objetivou propor princípios  de gestão clínica voltada à transformação da atenção à saúde. Para tanto foi realizada uma revisão na literatura nas bases de dados PubMed e Scielo com os subsequentes descritores: Gestão clínica, Assistência à saúde, Gestão em saúde.

Palavras-chave: Assistência, Clinica, Gestão, Saúde.

INTRODUÇÃO

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) recomenda o fortalecimento da atenção primária à saúde (APS) na função de coordenadora entre níveis e ordenadora das Redes de Atenção à Saúde (RAS), para melhorar a integração assistencial e a qualidade dos cuidados ofertados.

As organizações de saúde se comprometem em melhorar os seus serviços e manter elevados padrões de cuidados, criando um ambiente propício à excelência clínica (SCALLY, 1998).

Reid et al. (2002) definem a coordenação da gestão clínica como a prestação de cuidados sequenciais e complementares ao usuário, dentro de um plano de cuidados compartilhado pelos profissionais dos diferentes serviços e níveis de atenção, sendo composta por três dimensões: coerência da atenção, acompanhamento adequado do paciente e acessibilidade entre níveis assistenciais. A coerência da atenção implica na existência de aproximações e objetivos de tratamento comuns entre diferentes níveis de atenção.

Os sete pilares para a governança clínica: efetividade clínica, auditoria clínica, gerenciamento de risco, uso da informação, educação e treinamento, gerenciamento de pessoas e envolvimento do paciente/público. Os conceitos chave são: qualidade e efetividade, objetivos comuns de todos os agentes envolvidos, descentralização progressiva, autonomia e corresponsabilização na obtenção de resultados (GOMES, 2005; TEMES, 2000).

Mendes (2001), utilizou elementos da governança clínica e da atenção gerenciada, definindo-a como um conjunto de tecnologias de microgestão. Em publicação posterior, Mendes (2011) propõe “uma atenção à saúde de qualidade; centrada nas pessoas; efetiva; estruturada com base em evidências científicas; segura, que não cause danos aos pacientes e profissionais; eficiente, provida com os custos ótimos; oportuna, prestada no tempo certo; equitativa, de modo a reduzir as desigualdades injustas; e ofertada de forma humanizada”. Assim, a gestão da clínica tem como premissa a produção de uma atenção integral à saúde, com qualidade, segurança e gestão voltada à transformação de práticas.

DISCUSSÃO

De acordo com Mendes (2001) na caracterização de sistemas fragmentados e de redes de atenção à saúde, os sistemas fragmentados inviabilizam cinco dos sete princípios da gestão da clínica. No primeiro eixo, o deslocamento da doença para as necessidades de saúde de sujeitos ou grupos sociais reorienta a atenção à saúde. Nesse sentido, a clínica não se reduz apenas ao diagnóstico e tratamento da doença como entidade patológica, com seus aspectos etiológicos e nosológicos.

 Canguilhem (2009), nomeou a atenção para o desafio de não se considerar a existência do patológico em si e sim apreciá-lo numa relação com o indivíduo e a sociedade.

Cecílio (2009), observa que, quando se toma como referência as necessidades de saúde, as equipes de profissionais e os níveis de gerência conseguem alcançar “um bom dispositivo para qualificar e humanizar os serviços de saúde”.

Para que a gestão da clínica consiga operar na lógica das necessidades de saúde não pode restringir-se à dimensão biológica (CAMPOS, 2007).

 Segundo Giovanella (2009) “nenhuma instância isolada dos sistemas de saúde possui competência ou a totalidade dos recursos necessários para resolver as necessidades de saúde de uma população”.

Paula (2005) apresenta uma comparação entre o gerencialismo e a gestão social que, de certa forma, relaciona-se a esse deslocamento. Para a autora, o primeiro modelo se alinha à concepção funcionalista, sem levar em conta processos políticos. Segundo ela, há limites e pontos positivos nos dois modelos. Sem reduzir o gerencialismo ao fato de se ater à tarefa pela tarefa, entendemos que os princípios validados se vinculam a uma gestão democrática e participativa.

Para Campos (2010), a comparação entre o gerencialismo e a gestão social são a combinação de autonomia e responsabilidade, com criatividade e compromisso sanitário.

Por último, a compreensão de que a aprendizagem ocorre como resultado de processos de interação social, nos quais saberes e práticas são construídos na relação entre sujeito que aprende e objetos a serem aprendidos (VYGOTSKY, 1998).

Essa concepção desloca os processos de relações hierarquizadas para relações dialógicas entre sujeitos que trocam conhecimentos, valores, desejos e interesses e, por isso, transformam práticas. Além disso, há aspectos transversais dos princípios em questão. Um deles refere-se ao modo de lidar e considerar o outro nas relações no trabalho em saúde. Quando as pessoas são consideradas legítimas na sua singularidade (MATURANA,  2005).

No modelo de atenção, essa orientação amplia o foco dado pela perspectiva do profissional e do saber biomédico, incluindo as dimensões subjetiva e social da produção de saúde, na explicação dos fenômenos e na pactuação de intervenções, contemplando interesses e desejos das pessoas sob cuidado.

 Nos modelos de gestão e de educação, a construção de protagonismo e corresponsabilização dos sujeitos envolvidos requer ampliação da consciência crítica e reflexiva e o compartilhamento de poder.

Polanyi (2000) e Hobsbaum (1995) apontam a produção de riqueza material como sendo o determinante último das transformações sociais, reconhecem a influência de componentes políticos, culturais e educacionais nesses processos.

 Segundo Piketty (2014), a difusão de conhecimento e competência é um dos mais expressivos mecanismos de convergência para a melhoria da distribuição de riquezas e diminuição de desigualdades. Nesse sentido, a educação possibilita a reflexão crítica sobre o modo como a sociedade se organiza, potencializando essa força de convergência para processos de transformação.

Uma organização, onde o poder é compartilhado, pode gerar movimentos ascendentes e descendentes tanto na gestão como na educação permanente dos envolvidos, bem como promover a construção de uma cultura de avaliação, visando reorientar as práticas em saúde, por meio da utilização de erros e acertos como subsídios para a melhoria de desempenho (MORGAN, 2012).

Conforme Bauman (2001), as relações entre os indivíduos e instituições tendem a ser menos frequentes e duradoras, uma vez que se inserem numa época de fluidez, volatilidade, incertezas e inseguranças que veio substituir uma época anterior marcada por referenciais mais sólidos.

Os princípios da gestão clínica, traduzem uma abordagem problematizadora das práticas de saúde, cujo vetor se encontra na criticidade e na dialogia para a produção de intervenções transformadoras.

 As transformações nos eixos estruturantes devem ser construídas pela articulação e compartilhamento do poder de decisão entre gestores, profissionais e usuários, no sentido de uma atenção integral, de qualidade e com segurança, orientada às necessidades de saúde. Para tanto, é importante a simultaneidade entre supostas certezas e incertezas, por meio de uma consciência crítica e aberta às mudanças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As organizações de saúde prestam serviços a partir da tradução do conhecimento de seus profissionais em decisões clínicas, o grau de autonomia e de controle desses profissionais no processo decisório é um dos elementos mais sensíveis, tanto na governança clínica como na atenção gerenciada. Assim, os princípios da gestão da clínica expressam conexões que lançam uma nova luz sobre a gestão e atenção à saúde em sistemas integrados.

Por fim, conclui-se que os princípios da gestão da clínica expressam conexões que lançam uma nova luz sobre a gestão, atenção à saúde e educação em sistemas integrados e demandam uma consciência crítica em relação à simultaneidade de permanências e mudanças de práticas. Nesse sentido, gestores e profissionais de saúde deveriam construir objetivos comuns, para os quais compartilham conhecimento e esforço profissional e se implicam igualmente.

REFERÊNCIAS

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