APONTAMENTOS CLÍNICO-EPIDEMIOLÓGICOS SOBRE ALERGIA ÀS PROTEÍNAS DO LEITE: UMA REVISÃO INTEGRATIVA

Clinical-Epidemiological Insights on Milk Protein Allergies: An Integrative Review

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11078173


Bruno Pereira Stelet1; Anne Gabrielle de Carvalho Nicolau Góes2; Arthur Dutra do Bomfim2; Camila Barbosa Rodrigues2; Jamille Goudard da Silveira Braide2; Judi Carla Rocha2; Maria Clara Forechi Crispim2; Nadya Veras Jarosczynski2; Thiago Figueiredo de Castro3


Apontamentos clínico-epidemiológicos sobre Alergia às Proteínas do Leite: uma revisão integrativa

A Alergia às Proteínas do Leite de Vaca é uma condição que afeta até 7,5% das crianças no primeiro ano de vida. Manifesta-se de forma imunológica, mediada ou não por IgE, com sintomas variados, incluindo gastrointestinais e cutâneos. A resolução espontânea é possível, mas a restrição dietética e exposição controlada podem influenciar nos desfechos. Este artigo aborda epidemiologia, patogênese e manifestações clínicas dessa condição. A revisão de literatura foi realizada em bases de dados de acesso aberto, resultando em 8 (oito) artigos após triagem manual. A alergia às proteínas do leite de vaca é relativamente predominante em crianças, especialmente em lactentes, apresentando risco de anafilaxia nos casos mais graves. A prevalência varia entre regiões, diminui com a idade e tem resolução espontânea mais rápida em casos não mediados por IgE. A introdução precoce de leite de vaca pode influenciar na prevenção, enquanto a patogênese envolve diversas proteínas do leite. As manifestações clínicas incluem sintomas imediatos e tardios, desde cutâneos a respiratórios e gastrointestinais, complicando o diagnóstico e manejo individualizado.

Palavras-chave: Alergia às Proteínas de Leite de Vaca; Hipersensibilidade a Leite; Alergia Alimentar

Clinical-Epidemiological Insights on Milk Protein Allergies: An Integrative Review

Milk Protein Allergy affects up to 7.5% of infants in their first year of life. It manifests immunologically, mediated or not by IgE, with varied symptoms, including gastrointestinal and cutaneous. Spontaneous resolution is possible, but dietary restriction and controlled exposure may influence outcomes. This article addresses the epidemiology, pathogenesis, and clinical manifestations of this condition. Literature review was conducted on open-access databases, resulting in eight articles after manual screening. Milk protein allergy is relatively predominant in children, especially infants, with a risk of anaphylaxis in severe cases. Prevalence varies between regions, decreases with age, and resolves more rapidly in cases not mediated by IgE. Early introduction of cow’s milk may influence prevention, while pathogenesis involves various milk proteins. Clinical manifestations include immediate and delayed symptoms, from cutaneous to respiratory and gastrointestinal, complicating individualized diagnosis and management.

Key Words: Cow’s Milk Protein Allergy;  Milk Hypersensitivity; Food Hypersensitivity

1. Introdução 

A Alergia às Proteínas do Leite de Vaca (APLV) é uma condição relativamente comum na prática clínica de profissionais que assistem crianças, sendo sua incidência estimada entre 2% e 7,5% no primeiro ano de vida1. Os relatos na literatura médica têm ressaltado essa condição tanto em bebês expostos a fórmulas infantis quanto naqueles em aleitamento materno exclusivo, apesar de apenas um pequeno número de bebês (0,5%) reage alergicamente às proteínas do leite de vaca excretado no leite materno2.

Nesse sentido, compreender a história natural dessa alergia alimentar na infância é essencial no manejo de pacientes com esses distúrbios. A história natural de uma alergia alimentar inclui informações sobre como se desenvolve essa alergia, a probabilidade de que ela seja superada e sua duração habitual.

A APLV pode se manifestar imunologicamente de duas formas principais: mediada por Imunoglobulina E (IgE) e não mediada por IgE, cada uma com manifestações clínicas, avaliações diagnósticas e prognósticos diferentes. Os sistemas mais comumente afetados incluem o gastrointestinal, a pele e o trato respiratório. O tratamento primário envolve a eliminação da proteína do leite de vaca (PLV) da dieta da criança ou da mãe, em caso de amamentação exclusiva​1. Dada a dificuldade em manter tal restrição alimentar, há fórmulas especiais que auxiliam as famílias na segurança alimentar destas crianças tentando garantir seu adequado crescimento e desenvolvimento. Além disso, há controvérsias na literatura médica sobre o quanto uma restrição alimentar rigorosa pode aumentar a chance de superar a alergia ou acelerar sua resolução. Há pelo menos um estudo2 que revela que nem a evitação rigorosa nem a ingestão acidental de alérgenos alimentares estão associadas ao desenvolvimento de tolerância. Além disso, estudos subsequentes sugeriram que a exposição regular ao leite de vaca extensamente hidrolisado em crianças que toleraram formas mais processadas desses alérgenos pode encurtar o tempo até a resolução da alergia3.

A APLV é um componente do grupo de alergias alimentares (AA) mais comum entre crianças de até 5 anos de idade4 com uma vasta apresentação de sintomas clínicos devido ao espectro de respostas imunológicas contra PLV. Em agosto de 2012, o Ministério da Saúde encaminhou questionário para 178 municípios brasileiros, dos quais somente 34 responderam, afirmando possuir serviços/programas de atenção nutricional estruturados para acompanhamento de crianças com APLV. Nesse inquérito foi identificada média de acompanhamento de 0,4% (0,2% a 0,7%) de crianças com APLV nesses serviços pelo Sistema Único de Saúde (SUS)5. Uma pesquisa realizada por gastroenterologistas pediátricos indicou uma incidência de APLV de 2,2% e a prevalência de 5,4% em crianças acompanhadas em serviço especializado6

Dentre os diversos componentes do leite de vaca, a Lactoalbumina (ALA), a Beta-lactoglobulina (BLG), a Lactoferrina Bovina e a Albumina Sérica Bovina (BSA) são os principais ativos que geram respostas alérgicas que podem ser classificadas em três categorias: mediada por IgE, não mediada por IgE e mista7

As manifestações clínicas da APLV podem variar amplamente entre as crianças afetadas, dependendo se a reação é mediada por IgE ou não. As reações mediadas por IgE geralmente ocorrem rapidamente após a ingestão de leite de vaca, às vezes em minutos, e podem incluir sintomas como urticária, angioedema, vômito, diarreia, respiração ofegante e, em casos graves, anafilaxia1. As reações não mediadas por IgE tendem a ser tardias, ocorrendo várias horas a dias após o consumo de leite, além de envolver sintomas gastrointestinais mais diversos, incluindo vômitos, diarréia, cólicas e o desenvolvimento de condições como proctocolite, enteropatia e distúrbios gastrointestinais eosinofílicos 8. Grande parte dos relatos clínicos de APLV pode ser enquadrada como não mediada por IgE.

A resolução espontânea da APLV é variável, dependendo do tipo de alergia (mediada por IgE ou não mediada por IgE). APLV não mediado por IgE tende a se resolver espontaneamente com um ano de idade, enquanto algumas síndromes de enterocolite necessitam de um teste de provocação oral mais cuidadoso e supervisionado até a idade de dois a três anos. 

Este artigo objetiva atualizar a compreensão sobre epidemiologia, prevenção, patogênese e manifestações clínicas da APLV, em crianças de até 2 anos, com vistas à atualização baseada em evidências para construir um conjunto de apontamentos clínico-epidemiológicos.  

2. Metodologia 

Trata-se de uma revisão de literatura, utilizando os descritores MESH e filtros relacionados na tabela 1, nas bases de dados PuBMED, Scielo, e BVS incluídos neste o Medline, Lilacs e Cochrane. 

TABELA 1 – Método de pesquisa nas bases de dados. 

Descritores(cow milk protein allergy) AND (Anaphylaxis); (cow milk protein allergy) AND (Child); (cow milk protein allergy) AND (infant)(APLV) AND (Criança); (Alergia a proteina do leite) AND (Criança); Alergia a proteína do leite de vaca AND anafilaxia; Alergia a proteína do leite de vaca AND criança. 
FiltrosFree full text; Full text; Clinical Trial; Meta-Analysis; Randomized Controlled Trial; Review. Todas as áreas temáticas. Entre 2018 e 2023Português, inglês e espanhol, entre os anos de 2018 e 2023. Tipos de estudo: diagnóstico, de etiologia, prognóstico, Fatores de risco, observacional, Guia de prática Clínica, Ensaio Clínico Controlado
nº de resultados15+105+952142

Fonte: Realizado pelos autores. 

A busca inicial retornou 341 artigos, os quais após a remoção das duplicatas resultaram em 238 artigos por meio da plataforma Zotero®. Após a leitura dos títulos, 153 artigos foram descartados. Notou-se então que o software permitiu artigos anteriores à 2018, sendo portanto, triados manualmente, resultando em 30 artigos, dos quais, 8 foram selecionados após a leitura integral dos textos.

Ressalta-se ainda que foram retirados: relatos e séries de casos; casos de anafilaxia não relacionado à APLV; estudos em animais e in vitro; tratamentos utilizando probióticos para a modificação da microbiota intestinal; e alergias alimentares não especificadas e que não tratassem exclusivamente da APLV. Ademais, foram excluídos dos resultados estudos que não tratassem dos temas circunscritos a esta revisão, cujo enfoque está na epidemiologia e fisiopatologia da condição e suas manifestações clínicas.

Este artigo constitui como resultado parcial da Pesquisa ‘Acesso ao Programa de Terapia Nutricional Enteral Domiciliar no Distrito Federal: Construindo Itinerários Terapêuticos para Alergias às Proteínas do Leite de Vaca’, estudo contemplado pelo Edital ESCS/2023 no. 19 do  Programa de Fomento à Pesquisa em Saúde da Escola Superior de Ciências da Saúde – ESCS, financiado com recursos da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde – FEPECS.

3. Resultados

TABELA 2 – Resumo dos artigos avaliados

Autor, ano e localTipo de estudoObjetivosResultadosConclusões
Martín et al, 2022, Espanha9Revisão sistemáticaOferecer uma recomendação quanto ao uso de FEH na primeira semana de vida para prevenção de APLVRedução absoluta do risco de dessensibilização em recém-nascidos que não receberam FI nos 3 primeiros dias de vida, além da associação entre a ingesta de FEH e o desenvolvimento de asma persistente. Apresentando diferença estatística na incidência de APLV entre bebês que receberam FI mas não entre FEH e amamentados.Aponta-se que há benefícios em evitar a oferta de PLV em crianças com risco de atopia.Porém, não foi reconhecido que sua exclusão na primeira semana de vida reduz a incidência de APLV.10
ULFMAN et al., 2022,  Holanda 10Revisão narrativaDiscutir o impacto da introdução precoce de PLV e FEH com o desenvolvimento de tolerância ou APLV.Aumento do risco de APLV se consumo do leite de vaca nos primeiros 3 dias de vida, na descontinuação precoce de proteínas do leite de vaca, ou quando a amamentação é menor que 1 ou entre 4-6 meses, a exposição precoce às PLV está associada a maior dessensibilização e evidenciando menor incidência de APLV quando iniciado o uso de fórmulas com PLV antes de 14 dias de vida.Caso a amamentação não seja possível ou suficiente, devem ser usadas as FEH ou fórmulas com aminoácidos para complementação.A introdução precoce do leite de vaca em pequenas quantidades e sem interrupções pode reduzir o risco de APLV.
FRANCO et al., 2022. Brasileira, Suíça11 Revisão do escopo.Fornecer uma avaliação crítica do conhecimentosobre o conteúdo de antígenos do leite de vaca no leite humano.A presença de alérgenos do leite de vaca no leite humano está bem documentada, porém as quantidades detectadas não parecem ser suficientes para desencadear uma reação alérgica em crianças susceptíveis. Além disso, a presença de moléculas potencialmente alergênicas é maior no leite de mães com tendência alérgica, não podendo relacionar a sensibilidade ou tolerância.São necessários mais estudos que relacionem os alérgenos do leite de vaca no leite materno com o estado alérgico materno, a fase da lactação, o tempo de amostragem e o impacto da eliminação de alérgenos no leite humano no risco de alergia infantil, utilizando técnicas confirmatórias.
MEHAUDY et al., 2022. Argentina12Revisão do escopo.Descrever as informaçõesatualmente disponíveis sobre os mecanismosimunológicos envolvidos na APLV, o papel damicrobiota e as perspectivas futuras de tratamento.A imunoterapia específica para alérgenos alimentares (AIT) tem potencial para equilibrar a resposta imunológica; entretanto, apresenta algumas desvantagens relacionadas aos seus efeitos adversos e à sua eficácia a longo prazo.As células epiteliais constituem a primeira defesa de barreira. Caso ocorra um defeito na barreira epitelial intestinal, há promoção do contato com o antígeno e produção de citocinas pró-inflamatórias.Na presença de alteração funcional, ocorre sensibilização alérgica nas células epiteliais tanto da mucosa intestinal quanto da pele. Uma menor diversidade microbiana foi descrita em crianças com APLV, o que pode levar a um desequilíbrio da microbiota.
Pérez-Codesido, et al ,2023, Espanha.13 Revisão SistemáticaAvaliar a frequência de anafilaxia fatal e recorrente induzida pelo leite da vaca.Foram avaliadas a incidência e prevalência de anafilaxia recorrente e da anafilaxia fatal devido ao leite de vaca. A taxa de recorrência da anafilaxia foi de aproximadamente um quarto dos pacientes com anafilaxia devido ao leite de vaca, enquanto as mortes por anafilaxia causada pelo leite de vaca foram raras.A anafilaxia recorrente e a anafilaxia fatal devido a APLV são consistentes com os números relatados pelos estudos gerais sobre recorrência e mortes por anafilaxia alimentar. Contudo, o artigo traz a relevância de estar vigilante para estudos futuros.
CONNOR, et al.2022, Austrália. 14Revisão narrativaOferecer aos  médicos um panorama geral esclarecido e crítica da constipação associada à alergia alimentar, para melhor abordagem diagnóstica e manejo clínico.A constipação também é um distúrbio gastrointestinal presente em crianças com ALV. As diretrizes atuais para constipação recomendam educação, modificações de comportamento, atividade física adequada, ingestão normal de fibras e líquidos para a idade, progredindo, se necessário, para tratamentos farmacológicos.Apesar do debate contínuo na comunidade de gastroenterologia pediátrica, a constipação é listada  também como um sintoma gastrointestinal “comum” da ALV em diretrizes australianas. As principais diretrizes europeias e internacionais de alergia e gastrointestinais pediátricas exprimem a constipação como uma possível manifestação alérgica.
HERNANDES et al., 2022, Brasil.8.Estudo observacional transversal retrospectivoDescrever manifestações de anafilaxia em lactentes com a APLV no primeiro ano de vida, caracterizando a população estudada e comparando pacientes com e sem anafilaxia.Dos 120 prontuários de pacientes analisados que apresentaram sintomas de alergia à proteína do leite de vaca antes de completar um ano de vida, 70% preencheram os critérios para anafilaxia. A maioria dos pacientes apresentou manifestações cutâneas (85%), seguidas por sintomas gastrointestinais (48,3%), respiratórios (31,6%)e cardiovasculares/sistêmicos (10,8%).A anafilaxia em lactentes com menos de um ano de idade é um evento clínico significativo, particularmente devido ao aumento da prevalência de alergias alimentares, com o leite de vaca sendo o alimento mais comum associado. Apesar de as manifestações clínicas serem similares às observadas em faixas etárias maiores, há uma alta taxa de recorrência de episódios e um subtratamento notável.
MUNBLIT et al, 2020 15, Inglaterra.Revisão SistemáticaCompreender se as recomendações das diretrizes a respeito da alergia ao leite de vaca podem promover o sobrediagnóstico ou prejudicar a amamentação.As diretrizes consideram alergia ao leite de vaca como causa de sintomas comuns em bebês.Sintomas como choro, vômitos ou erupções cutâneas estão presentes em 15-20% dos bebês. Foi relatado que os ensaios clínicos foram insuficientes para o fornecimento do manejo clínico  adequado para controlar sintomas comuns em pacientes. Além disso, algumas diretrizes são apoiadas diretamente por fabricantes de fórmulas e 81% dos autores de diretrizes relatam conflito de interesse com fabricantes de fórmulas.É necessário uma maior investigação a respeito das recomendações para o manejo adequado dos sintomas infantis comuns na alergia ao leite de vaca, especialmente os bebês amamentados que não consomem leite de vaca diretamente, pois recomendações inadequadas podem causar danos ao minar a confiança na amamentação. 
Legenda: FEH – Fórmula extensamente hidrolisada; APLV – alergia à proteína do leite de vaca; FI – fórmula infantil; PLV – proteína do leite de vaca

Fonte: Realizado pelos autores.

4. Discussão 

4.1 Epidemiologia e prevenção

A alergia às proteínas do leite de vaca (APLV) é a alergia alimentar mais frequente em crianças, sendo incomum em adultos, casos esses que podem ser adquiridos já na fase adulta ou prevalentes desde a infância. Além de sua alta incidência em provocar alergia, o leite de vaca também é um dos maiores responsáveis pela anafilaxia induzida por alimentos em populações pediátricas, sejam elas letais ou não4

A condição pode se manifestar mesmo em lactentes com aleitamento materno exclusivo, uma vez que as proteínas do leite de vaca podem ser passadas através do leite materno e afeta aproximadamente 2% das crianças menores de 4 anos de idade no mundo, sendo ainda mais prevalente em bebês de até 1 ano de idade4. Apesar disso, o aleitamento materno exclusivo parece ter um papel protetor ao lactente, uma vez que a concentração da proteína do leite de vaca proveniente da alimentação da nutriz é muito menor da encontrada no leite de vaca, e a incidência de APLV relatada para lactentes amamentados exclusivamente de leite materno é de até 0,5%, além disso, as manifestações clínicas em geral são mais brandas se comparadas aos pacientes alimentados com fórmula infantil13.

Um estudo nacional abrangendo todas as regiões brasileiras indicou uma prevalência de 5,4% e uma incidência de 2,2% da APLV em crianças de até 2 anos5. Além disso, estima-se que 1,2% das crianças menores de 2 anos foram atendidas em serviços ou programas de atenção nutricional devido à APLV no ano de 2019 5

A prevalência da APLV costuma reduzir com o passar da idade, sendo que aquelas não mediada por IgE tendem a resolver mais rapidamente em comparação às mediadas por IgE, desenvolvendo-se portanto uma tolerância até cerca dos 3 anos de idade no primeiro grupo, e por volta da adolescência no segundo4. Sua ocorrência está intimamente ligada com sua prevenção, pois que diversos estudos relacionam a introdução do leite à manifestação da alergia. Essa relação é bastante discutida visto que até 2014 os estudos defendiam o uso de fórmulas extensivamente hidrolisadas quando da necessidade de suplementação da amamentação, enquanto que a partir de 2015 as pesquisas demonstraram que a introdução precoce de proteínas do leite de vaca parecia reduzir a incidência de alergia, porém ainda há muita discussão na literatura acerca de qual seria a margem de tempo ideal para a introdução do contato com o alérgeno a fim de induzir sua dessensibilização9,10

4.2. Patogênese

 O leite de vaca é composto por diferentes tipos de proteínas que representam aproximadamente 80% e 20% da proteína total, sendo a caseína  (alfaS1-, alfaS2-, beta- e kappa-caseínas), beta-lactoglobulina (BLG) e a alfa-lactalbumina (ALA) as principais responsáveis por alergias. No entanto, outras proteínas presentes em concentrações menores, como a lactoferrina bovina, albumina sérica bovina (BSA) e as imunoglobulinas bovinas, também podem causar sensibilização em pacientes alérgicos. A dessensibilização a esses alérgenos mais prevalentes é mais comum, mas cerca da metade dos pacientes alérgicos também desenvolvem sensibilidade a essas proteínas em menor quantidade4.

 No cenário comercial, o leite de vaca possui predominantemente a presença de duas variantes de beta-caseína: A1 e A2. A digestão do tipo A1 pode originar o peptídeo beta-casomorfina-7, sendo este peptídeo identificado como potencial contribuinte para efeitos adversos no trato gastrointestinal associados ao consumo de leite, assemelhando-se aos sintomas observados na intolerância à lactose. Além disso, destaca-se que a maioria das pessoas com alergia ao leite desenvolve sensibilidade a diversos alérgenos presentes no leite, indo além da simples beta-caseína. Esses indivíduos apresentam reatividade em múltiplas regiões de ligação de anticorpos IgE na beta-caseína4. Este fato faz aparecer na literatura científica mais recente o uso do termo no plural – alergia a proteínas do leite de vaca – reiterando que não há apenas uma única proteína, mas um conjunto de potenciais alérgenos.

São evidentes as implicações para a saúde relacionadas à presença de alérgenos no leite de vaca, especialmente em crianças. No leite humano, as quantidades detectadas podem não ser suficientes para desencadear reações alérgicas em crianças suscetíveis. Embora haja ênfase na dessensibilização a esses alérgenos, a sensibilização a proteínas presentes em concentrações baixas, como lactoferrina bovina, BSA e imunoglobulinas bovinas, pode ser observada em até metade dos pacientes com alergias 4,11.

Atualmente, várias estratégias terapêuticas estão sendo estudadas, seja para alérgenos específicos ou para modular a resposta alérgica geral. A complexidade dessa relação enfatiza a necessidade de investigação mais detalhada, especialmente no contexto do uso de probióticos para correção no desequilíbrio da microbiota, evidenciando a variedade de fatores que podem afetar os resultados dessas intervenções 9,10. Reitera-se que não há evidências definitivas de que prebióticos, probióticos ou simbióticos tenham eficácia no tratamento de quaisquer condições alérgicas.

4.3. Manifestações Clínicas 

        Na maioria das vezes os sinais e sintomas ocorrem quando há o término do aleitamento materno exclusivo e têm-se a introdução de fórmulas à base de proteína do leite de vaca (PLV). Contudo, reações adversas ao leite de vaca podem estar presentes desde o nascimento, presumindo-se que o processo pode ocorrer por meio de sensibilização transplacentária. Ademais, crianças com leite materno exclusivo também podem desenvolver APLV, isso ocorre em casos em que o lactente apresenta reações aos antígenos alimentares ingeridos pela mãe4.

As manifestações clínicas decorrentes da APLV podem ser mediadas por IgE, essas que ocorrem imediatamente, cerca de 2 horas após a ingestão, podendo apresentar manifestações com sinais e sintomas cutâneos, orofaríngeos, respiratórios, trato gastrointestinal e/ou cardiovasculares. Além disso, há reações não mediadas por IgE, que geralmente têm início tardio, tais como dermatite atópica (eczema), distúrbios gastrointestinais como a constipação, enterocolite induzida por proteínas alimentares, sendo essa uma síndrome que ocorre principalmente em bebês, causando vômitos e diarreias e levando a desidratação grave, proctite/proctocolite, Síndrome de Heiner, otite média, hemoptise, atraso de crescimento, dispneia, cólicas abdominais, anorexia e hematoquezia4.

Além disso, vale destacar a anafilaxia como uma manifestação clínica decorrente da APLV. Um estudo observacional transversal descreveu as manifestações de anafilaxia em lactentes com APLV no primeiro ano de vida. Cerca de 70% dos prontuários preencheram critérios para anafilaxia, e foram evidenciados urticária, vômitos e dispneia como principais manifestações clínicas em pacientes com diagnóstico de anafilaxia8,13.

As crianças podem apresentar níveis variados de tolerância à PLV, onde algumas reagirão a vestígios de proteína do leite de vaca, enquanto outras poderão tolerar leite cozido (como em biscoitos, por exemplo) e pequenas quantidades de leite em outros alimentos.

A variedade de sintomas e manifestações clínicas diante da temática dificultam os protocolos clínicos em definirem APLV com base nos sintomas relatados para o manejo de cada paciente. Isso ocorre porque os protocolos visam a realização de questionários que definem a conduta a ser seguida, as quais possuem critérios subjetivos para sua execução, dificultando o manejo adequado para cada paciente. Isso torna necessário o exercício de métodos clínicos centrados na pessoa e nas experiências das famílias acerca destes sintomas. 

5. Conclusão

A condição de APLV representa um desafio crescente para profissionais de saúde em diferentes níveis de complexidade de atendimento, seja na Atenção Primária como na Atnção Secundária à Saúde, tanto em sistemas de saúde públicos quanto privados. Este desafio pode ser atribuído a uma série de fatores, incluindo mudanças nos padrões alimentares, exposição a alérgenos desde a infância e possíveis influências ambientais. Essa tendência destaca a necessidade de investigação contínua para entender melhor seus determinantes e desenvolver estratégias eficazes de prevenção e manejo clínico.

A fisiopatologia das alergias alimentares, em particular a APLV, é notavelmente complexa, envolvendo uma interação intrincada entre fatores genéticos, imunológicos, ambientais e dietéticos. A literatura médica predominante aborda as reações tardias não mediadas por IgE como manifestações clínicas que evidenciam a variedade na sintomatologia, o que dificulta o enquadramento do caso clínico em APLV apenas pela detecção dos sinais e sintomas, que neste caso não são patognomônicos. Essa complexidade dificulta a compreensão integral da doença e o desenvolvimento de abordagens terapêuticas precisas e direcionadas. Portanto, é essencial que pesquisas futuras se concentrem na elucidação dos mecanismos subjacentes à APLV para auxiliar em estratégias de tratamento mais eficazes. 

A variedade de sinais e sintomas associados à APLV compõem um espectro heterogêneo que desafia a construção de protocolos clínicos padronizados e objetivos. Desde manifestações cutâneas até sintomas respiratórios e gastrointestinais, a diversidade de apresentações clínicas dificulta o diagnóstico precoce, especialmente em reações não mediadas por IgE. Portanto, é fundamental desenvolver abordagens de diagnóstico e tratamento flexíveis e adaptáveis que possam atender às necessidades individuais de cada paciente, a fim de prover cuidados integrais para crianças com APLV e suas famílias.

Referências

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1Secretaria de Saúde do Distrito Federal SES-DF; Centro Universitário Euro-Americano, e-mail: brunopst@yahoo.com.br;
2Centro Universitário Euro-Americano;
3Secretaria de Saúde do Distrito Federal SES-DF, Universidade de Brasília