REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11077375
Adriano Cardoso
Orientador: Patrícia dos Santos Oliveira Jorge
Coorientador: Suzi Borges Inácio Quirino
RESUMO
O presente estudo aborda a complexidade do uso abusivo de álcool e outras drogas, analisando-o através da lente da psicanálise como um mecanismo de defesa frente ao sofrimento psíquico. A pesquisa destaca a relevância histórica, social e cultural das substâncias psicoativas, desde suas aplicações em contextos ancestrais até os desafios impostos na contemporaneidade, especialmente no Brasil. Central à discussão é a prática da escuta psicanalítica dentro da rede de atenção psicossocial, enfatizando a importância de uma abordagem que valorize a singularidade do sujeito e suas estratégias de defesa. Este trabalho propõe uma investigação aprofundada sobre a interação entre o uso abusivo de substâncias e a estrutura psíquica do indivíduo, questionando o estigma e a abordagem tradicionalmente punitiva em relação aos usuários. Através de uma metodologia qualitativa, que inclui revisão bibliográfica e análise de teorias psicanalíticas, busca-se compreender as contribuições da psicanálise para o tratamento das dependências, destacando a transferência e a formação de um espaço terapêutico eficaz. O estudo enfatiza a necessidade de políticas públicas e práticas terapêuticas que incorporem a escuta sensível e a compreensão psicossocial, movendo-se além da criminalização e patologização do uso de substâncias. Destaca-se, assim, o papel da psicanálise na promoção de uma abordagem mais humana e integrada no tratamento da dependência, contribuindo para a desmistificação do abuso de substâncias e para a construção de estratégias terapêuticas que respeitem a complexidade da experiência humana.
Palavras-chave: Tratamento de dependências, Psicanálise, Mecanismos de defesa, Escuta psicanalítica, Rede de atenção psicossocial.
ABSTRACT
The present study addresses the complexity of the abusive use of alcohol and other drugs, analyzing it through the lens of psychoanalysis as a defense mechanism against psychological suffering. The research highlights the historical, social and cultural relevance of psychoactive substances, from their applications in ancestral contexts to the challenges imposed in contemporary times, especially in Brazil. Central to the discussion is the practice of psychoanalytic listening within the psychosocial care network, emphasizing the importance of an approach that values the uniqueness of the subject and their defense strategies. This work proposes an in-depth investigation into the interaction between substance abuse and the individual’s psychic structure, questioning stigma and the traditionally punitive approach towards users. Through a qualitative methodology, which includes a bibliographic review and analysis of psychoanalytic theories, we seek to understand the contributions of psychoanalysis to the treatment of addictions, highlighting the transfer and formation of an effective therapeutic space. The study emphasizes the need for public policies and therapeutic practices that incorporate sensitive listening and psychosocial understanding, moving beyond the criminalization and pathologization of substance use. Therefore, the role of psychoanalysis in promoting a more humane and integrated approach to the treatment of addiction stands out, contributing to the demystification of substance abuse and the construction of therapeutic strategies that respect the complexity of the human experience.
Keywords: Addiction treatment, Psychoanalysis, Defense mechanisms, Psychoanalytic listening, Psychosocial care network.
1 INTRODUÇÃO
A relação da humanidade com substâncias psicoativas tem uma rica história, marcada tanto por seu uso em rituais ancestrais e práticas terapêuticas quanto pelos desafios contemporâneos ligados ao abuso e à dependência. Neste contexto complexo, onde interagem fatores psicológicos, sociais e culturais, a abordagem psicanalítica, particularmente a prática da escuta psicanalítica na rede de atenção psicossocial, surge como uma resposta promissora aos dilemas impostos pelo uso abusivo de álcool e outras drogas. Esta abordagem valoriza a singularidade do sujeito e suas estratégias de defesa diante do sofrimento psíquico, propondo uma compreensão mais profunda do fenômeno.
Entender o uso abusivo de álcool e outras drogas à luz da psicanálise como uma forma de mecanismo de defesa convoca a investigação sobre como essas substâncias atuam no manejo do sofrimento psíquico. Da mesma forma, questiona-se a capacidade da escuta psicanalítica, no âmbito da rede de atenção psicossocial, de oferecer contribuições significativas para o tratamento e a compreensão dessa questão.
A hipótese central deste trabalho sugere que, para muitos, o abuso de substâncias psicoativas pode representar uma tentativa de lidar com angústias e conflitos internos não resolvidos, atuando como um mecanismo de defesa. Nesse sentido, um acompanhamento psicanalítico, reconhecendo a complexidade do desejo e da estrutura psíquica que subjaz ao abuso dessas substancias, pode fornecer caminhos terapêuticos mais efetivos e significativos.
O objetivo geral deste estudo é, portanto, explorar o papel do uso abusivo de álcool e outras drogas como mecanismo de defesa e sua interação com o acompanhamento psicanalítico dentro da rede de atenção psicossocial. Para alcançar essa meta, o trabalho visa a investigar o contexto histórico e cultural do uso de substâncias psicoativas; examinar o estigma social e as consequências políticas e ideológicas do abuso dessas substâncias no Brasil; analisar as contribuições da teoria psicanalítica para a compreensão do fenômeno; e avaliar as práticas psicanalíticas aplicadas no contexto da saúde mental e suas implicações para o tratamento de dependências.
A justificativa para a realização deste estudo reside na necessidade de abordagens que ofereçam um entendimento integrado das dimensões psíquica, social e cultural envolvidas no abuso de substâncias, ultrapassando as perspectivas tradicionais de tratamento. A escuta psicanalítica, ao focar no sofrimento subjacente ao abuso, promove uma oportunidade para a transformação psíquica do sujeito.
Metodologicamente, este trabalho adotará uma abordagem qualitativa, fundamentada em uma revisão bibliográfica abrangente e na análise de teorias psicanalíticas pertinentes, mediante a análise de livros, revistas e artigos que focam na problemática em questão. Este enfoque busca não apenas aprofundar a compreensão sobre o abuso de substâncias sob a ótica psicanalítica, mas também ressaltar a importância de uma escuta sensível e acurada na promoção da saúde psicossocial.
2 SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS NA HISTÓRIA: DE USOS ANCESTRAIS A APLICAÇÕES TERAPÊUTICAS
A utilização de substâncias psicoativas, como álcool e derivados do ópio, tem suas raízes na antiguidade, e é bem documentada desde tempos pré-históricos. Tais estados alterados de consciência e percepção não são peculiares à espécie humana; há evidências de que diversas espécies animais consomem voluntariamente plantas que modificam seu comportamento. Documentos históricos mostram que o ópio era consumido por civilizações antigas, como egípcios, gregos e romanos, por motivos que incluíam rituais religiosos e lazer. Essa tendência seguiu com médicos romanos e árabes, e posteriormente com os ingleses no século XVIII, que empregavam tintura de ópio para tratar diversos males, incluindo síndromes diarreicas, uma prática não muito distinta da contemporânea utilização de produtos à base de tintura de ópio para propósitos similares.
No século XVI, o uso terapêutico do ópio estava firmemente estabelecido na Europa, principalmente na Inglaterra. Durante essa época até o início do século XIX, acreditava-se que o uso contínuo do ópio era inofensivo. Intelectuais, como Edgar Allan Poe e Thomas De Quincey, consumiam ópio regularmente. Em seu relato autobiográfico Confessions of an English Opium Eater, originalmente publicado em 1822, De Quincey detalha os prazeres e tormentos resultantes do uso frequente de ópio. Simultaneamente, a cocaína, um estimulante e anestésico, começou a ser disseminada na Europa. Esta substância, junto com outros alcaloides da coca, era amplamente consumida pelas populações indígenas dos Andes, região que hoje corresponde a Peru e Bolívia. Tradicionalmente, as folhas de coca eram mascadas ou utilizadas para fazer chás. Exploradores espanhóis introduziram o uso da coca na Europa entre os séculos XVII e XIX. Angelo Mariani, um químico francês, criou em 1863 o Vinho Mariani, uma combinação de vinho e coca, que rapidamente se popularizou (Allen, 1987). Paralelamente, a empresa farmacêutica Merck desenvolveu uma forma de cocaína em pó nos anos 1850, a partir de folhas de coca processadas (Alarcon; Jorge, 2012).
A prática de empregar plantas consideradas sagradas por diversas culturas é um fenômeno que se estende até os períodos mais remotos da história humana, a tal ponto que alguns estudiosos sugerem que as noções de sacralidade e divindade podem ter emergido como consequência direta dos efeitos extraordinários dessas substâncias (McKenna, 2014). Richard Schultes, um renomado etnofarmacologista (Schultes; Hofmann, 2000), argumenta que as plantas contendo compostos psicoativos desempenharam um papel fundamental na evolução das formas de vida mais complexas, incluindo o reino animal e, posteriormente, os seres humanos. Esta conexão profunda entre a flora e os seres humanos se torna particularmente evidente em certas plantas que, através de seus compostos químicos, exercem um impacto significativo na consciência humana, potencializando o despertar mental e espiritual.
Os efeitos notáveis e frequentemente misteriosos ou até mesmo aterrorizantes destas plantas justificam o papel central que ocuparam nas práticas religiosas de culturas ancestrais e o respeito com que ainda são tratadas por algumas comunidades indígenas que mantiveram essas tradições vivas. Contudo, esse fenômeno não se restringe apenas a sociedades tradicionais. Uma proporção considerável de religiões que surgiram na Amazônia alcançou áreas urbanas, incorporando o uso de plantas psicoativas como parte de seus rituais sagrados. Portanto, esse uso não representa uma novidade, visto que a ingestão de plantas para alterar a consciência é uma prática que permeia a experiência humana há milhares de anos. No entanto, apenas recentemente despertou o interesse da cultura ocidental. Apesar da curiosidade que essas plantas possam suscitar em grande parte da sociedade ocidental, que frequentemente os vê sob uma luz negativa, considerando seu uso como trivial ou perigoso, ou, na melhor das hipóteses, apenas como uma opção de tratamento para transtornos mentais graves quando nenhuma outra alternativa está disponível (McKenna, D. J., 1999).
Até o final do século XIX, o interesse na Europa em relação a compostos psicoativos apresentava-se significativamente limitado. Esse desinteresse pode ser atribuído à escassa compreensão desses elementos, a qual estava confinada a círculos de pensadores alternativo que exploraram o uso do ópio e da morfina, conforme observado por Strassman (2013). A obtenção dessas substâncias era, além de escassa, arriscada. A situação começou a alterar-se com o descobrimento da mescalina, o composto ativo encontrado no Peyote, um cacto originário das Américas. A partir desse momento, a familiaridade com essas plantas expandiu-se através de investigações realizadas por etnobotânicos, que se dedicaram à classificação das espécies na região amazônica, e por químicos que desenvolveram metodologias para extrair os componentes químicos de certas plantas, como a mescalina, isolada do Peyote por cientistas alemães (Smith, 2003).
O interesse por essas substâncias permanecia restrito, dada a inexistência de um domínio médico-científico que elucidasse seus efeitos. Embora Freud manifestasse entusiasmo pela cocaína e pelo tabaco, a maioria de seus seguidores não compartilhava deste fascínio. A este contexto, soma-se a interpretação oferecida pela psicanálise freudiana, preponderante durante essa era, aos fenômenos religiosos e experiências espirituais, os quais eram encarados com ceticismo, sendo considerados mecanismos de defesa contra temores e desejos infantis. Esse cenário sofreu uma transformação com o advento do LSD em 1938 (Masters, 2000).
O químico suíço Albert Hofmann, empregado na divisão de produtos naturais da Sandoz Laboratories, estava em busca de um agente que pudesse ser eficaz no manejo da hemorragia uterina pós-parto. LSD-25 (Dietilamida do Ácido Lisérgico), um derivado de fungo de centeio, era um desses compostos. Os resultados em animais foram insignificantes, o que levou Hofmann a abandonar temporariamente o projeto. Cinco anos depois, um palpite o motivou a reexaminar o composto, quando então ‘acidentalmente’ descobriu seus efeitos psicodélicos. Verificou-se também que uma dose de LSD era mil vezes mais potente do que a mescalina. A descoberta do LSD, juntamente com a descoberta da toracina desencadeou uma revolução na psiquiatria, culminando na criação de um novo ramo denominado ‘psiquiatria biológica’. Esta disciplina dedica-se ao estudo da relação entre a mente humana e a atividade química cerebral, sob uma perspectiva da função biológica do sistema nervoso. As investigações envolvendo essas duas substâncias ampliaram o entendimento sobre as propriedades e o mecanismo de ação da serotonina.
Estudos científicos evidenciaram que a serotonina representa o neurotransmissor primordialmente identificado, cujas funções exibiram paralelismos notáveis com as do LSD em experimentações conduzidas. Essa correlação posicionou o LSD como um mecanismo de inestimável valor para a exploração das interações cerebrais e cognitivas. A Sandoz Laboratories disponibilizou LSD sem custos para pesquisadores globalmente, visando provocar estados psicóticos transitórios em indivíduos sem histórico de psicose, com o objetivo de elucidar os mecanismos subjacentes aos distúrbios psicóticos. A literatura científica da época sugere que a psicoterapia potencializada pelo uso de substâncias psicoativas mostrava resultados promissores. Foi destacado por diversos estudiosos o impacto das experiências místicas fomentadas por tais substâncias na transformação pessoal dos participantes. Contudo, a investigação divergiu consideravelmente de seu propósito original de auxiliar no tratamento de desordens mentais, conforme apontado por Leary (1999).
Na década de 1960, foram frequentes as reportagens em veículos de grande circulação sobre casos de indivíduos que experienciaram crises severas, incluindo suicídios e homicídios, supostamente influenciados pelo consumo de psicoativos. As autoridades governamentais e a mídia nos Estados Unidos criticaram o meio científico por sua alegada incapacidade de regular o uso dessas substâncias.
A situação foi exacerbada pela decisão do Dr. Timothy Leary e sua equipe de Harvard de se afastarem dos ambientes acadêmicos e dos padrões éticos da pesquisa científica, optando por promover o uso de LSD em comunidades alternativas nos Estados Unidos, conforme relatado por Strassman (2013), Masters (2000) e Leary (1999). Recentemente, observou-se um renovado interesse pelas práticas religiosas, bem como pelas potenciais aplicações medicinais e terapêuticas do LSD. Nas últimas duas décadas, avanços significativos foram alcançados no estudo de variadas substâncias psicoativas, demonstrando sua eficácia no tratamento de uma ampla gama de condições de saúde e na reabilitação psicossocial de indivíduos que experimentaram mudanças profundas após o uso dessas substâncias em contextos religiosos ou terapêuticos, conforme documentado por Masters (2000).
De acordo com Schultes e Hofmann (2000), apesar do avanço no entendimento sobre essas plantas quanto à aplicação de seus componentes químicos, ainda não se conhecia a capacidade de avaliar completamente os seus benefícios. Ademais, o conhecimento concernente a estas plantas permanece limitado a seus usuários e a um grupo restrito de especialistas em ciências, incluindo profissionais da saúde, sociólogos, antropólogos e etnofarmacologistas.
A vasta maioria das pesquisas realizadas no meio acadêmico, envolvendo religiões que incorporam substâncias psicoativas como elemento sacramental, atesta a genuinidade da fé de seus adeptos, bem como documenta extensivamente os benefícios proporcionados pelo seu uso, seja em termos de transformações psicossociais seja em relatos que evidenciam vantagens à saúde. A discussão acerca do uso de plantas psicoativas remete à origem das práticas xamânicas e ao nascimento de rituais religiosos de civilizações milenares, visto que estas substâncias eram empregadas como veículo de comunicação entre o mundo material e um plano espiritual superior. Embora essa comunicação fosse efêmera, suas implicações socioculturais eram e continuam sendo significativas nas sociedades que utilizaram e utilizam tais psicoativos (McKenna, D. J., 1999; Schultes & Hofmann, 2000).
3 DROGAS, SOCIEDADE E MORAL: DESAFIANDO A VISÃO ESTIGMATIZADA NO BRASIL
De acordo com o psicanalista Nicodemos (2023), substâncias psicoativas frequentemente suscitam uma ampla gama de reações negativas e julgamentos dos responsáveis por gerenciar o abuso dessas substâncias. Ideologias moralistas e conservadoras são vigorosas e influentes no tecido social, cruzando diferentes estratos sociais, níveis de educação e esferas profissionais, e essas atitudes variam em intensidade e no grau de condenação ao longo do tempo. O referido autor aponta que, especificamente no Brasil, após eventos políticos significativos em 2016 e sob o governo federal subsequente, foi observado um crescimento notável dessas atitudes preconceituosas, juntamente com uma intensificação da judicialização e criminalização do consumo de substâncias psicoativas. Estas medidas adotam uma postura excessivamente punitiva e agressiva em relação aos consumidores.
Nicodemos (2023) afirma que a sociedade brasileira demonstra, cada vez mais, seus preconceitos profundamente enraizados e básicos, repudiando o que considera um desvio das normas aceitas, que é constantemente mantido à margem da legalidade. Este fenômeno se manifesta em vários níveis: moral, ético, político e legal. Um questionamento surge sobre o status das substâncias psicoativas e seu papel na experiência humana, desafiando a classificação negativa e frequentemente aceita. Nesse sentido, o psicanalista propõe um inquérito sobre por que não se pode reconhecer qualquer potencial positivo das drogas, questionando a tendência de enfocar somente os impactos negativos sobre o usuário e sua família, assim como os perigos para a sociedade. O autor cita ainda que, no campo literário e científico, existem exemplos notáveis que divergem dessa visão estigmatizada. Referindo-se a figuras proeminentes, há discussões sobre o trabalho de Baudelaire e Freud. Baudelaire explora a relação com substâncias psicoativas e as indagações sobre sua essência em suas obras literárias, enquanto Freud, talvez impulsionado pelo desconforto humano intrínseco, realizou investigações iniciais sobre os efeitos da cocaína, que podem ser interpretadas como uma procura por uma compreensão mais aprofundada e possivelmente radical da realidade humana.
A psicanálise revelou ao mundo contemporâneo a presença de um desconforto inerente à existência na sociedade civilizada, uma expressão redundante, dado que não se conhece outra forma de existência para os seres que falam. Freud nomeou esse fenômeno de castração, sugerindo que jamais escaparemos dessa condição limitante em qualquer esfera de nossa vivência. Torna-se evidente que o desafio associado ao uso diversificado de anestésicos (do grego anestesia, ou seja, ausência de sensação), requer atenção.
Neste contexto, poder-se-ia criar novas nomenclaturas como transestésicos e hiperestésicos, para referir-se àquelas substâncias que convertem sensações dolorosas em prazerosas, ou aquelas que amplificam o sentir de maneira direta ou indireta, mas de forma irrefutável, relacionando-se com a existência dolorosa e a castração proposta por Freud. Não haverá um mundo sem drogas ou um estado de delírio coletivo de bem-estar absoluto. Aqueles que renunciam a trabalhar neste campo, sem uma compreensão clara dos recursos conceituais disponíveis, são exortados a reconsiderar.
A referência a Freud é imprescindível para aprofundar o entendimento. O uso de substâncias entorpecentes na busca pela felicidade e no distanciamento do sofrimento é altamente valorizado, até o ponto de ser considerado sinônimo de bem-estar. Isso conferiu aos indivíduos e sociedades uma posição firme na economia libidinal (conceito que tem origem na interseção entre a psicanálise e a análise do sistema econômico). A humanidade é grata a essas substâncias não só pelo prazer imediato que proporcionam, mas também pela esperança de uma independência do mundo exterior. É do conhecimento geral que, com a ajuda de tais ‘destruidores de preocupações’, é possível escapar a qualquer momento das pressões da realidade e se refugiar em um mundo privado com condições otimizadas para sensações agradáveis. No entanto, é exatamente essa propriedade que sinaliza tanto o potencial quanto o perigo inerente dessas substâncias, pois podem levar ao desperdício de energia que seria mais bem empregada para o aprimoramento da condição humana.
É de conhecimento de Júlio Nicodemos (2023), fundamentado na imanência de sua experiência como homem, que não existe nada intrinsecamente mau, diabólico ou nefasto nas drogas em si. Como tudo disponível ao sujeito inconsciente, qualquer objeto que possa ser adotado como real pode se tornar um instrumento letal contra ele. Assim, o que deve ser abordado não é a droga em si, mas o sujeito que dela faz uso abusivo. A abordagem ao indivíduo que abusa de substâncias nunca deve ser simplista, nem para Nicodemos, que a vê como uma estratégia falha de distanciar o sujeito do ‘grande mal demoníaco’, nem para aqueles que buscam privá-lo do uso através da imposição de abstinência.
O raciocínio de Júlio Nicodemos (2023) se alinha com uma visão mais humanizada e menos estigmatizante sobre o uso de substâncias psicoativas, sugerindo uma reflexão profunda sobre as complexidades subjacentes ao abuso de drogas. Esta perspectiva desafia as abordagens tradicionais, frequentemente marcadas por uma visão binária que categoriza o uso de drogas estritamente como bom ou mau, legal ou ilegal, moral ou imoral. Ao invés disso, propõe-se um olhar mais atento à natureza multifacetada do uso de substâncias, reconhecendo que a questão central não reside nas substâncias em si, mas nas condições que levam os indivíduos a recorrer a elas.
O entendimento de que o abuso de drogas pode ser uma tentativa de lidar com a dor existencial, com a sensação de vazio ou com o desconforto inerente à condição humana, abre caminho para abordagens terapêuticas que visam não apenas a cessação do uso de substâncias, mas também a compreensão e tratamento das questões profundas que motivam esse uso. Dessa maneira, a ênfase deve ser colocada no desenvolvimento de estratégias que promovam a saúde mental, a resiliência e o bem-estar dos indivíduos, ao invés de focar exclusivamente na proibição ou na penalização do uso de drogas.
4 O USO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS E O TRATAMENTO PSICANALÍTICO EM POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL
Zornig (2013) aborda a complexidade do abuso de substâncias tóxicas na adolescência através de uma perspectiva psicanalítica, focando na importância da relação dos adolescentes com os objetos ao seu redor. Na adolescência, essa relação é frequentemente caracterizada por uma tentativa de incorporar esses objetos, um processo que impede o acesso a experiências cruciais de introjeção e simbolização. Este fenômeno pode ser compreendido como uma manifestação de defesas psíquicas contra angústias profundas, onde o abuso de substâncias surge como uma tentativa paradoxal de lidar com o vazio interior e a busca por identidade.
A referida autora aponta que, para alguns psicanalistas, a adolescência representa um período de confronto com temas de castração e finitude, marcado por uma necessidade de apropriação subjetiva de questões não resolvidas da infância. No entanto, falhas nas relações com objetos primordiais, como pais ou cuidadores, podem levar a uma identificação melancólica com estes objetos perdidos, dificultando o processo de luto necessário para a maturação psíquica. Essa dinâmica pode contribuir para o abuso de substâncias, visto como uma tentativa de preencher o vazio deixado por essas falhas relacionais e evitar o confronto com a dor da perda e com o trabalho de simbolização.
Zornig (2013) enfatiza a importância do acompanhamento do psicanalista no processo terapêutico, destacando como um envolvimento empático e atento pode ajudar o adolescente a investir de forma mais saudável no vazio interior, sem recorrer a mecanismos de defesa destrutivos como o abuso de substâncias. Esta abordagem visa facilitar o acesso do adolescente aos processos de simbolização, permitindo uma elaboração mais rica de suas experiências internas e uma melhor gestão de suas angústias. A discussão é ilustrada por um fragmento clínico que detalha a trajetória de uma adolescente cujas experiências com o abuso de álcool e drogas refletem suas lutas com a incorporação e a introjeção, enfatizando a complexa interação entre falhas em estabelecer conexões emocionais significativas na infância e o desenvolvimento de comportamentos viciantes.
Este caso sublinha como o abuso de substâncias pode ser visto como uma manifestação externa de conflitos internos profundos, destacando a necessidade de um acompanhamento psicanalítico sensível e informado para abordar essas questões subjacentes. Em síntese, observa-se uma compreensão do abuso de álcool e outras drogas na adolescência não apenas como um problema comportamental, mas como um sintoma de desafios psicológicos mais profundos. É imperiosa a necessidade de uma escuta psicanalítica atenta na Rede de Atenção Psicossocial, que possa responder às complexidades dessas experiências e apoiar os adolescentes no enfrentamento e na superação de seus conflitos internos.
Souza (2010) salienta que, no contexto da psicanálise aplicada ao consumo de álcool e outras substâncias, adota-se uma postura que diverge tanto da perspectiva tradicional voltada para a higiene social e as repressões morais dirigidas aos indivíduos nesta situação, quanto de uma abordagem isolacionista. Reconhece-se a importância da colaboração multidisciplinar para promover um tratamento e acolhimento mais eficazes.
Almeida (2002) argumenta que o uso de substâncias, independentemente da idade do indivíduo, reflete uma dinâmica pulsional que revela a alienação em relação ao Outro, destacando a capacidade do inconsciente para o conhecimento e a ação. Esse ciclo de repetição e insistência no prazer coloca o indivíduo em uma trajetória contínua de busca por saber e por fazer, dentro de um ‘labirinto’ de conhecimento. No início do tratamento, enfrenta-se o desafio da transferência, onde o sujeito bloqueia o conhecimento, emaranhado na repetição do consumo de drogas, necessitando do sofrimento para navegar entre si mesmo, o objeto e o Outro.
Segundo Roudinesco e Plon (1998), a transferência, que se desenvolveu significativamente após o abandono da hipnose, da sugestão e da catarse por Freud, caracteriza o processo terapêutico no qual os desejos inconscientes são projetados em objetos externos e se repetem.
Breuer e Freud, em seus estudos de 1895, introduziram o conceito de transferência como o processo pelo qual emoções e desejos reprimidos são, de forma equivocada, direcionados a outras pessoas. Isso envolve uma espécie de conflito interno, onde uma força trabalha para manter esses conteúdos emocionais reprimidos, ao mesmo tempo em que a transferência tenta trazê-los à tona. Esse processo acaba por revelar resistências internas, mas também abre caminho para o reconhecimento e a superação de emoções e desejos reprimidos.
Almeida (2002), ampliou essa visão ao explicar que, durante a transferência, o analista, profissional treinado para conduzir análises psicanalíticas, se torna uma espécie de espelho para o paciente, refletindo aspectos de seu inconsciente que normalmente não são acessíveis. Isso permite que o paciente veja claramente padrões de pensamento e comportamento previamente ocultos por suas defesas psicológicas, levando a uma forma de repetição que progressivamente esvazia esses padrões de seu significado original. Esse processo simplifica a complexidade emocional do paciente, incentivando-o a questionar e, eventualmente, a assumir o controle de seus desejos e ações. Portanto, é a capacidade e a vontade do analista de engajar nesse processo de espelhamento e provocação de questionamentos que fundamentam o sucesso do tratamento. A ideia é que, com a ajuda do analista, o paciente começa a encontrar suas próprias respostas e a se responsabilizar por sua vida, numa dinâmica que depende fortemente do desejo do analista de promover essa transformação.
Gelman (2002) enfatiza a importância de um trabalho preliminar na clínica das toxicomanias, destacando a necessidade de uma abordagem de construção de tratamento que inclua a disponibilização de um espaço para a escuta ativa. Esta prática possibilita a identificação da posição do indivíduo em relação ao seu consumo de álcool e outras substâncias. A integração do psicanalista em uma equipe multidisciplinar é essencial, conforme Trinca et al. (2013), onde profissionais de diversas áreas como psicologia, psiquiatria e nutrição colaboram para oferecer ao sujeito novas perspectivas e facilitar a formação de vínculos duradouros, visando uma reestruturação psíquica. A formação de uma relação transferencial eficaz é mencionada como um componente crucial para o sucesso do tratamento, permitindo ao analista compartilhar contribuições e interpretações com o paciente.
Segundo Petry (2015), a eficácia da escuta psicanalítica e do acolhimento a usuários de álcool e drogas é corroborada, enquanto De Bona et al. (2016) enfocam na prevenção de recaídas, sublinhando a importância de identificar os fatores de risco individuais e promover a autoconsciência nas questões pessoais. A inserção do psicanalista em equipes multidisciplinares é vista como uma oportunidade para oferecer apoio abrangente ao indivíduo, conforme discutido por Trinca et. al. (2013). A relevância do suporte familiar no tratamento também é ressaltada, apontando para o papel imprescindível da família como aliada no processo de recuperação. Petry (2015) e De Bona et al. (2016) destacam a importância da escuta ativa e do acolhimento no tratamento de indivíduos dependentes, contribuindo também para a prevenção de recaídas ao entender e gerenciar os gatilhos subjacentes.
Além disso, é enfatizado que a psicologia e a psicanálise devem levar em consideração a subjetividade do indivíduo sem ignorar os fatores sociais, econômicos e familiares que influenciam jovens usuários de substâncias, adotando uma abordagem focada no indivíduo. É reconhecida a interconexão entre a psicologia individual e social, salientando que a análise deve assegurar que cada sujeito seja visto como um ente falante inserido em um contexto social e político que afeta diretamente sua subjetividade. Apesar do amplo espectro teórico da psicanálise sobre o tema, os estudos tendem a se concentrar no indivíduo, muitas vezes negligenciando os aspectos sociais e culturais que o cercam, enquanto a saúde mental atribui significativa consideração a esses aspectos sociais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho explorou a complexidade do uso abusivo de álcool e outras drogas sob a perspectiva da psicanálise, evidenciando como essas substâncias podem atuar como mecanismos de defesa frente ao sofrimento psíquico. Através de uma abordagem histórica, social e psicanalítica, foi possível compreender a multidimensionalidade desse fenômeno, que transita entre o individual e o coletivo, o ancestral e o contemporâneo, o sagrado e o patológico. A escuta psicanalítica, aplicada dentro da rede de atenção psicossocial, apresenta-se como uma ferramenta valiosa no tratamento e compreensão do abuso de substâncias.
A capacidade dessa abordagem de valorizar a singularidade do sujeito, reconhecendo e trabalhando suas angústias e conflitos internos, oferece uma alternativa promissora às intervenções tradicionais, que frequentemente se centram na patologização ou na criminalização do uso das referidas substâncias. O diálogo entre a psicanálise e as práticas de saúde mental, enriquecido pelas contribuições multidisciplinares, ressalta a importância de um tratamento que considere as complexas interações entre os aspectos psíquicos, sociais e culturais na vida dos indivíduos. Ao enfatizar a necessidade de compreensão e acolhimento, em detrimento da estigmatização e da exclusão, este estudo propõe uma reflexão sobre as políticas públicas e as práticas terapêuticas dirigidas aos usuários de álcool e drogas.
Ademais, a investigação salientou a relevância da transferência e da construção de um espaço terapêutico que favoreça a elaboração e a simbolização das experiências dos sujeitos. A incorporação de uma escuta atenta nas equipes multidisciplinares, que reconheça as particularidades de cada caso e promova um ambiente de segurança e confiança, é fundamental para o avanço no tratamento das dependências. Por fim, este trabalho contribui para a desmistificação do uso abusivo de substâncias, deslocando o foco da discussão do campo meramente comportamental ou punitivo para o da compreensão psicanalítica e psicossocial.
Ressalta-se a importância de se continuar explorando e ampliando os espaços de diálogo e intervenção que possibilitem aos indivíduos enfrentar suas dores e conflitos de maneira construtiva e significativa, favorecendo não apenas a sua recuperação, mas também sua reinserção na sociedade de forma digna e respeitosa. Neste sentido, a escuta psicanalítica na rede de atenção psicossocial se apresenta não apenas como uma metodologia de tratamento, mas como um chamado à reflexão sobre as bases de nossa convivência social e as formas como lidamos com o sofrimento humano em suas mais variadas manifestações.
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