LESÕES RESULTANTES DE ACIDENTES DE TRÂNSITO: O PAPEL DA MEDICINA DE TRÁFEGO NA PREVENÇÃO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10850831


José Carlos Bedran1
Orientador: Dr. Ricardo Mele2


RESUMO

O presente estudo apresenta uma revisão de literatura sobre o papel da Medicina de Tráfego na prevenção de lesões resultantes de acidentes de trânsito. Os acidentes de trânsito são previsíveis e, consequentemente, podem ser evitados. E, caso ocorram colisões no trânsito, é possível reduzir a severidade das lesões por intermédio de intervenções adequadas. A Medicina de Tráfego é a disciplina que possibilita o conhecimento das possíveis lesões decorrentes e acidentes de trânsito e as intervenções necessárias para redução de sua ocorrência ou severidade. A educação dos usuários das vias (condutores, passageiros, pedestres, ciclistas, motociclistas) para o uso de cinto de segurança, uso de capacete, travessia na faixa de pedestres, direção segura, redução da velocidade, não dirigir sob efeito de álcool, drogas ou com sonolência, são medidas simples que podem ser transmitidas ao público por meio de ações baseadas na educação para o trânsito e podem reduzir a severidades das lesões. A Medicina do Tráfego também pode atuar na formulação de normas e legislações do trânsito e na gestão das vias de modo geral, visando sempre a segurança dos usuários. No caso de colisões, a Medicina do Tráfego pode reduzir a severidade das lesões por meio de atenção adequada e rápida às vítimas de acidentes. É sabido que ações voltadas para a prevenção de lesões resultantes de acidentes de trânsito podem reduzir os índices de colisões e a severidade dessas lesões.

Palavras-chave:Medicina de Tráfego. Acidentes de Trânsito. Lesões. Prevenção.

1 – INTRODUÇÃO

As lesões resultantes de acidentes de trânsito (LRAT) constituem uma das principais causas de doenças e óbitos prematuros em países em desenvolvimento, sendo consideradas um relevante problema de saúde pública.

Nos países em desenvolvimento 85% de todas as mortes e 90% dos anos de vida ajustados por incapacidade foram perdidos por acidentes de trânsito (NANTULYA; REICH, 2002; GOPALAKRISHNAN, 2012). No Brasil, dados do Ministério da Saúde (MS, 2017) sobre estatísticas no trânsito demonstram quem em 2015 ocorreram 37306 óbitos por acidentes de trânsito e 204000 pessoas foram hospitalizadas. No mesmo ano, o seguro DPVAT (Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres) pagou 42500 indenizações por morte e 515750 por invalidez.

Esses dados demonstram a importância de uma intervenção baseada na prevenção de acidentes de trânsito, daí o interesse em pesquisar como a Medicina de Tráfego (MT) pode atuar na prevenção desses acidentes.

A MT é uma especialidade relativamente nova que abrange técnicas e métodos destinados a reduzir os acidentes de trânsito infligidos a seres humanos. Além disso, existe um elemento a MT abrange um elemento habilitador/reabilitador que procura assegurar que a mobilidade de transporte (um importante componente de bem-estar e inclusão social) não seja prejudicada por doenças, remédios ou perda funcional. Trata-se de uma área da medicina que envolve uma ampla gama de disciplinas, com base em dados de pesquisas que possibilitam um processo ativo de reflexão, debate e consenso para maximizar a mobilidade segura.

A prevenção de acidentes de trânsito é uma questão que gera debates no contexto da saúde pública e da sociedade em geral. Mas, a MT é a disciplina que tem as ferramentas para analisar os dados e atuar na prevenção de lesões no trânsito. Para tanto, são necessários os dados sobre a incidência e os tipos de falhas e, também, é necessária uma compreensão detalhada das circunstâncias que levam a falhas para orientar uma política de segurança. O conhecimento de como as lesões são causadas e de que tipo são, é um instrumento importante para identificar intervenções e monitorar a eficácia das mesmas. Assim, a MT é o ramo da Medicina que pode apresentar diretrizes para prevenir a ocorrência de lesões originadas de acidentes de trânsito.

1.1  Objetivos

1.1.1 Objetivo geral

  • O objetivo geral deste estudo é investigar o papel da Medicina de Tráfego na prevenção de lesões resultantes de acidentes de trânsito.

1.1.2 Objetivos Específicos

  • Descrever as estatísticas de LRAT no Brasil, e no mundo, para identificar os tipos de lesões mais comuns;
  • Discutir a prevenção das LRAT por intermédio da MT.

1.2 Metodologia

A metodologia caracteriza-se como pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, para a qual foi realizada uma revisão da literatura científica sobre o tema.

Foi realizada uma busca por artigos publicados em revistas indexadas e artigos científicos, incluindo dados bibliográficos da MT e dados estatísticos sobre LRAT.

Os bancos de dados foram pesquisados de forma a incluir artigos completos e resumos publicadosem idioma inglês e português.

As buscas das publicações científicas foram realizadas nas seguintes bases de dados virtuais: PubMed, LILACS e Scielo, cruzando os seguintes descritores: Medicina de Tráfego, lesões, acidentes de trânsito, prevenção.

Como critérios de inclusão, foram analisados estudos epidemiológicos, revisões sistemáticas e revisões de literatura diretamente relacionadas com o tema.

Os dados obtidos com as publicações científicas pesquisadas foram analisados pela abordagem qualitativa e possibilitaram a elaboração do recorte teórico sobre o papel da MT na prevenção de lesões resultantes de acidentes de trânsito.

1.3 Justificativa

O elevado número de acidentes de trânsito, em todo o mundo e também no Brasil, é considerado um sério problema de saúde pública. O conhecimento dos tipos de lesões e as possíveis formas de prevenção dessas lesões é uma das especialidades da MT, que é a área da Medicina que dispõe das ferramentas/conhecimento necessárias para atuar nesse segmento. Justifica-se esta pesquisa a importância de conhecer os principais tipos de lesões causadas por acidentes de trânsito e as possíveis formas de prevenção.

2- RECORTE TEÓRICO: o papel da Medicina de Tráfego na prevenção de lesões resultantes de acidentes de trânsito

2.1 Sobre a Medicina de Tráfego

Nas últimas décadas, a MT, e outras disciplinas de segurança no tráfego, desenvolveram-se até um ponto em que as estratégias eficazes para prevenir ou reduzir acidentes e lesões são bem conhecidas.  Neste contexto, a MT:

É o ramo da ciência médica que trata da manutenção do bem-estar físico, psíquico e social do ser humano que se desloca, qualquer que seja o meio que propicie a sua mobilidade. Estuda as causas do acidente de tráfego a fim de preveni-lo ou mitigar suas consequências, além de contribuir com subsídios técnicos para a elaboração do ordenamento legal e modificação do comportamento do usuário do sistema de circulação viária (ADURA et al., 2012, p. 14).

A MT atua em diversas áreas, tais como (ADURA et al., 2012):

  • MT Preventiva: atua na identificação dos fatores etiológicos dos acidentes, com a definição dos grupos de alto risco, caracterização e divulgação periódica dos índices de morbidade e mortalidade resultantes de acidentes de tráfego.
  • MT Legal: atua na realização de perícias, avaliações e contribui com o Poder Público para concepção, elaboração e aplicação de uma legislação adequada e eficiente em relação à medicina e segurança do trânsito.
  • MT Curativa: atua no atendimento no local do acidente, que consiste no atendimento pré-hospitalar e transporte da vítima para o hospital.
  • MT Ocupacional: atua na prevenção de doenças dos motoristas profissionais, tais como: perda auditiva, surdez, zumbido, problemas respiratórios, estresse, distúrbios comportamentais, entre outros.
  • Medicina do Viajante: atua, entre outras coisas, no planejamento da viagem, em relação às doenças infectocontagiosas prevalentes no percurso e destino do viajante, com a recomendação de imunização nas viagens nacionais e internacionais.
  • MT Aeroespacial: atua no contexto do transporte aéreo, com apoio aos pacientes dentro das aeronaves e no aeroporto, nas inspeções de saúde dos trabalhadores desse segmento e na orientação de pessoas que desejam viajar por este meio de transporte.
  • MT Securitária: atua na avaliação de danos físicos causados pelos acidentes de tráfego para efeito de recebimento de seguros pessoais.
  • MT Aquaviário: avalia a condição médica de candidatos a obtenção de habilitação para embarcações, em todas as categorias.

Uma abordagem cientifica e sistemática do problema da segurança rodoviária é essencial, embora ainda não seja totalmente aceita em muitos lugares. O novo modelo de compreensão da segurança rodoviária pode ser resumido da seguinte forma (PEDEN et al., 2004):

  • A lesão acidental é em grande parte previsível e em grande medida evitável. É um problema de análise racional.
  • A política de segurança rodoviária deve basear-se numa análise e interpretação de dados.
  • A segurança rodoviária é um problema de saúde pública que envolve intimamente vários setores, inclusive o da saúde. Todos têm suas responsabilidades e todos precisam estar totalmente envolvidos na prevenção de lesões.
  • Uma vez que o erro humano em sistemas de tráfego complexos não pode ser totalmente eliminado, as soluções ambientais (incluindo o design de estradas e de veículos) devem ajudar a tornar os sistemas de tráfego rodoviário mais seguros.
  • A vulnerabilidade do corpo humano deve ser um fator de projeto limitante para sistemas de tráfego, ou seja, para o design do veículo e da estrada e para a definição de limites de velocidade.
  • O acidente de trânsito na estrada é uma questão de equidade social, com usuários vulneráveis da estrada com uma parcela desproporcional de ferimentos e riscos em comparação com outros que possuem melhores condições. O objetivo de segurança deve ser de igual proteção para todos.
  • A transferência de tecnologia de países de alta renda para países de baixa renda deve ser apropriada e deve atender às necessidades locais. O conhecimento local precisa se alimentar da implementação de soluções locais.

Segundo Peden et al. (2004), o desafio de reduzir o nível de perda humana nas estradas exige o seguinte desenvolvimento:

  • Aumento da capacidade de formulação de políticas, pesquisa e intervenções, tanto no setor público como privado.
  • Planos estratégicos nacionais, incorporando alvos onde os dados o permitam.
  • Bons sistemas de dados para identificar problemas e avaliar respostas.
  • Colaboração entre uma série de setores, incluindo o setor de saúde.
  • Parcerias entre os setores público e privado.
  • Responsabilidade e recursos adequados e uma forte vontade política.

A MT é uma área nova, mas que possui importante papel na prevenção de acidentes e problemas de saúde que podem ocorrer nos diversos modais de transporte. No caso do presente estudo, o modal de interesse é o rodoviário, com ênfase nas LRAT.

2.2 Acidentes de trânsito: características e lesões resultantes

Os acidentes de trânsito representam uma grande ameaça para a saúde pública. Atualmente, eles constituem a oitava principal causa de morte em todo o mundo, a principal causa de morte entre as pessoas na faixa etária de 15 a 29 anos, e deve ser tornar a quinta principal causa de morte para todas as faixas etárias até 2030 (RUS et al., 2015).

Todos os anos mais de um milhão de pessoas são mortas nas estradas em todo o mundo e entre 20 e 50 milhões sofrem lesões graves não fatais como resultado de acidentes de trânsito (RUS et al., 2015). Na União Europeia, em 2010, aproximadamente 31 mil pessoas foram mortas em acidentes rodoviários (JOST et al., 2011). Dentro da região europeia, um fardo desproporcional está em países de baixa e média renda, onde as taxas de mortalidade são duas vezes maiores do que em países com alta renda (RUS et al., 2015).

No Brasil, em 2015, ocorreram 37306 óbitos e 204000 internações causados por acidentes de trânsito (MS, 2017). Anualmente, 38,5% das hospitalizações derivam de acidentes de trânsito e a faixa etária mais acometida é a de 20 a 39 anos (REDE SARAH, 2017).

O Relatório Mundial sobre lesões causadas pelo trânsito indica que:

Mais da metade de todas as mortes globais no trânsito ocorrem em jovens entre 15 e 44 anos de idade. 73% de todas as vítimas de fatalidades globais de trânsito são do sexo masculino. Os vulneráveis usuários das vias – pedestres, ciclistas e motociclistas – representam uma proporção muito maior de colisões de trânsito nos países de baixa e média renda do que em países de alta renda.

Os acidentes de trânsito são responsáveis por uma série de mortes e lesões que acometem a população economicamente ativa, implicando danos físicos e econômicos, relacionados à morbidade e mortalidade de pessoas que sustentam suas famílias. Os custos relacionados aos acidentes de trânsito abrangem a saúde pública e, também, a economia familiar, devido “a pressão financeira sobre as famílias das vítimas” (MOHAN et al., 2011, p. 15).

Os acidentes de trânsito podem causar muitos tipos de lesões diferentes, que podem atingir praticamente qualquer parte do corpo do motorista e/ou passageiro, dependendo das circunstâncias do acidente e da gravidade do impacto (ASEFA et al. 2015).

No Brasil, os principais tipos de lesões ocasionadas por acidentes de trânsito são: lesão medular (43,8%); lesão ortopédica (30,3%); lesão cerebral (19,6%); lesão neurológica (4,3%); e outras lesões (2,0%) (REDE SARAH, 2017). A figura 1 apresenta o gráfico dos principais tipos de LRAT no Brasil.

Figura 1: Distribuição dos pacientes, vítimas de acidentes de trânsito por causa de internação
Fonte: Rede SARAH, 2017.

Os acidentes de trânsito ocorrem, na maioria das vezes, devido à um ou mais dos seguintes fatores: condução imprudente, alta velocidade, desobediência às normas de trânsito, embriaguez ao volante, consumo de medicamentos que causam sonolência, atitudes negativas e destrutivas (brigas, fechadas, etc.) entre os motoristas, falta de manutenção dos veículos, e condições ruins das estradas (GOPALAKRISHNAN, 2012). A tabela 1 descreve os principais fatores de risco de lesões causadas pelo trânsito.

Tabela 1: Acidentes em função das vítimas fatais e das vítimas em geral

Fatores de riscoDescrição
Fatores que influenciam na exposição ao riscoFatores econômicos, como o nível de desenvolvimento econômico e a exclusão social; Fatores demográficos, como a idade e sexo; Práticas de planejamento do uso de solo que influenciam nas distâncias a serem percorridas pela população nos modos de viagem; Combinação de tráfego motorizado em alta velocidade com usuários vulneráveis das vias; Atenção insuficiente dada à integração da função da via nas decisões sobre limites de velocidade e os projetos da rede viária.
Fatores que influenciam na ocorrência da colisãoVelocidade excessiva ou inadequada; Consumo de álcool, medicamentos ou drogas ilícitas; Fadiga; Ser jovem e do sexo masculino; Que o condutor e os demais ocupantes do veículo sejam todos jovens; Ser um usuário vulnerável das vias em áreas urbanas e residenciais; Condução noturna; Fatores veiculares – como frenagem, direção e manutenção; Defeitos no traçado, desenho e manutenção das vias, que também podem levar a comportamentos de risco por parte dos usuários; Visibilidade inadequada devido a fatores ambientais (dificultando a detecção de veículos e outros usuários das vias); Baixa acuidade visual dos usuários de vias.
Fatores que influenciam na severidade da colisãoTolerância humana; Velocidade excessiva ou inadequada; Não uso de cinto de segurança e de dispositivos de retenção para o transporte de crianças; Não uso de capacete pelos usuários de veículos de duas rodas; Objetos fixos às margens das vias que não amortecem o impacto em caso de colisões; Proteção insuficiente contra impactos para ocupantes do veículo e para aqueles envolvidos na colisão; Álcool e outras drogas.
Fatores que influenciam no resultado da lesão após a colisãoAtraso na detecção da colisão e no transporte dos envolvidos para um serviço de saúde; Incêndio decorrente da colisão; Vazamento de materiais perigosos; Álcool e outras drogas; Dificuldade para retirar os ocupantes dos veículos; Dificuldade para retirar pessoas de ônibus e automóveis envolvidos na colisão; Falta de atendimento pré-hospitalar adequado; Falta de atendimento adequado em salas de emergência hospitalar.
Fonte: Mohan et al., 2011, p. 27-28.

No estudo realizado por James e Nahl (2002), os autores citaram uma lista de quinze fatores que podem promover o estresse durante a condução de um veículo, que são comuns e propícios para expressar a hostilidade e a agressividade no trânsito, ou ainda, podem levar a colisões por fadiga ou atitudes agressivas:

  • Imobilidade: durante o ato de dirigir a maior parte do corpo permanece passiva, com pouco movimento, o que pode criar um processo de tensão no motorista.
  • Constrição: as ruas são estreitas e restritas, no trânsito congestionado, o progresso do veículo é, inevitavelmente, bloqueado por vários outros carros, sendo impedido de seguir em frente o motorista espera, desperta a emoção de restrição e constrição, e junto com ela, a ansiedade e o desejo de sair dessa situação. Isso faz com que os motoristas realizem manobras arriscadas ou sejam agressivos, além de outros problemas.
  • Regulamento: dirigir é uma atividade regulamentada, o que significa que o motorista e seu veículo são monitorados, constantemente, por câmeras e radares espalhados pela cidade, além de policiais e funcionários do departamento de trânsito que cumprem a função de fiscalização do trânsito. A violação das regras de trânsito implica em punição dos motoristas (multas, etc.), devendo os mesmos conhecerem e respeitarem essas regras. Esta imposição, embora lícita e necessária, desperta um lado rebelde em muitas pessoas, que depois lhes permite regularmente desconsiderar qualquer regulamentação que lhe pareça indevida num determinado momento.
  • Falta de controle: o tráfego segue as leis que regem os padrões de fluxo, como riso, tubos, vasos sanguíneos; no trânsito congestionado, o fluxo depende dos espaços disponíveis ao redor dos carros, como pode ser verificado a partir de uma vista aérea. Quando um carro fica mais lento, centenas de outros carros atrás ficam sem espaço e diminuem a velocidade ou param completamente, como em um impasse. Não importa onde o motorista para onde o motorista vai, se ficou preso em um engarrafamento, terá de esperar muito tempo para percorrer um pequeno percurso. O motorista não tem o controle dessa situação. Essa falta de controle sobre o que acontece provoca o estresse, frustrando a produtividade, e podendo levar à exaustão, à raiva, à violência.
  • Ser colocado em perigo: muitos motoristas “amam” seus carros. Por esse motivo, um simples arranhão produz estresse. No tráfego congestionado os motoristas tendem a se tornarem hostis e agressivos. O estresse fisiológico é assim produzido, juntamente com uma série de emoções negativas, tais como: medo, ressentimento, raiva, impotência, mau humor e depressão.
  • Territorialidade: devido estar preso na situação de esperar que o trânsito volte a fluir, a tendência é que o motorista considere o espaço interno do automóvel como seu “castelo” e o espaço em torno do automóvel como seu território. O resultado é que o motorista repetidamente se sente invadido ou agredido enquanto está no trânsito, tornando-se hostil, agressivo e tomando atitudes mais arriscadas.
  • Diversidade: atualmente existe uma diversidade de motoristas que variam de experiência, conhecimento, habilidade, estilo e propósito para estar no trânsito. Estas diferenças sociais reduzem a sensação de previsibilidade do motorista, porque pessoas com habilidades e propósitos diferentes nem sempre se comportam de acordo com as regras esperadas. A paz e a confiança do motorista podem ser abaladas por eventos que são inesperados, e dirigir torna-se mais complexo, mais emocionalmente desafiador. A diversidade ou pluralidade gera aumento de estresse porque provoca maior imprevisibilidade.
  • Multitarefa: atualmente os motoristas são multitarefa, enquanto dirigem, muitos motoristas comem, falam ao telefone, verificam e-mail, alguns até leem, o que diminui a capacidade de manter-se alerta e concentrado ao volante. Os motoristas tornam-se mais irritados um com o outro quando a sua atenção ou alerta parece estar em falta devido estar realizando outras tarefas ao volante.
  • Negar os próprios erros: a condução é tipicamente feita por hábitos automáticos, compilados ao longo de anos, e isso significa que muito pode ser feito de forma inconsciente. Normalmente, os condutores tendem a exagerar a sua própria excelência, com vista para os seus muitos erros. Quando os passageiros se queixam, ou quando outros motoristas estão ameaçados por esses erros e demonstram, existe uma forte tendência do condutor a negar os erros e ver como queixas injustificadas. Essa negação permite que os motoristas se sintam justificados a dirigir de modo imprudente e, em alguns casos, faz com que o motorista queira punir e retaliar, aumentando o nível de hostilidade e tensão no trânsito.
  • Cinismo: muitas pessoas aprenderam a dirigir sob a supervisão dos pais e professores, com críticas e julgamentos. Deste modo, não basta aprender a manipular o veículo, mas, também, é preciso adquirir uma atitude mental mais crítica, para que uma vez exposto novamente a situações de crítica e julgamento, não sejam geradas mais emoções negativas. A cultura do cinismo mútuo entre motoristas promove uma vida emocional ativa e negativa ao volante. Tudo isso culmina em situações estressantes, uma vez que as emoções negativas são geradoras de esforço.
  • Perda de objetividade: incidentes de condução não são neutros: existe sempre alguém que está errado. Há uma tendência natural a quere atribuir culpa aos outros ao invés de assumir a própria culpa. Este viés também influencia a memória do que aconteceu, inclinando a culpa para o outro. Os motoristas perdem a objetividade e o adequado julgamento quando uma disputa vem à tona. O estresse aumenta a subjetividade, reforçando o sentimento de que foi injustiçado.
  • Ventilação: parte da herança cultural na América é a capacidade de descarregar a raiva descrevendo todos os detalhes de comportamento censurável de outra pessoa. A natureza da ventilação é tal que aumenta por sua própria lógica, até que se transforma em hostilidade aberta e até mesmo violência física. Requer motivação e autoformação para ter ventilação, respirar fundo, e assumir o controle. Até que seja mantida sob controle consciente, a ventilação é sentida como um “rush” energizante e promove a agressividade e violência. No entanto, este sentimento sedutor é curto, e é acompanhado por uma corrente de raiva que produz pensamentos que prejudicam o julgamento e provocam explosões de raiva. A ventilação repetida gera o estresse fisiológico com efeitos prejudiciais sobre o sistema cardiovascular.
  • Imprevisibilidade: As vias públicas (ruas, avenidas, estradas, etc.) criam um ambiente de drama, perigo e incerteza. Além disso, calor, ruídos, cheiros atuam como estresse fisiológico e agravam sentimento de frustração e ressentimento, competição, hostilidade, e intensificam as emoções negativas. O ambiente de condução torna-se tedioso, brutal e perigoso, difícil de se ajustar ao plano emocional do motorista.
  • Ambiguidade: os motoristas não têm uma linguagem de comunicação oficial. Isto permite surgir a ambiguidade. A falta de comunicação clara entre os motoristas gera ambiguidade, o que contribui para o estresse.
  • Falta de treinamento da inteligência emocional: tradicionalmente, a educação do motorista foi concebida como familiarizar os alunos com alguns princípios gerais de segurança, seguido por algumas horas de estágios supervisionados de experiência ao volante, ou um simulador de condução. O desenvolvimento de inteligência emocional e controle ao volante não fazem parte do treinamento. A maioria dos motoristas são destreinados nas habilidades cognitivas e afetivas. Habilidades cognitivas constituem bons hábitos de pensamento e julgamento. Habilidades afetivas são bons hábitos de atitude e motivação. Falta aos motoristas, portanto, as habilidades necessárias para enfrentar as situações de estresse promovidas pelo trânsito. Esta falta de formação em inteligência emocional cria uma condição de elevada tensão para a maioria dos motoristas.

Todos os fatores supracitados podem levar a atitudes que resultem em colisões.

A Associação Brasileira de Prevenção dos Acidentes de Trânsito (2017) classificou os principais tipos de acidentes de trânsito em função das vítimas fatais e das vítimas em geral, conforme descrito na tabela 2.

Os dados supracitados demonstram que as lesões e mortes por acidente de trânsito são um importante problema de saúde pública no Brasil. A menos que a ação apropriada seja tomada com urgência, o problema tende a piorar. Uma parte considerável do problema de mortes e lesões no trânsito continuará a ser suportada por usuários vulneráveis no trânsito, tais como: pedestres, ciclistas e motociclistas.

2.3 O papel da Medicina de Tráfego na prevenção de lesões resultantes de acidentes de trânsito

Este tópico apresenta a literatura sobre os principais padrões de lesões provocadas por acidentes com veículos automotores e como a Medicina de Tráfego pode atuar na prevenção dessas lesões.

2.3.1 Padrão de lesões provocadas por acidentes com veículos automotores – acidentes de trânsito

As lesões provocadas por acidentes de trânsito são resultado da transferência de energia entre o corpo humano e o ambiente (MOHAN et al., 2011).

Em uma colisão frontal, o ocupante irrestrito de um veículo continua a avançar à medida que o veículo entra em um choque abrupto. Este movimento para a frente é limitado à medida que o indivíduo se choca contra o chassi estacionário do veículo. O ponto de impacto inicial é muitas vezes as extremidades inferiores, resultando em fratura/deslocamento e luxações do tornozelo, joelho ou quadril e fraturas femorais. À medida que o corpo continua em movimento, a cabeça, a coluna cervical e o torso impacto contra o para-brisa e a coluna de direção (BOWLEY; FOFFARD, 2002).

Em um impacto lateral, a vítima é acelerada do lado do veículo. As lesões pélvicas compressivas, a contusão pulmonar, a lesão de órgãos sólidos intra-abdominais e a ruptura de diafragma são comuns. Os impactos traseiros também aceleram a vítima. Se os apoios de cabeção estiverem instalados incorretamente, ou se forem inexistentes, a inércia da cabeça torna a coluna cervical vulnerável a lesões. A ejeção de um veículo está associada a uma incidência significativamente maior de lesão grave ou crítica (MCCOY et al., 1988).

As lesões resultantes de aceleração/desaceleração ocorrem quando acontece movimento diferencial entre estruturas adjacentes. Por exemplo: a aorta distal é ancorada na coluna torácica e desacelera muito mais rapidamente que o arco aórtico relativamente móvel. As forças de cisalhamento são geradas na aorta pelo movimento contínuo para a frente do arco em relação à aorta distal torácica. Situações semelhantes ocorrem nos pedículos renais, a junção da cervical com a coluna torácica e também entre a matéria branca e cinzenta dentro do cérebro. Recomenda-se que o uso de cinto de segurança de três pontos, uma vez que essa atitude pode reduzir o risco de morte ou lesões graves para os ocupantes do banco dianteiro em aproximadamente 45% (RIVARA et al., 1997).

Em colisões puramente frontais, os airbags proporcionam um risco reduzido de fatalidade de aproximadamente 30%. Em todos os tipos de acidentes, a redução do risco de morte é estimada em 11% (BOWLEY; BOFFARD, 2002).

Apesar dos riscos para os integrantes dos veículos automotores, em acidentes de trânsito que envolvem motociclistas, ciclistas e pedestres, as lesões são potencialmente mais graves e fatais (BOWLEY; BOFFARD, 2002).

Os motociclistas experimentam uma taxa de mortalidade 35 vezes maior do que os ocupantes de carros (RIVARA et al., 1997). A maioria das lesões ocorrem na cabeça, sendo que o uso de capacetes reduz o risco de lesão crônica fatal em um terço (EVANS; FRICK, 1988; BOWLEY; BOFFARD, 2002) e o risco de lesões faciais em dois terços (JOHNSON et al., 1995). As fraturas das extremidades inferiores também são comuns nos motociclistas, ocorrendo em aproximadamente 40% dos casos de hospitalização por lesões não fatais (PEEK et al., 1994).

No caso dos ciclistas, quando envolvidos em acidentes de trânsito, as lesões costumam ser mais graves e os óbitos mais frequentes. As crianças com idade entre 5 e 14 anos apresentam as maiores taxas de lesão na cabeça e representam 75% das mortes associadas ao ciclismo. O uso de capacetes por parte dos ciclistas pode reduzir os riscos de lesão cerebral em até 88% dos casos (BOWLEY; BOFFARD, 2002).

Salum e Koizumi (1999) caracterizaram a natureza e gravidade da lesão de pacientes hospitalizados, vítimas de acidentes de trânsito de veículo motor através da Abbreviated Injury Scale (AIS). Foram analisadas 220 vítimas internadas em uma instituição de referência para trauma em São Paulo, Brasil. Do total de pacientes, 111 eram pedestres, 83 ocupantes de automóveis e 26 ocupantes de motocicletas. As lesões mais frequentes localizaram-se em membros/cintura pélvica e cabeça/pescoço para toda população do estudo com gravidade de lesão AIS. Faleceram 45 vítimas, sendo dois terços de pedestres.

Ferrando et al. (2000) identificaram os principais padrões de lesões nos vários tipos de usuários de carros, motocicletas, bicicletas e pedestres, feridos em acidentes de trânsito e tratados em serviços de emergência hospitalar, juntamente com suas principais características demográficas. Foi realizado um estudo cumulativo no período de um ano de todos os pacientes atendidos em departamentos de emergência em Barcelona, Espanha, durante os 12 meses do ano de 1998, por LRAT. Das quase 17 mil vítimas incluídas na pesquisa, 62% eram homens. Os jovens entre 15 e 39 (71,6%) foram os mais afetados; 42% eram usuários de veículos motorizados de duas rodas, motocicletas, seguidos por ocupantes de carros (32%) e pedestres (24%). A entorse do pescoço (33%) foi a lesão mais comum entre os ocupantes de carro, a contusão múltipla e contusão de membros inferiores entre veículos a motor de duas rodas (23,5% e 14%, respectivamente) e pedestres (17,3% e 14,4%, respectivamente) e fraturas dos membros superiores (20%) entre ciclistas. Os usuários de motocicletas, principalmente homens jovens, têm a maior probabilidade de sofrer lesões, sendo os membros inferiores a região anatômica mais afetada. Os pedestres idosos que sofrem lesões nos membros inferiores e na cabeça contribuem substancialmente para a situação geral de lesões.

Oliveira e Sousa (2003)realizaram um estudo para caracterizar motociclistas, vítimas de acidentes de trânsito, residentes em Maringá, Paraná e atendidos em centros de referência para tratamento do trauma, segundo gravidade do trauma, partes do corpo afetadas e região corpórea da lesão mais grave, além de identificar, dentre essas vítimas, possíveis diferenças na qualidade de vida daqueles que apresentaram trauma cranioencefálico. O Injury Severity Score foi utilizado para análise de gravidade do trauma, e o instrumento genérico Medical Outcomes Study 36-Item Short-Form Health Survey para avaliação da qualidade de vida das vítimas. Quanto à gravidade das lesões, predominaram as vítimas de trauma leve, 73,14%. A maioria (59,70%) sofreu lesões nos membros inferiores, seguidos pelos membros superiores (58,21%) e cabeça (31,34%). Os membros destacaram-se entre as demais regiões como os segmentos corpóreos mais gravemente lesados. Na comparação da qualidade de vida após trauma das vítimas, com e sem trauma cranioencefálico, não se evidenciaram diferenças.

Bener et al. (2009) afirmaram que as lesões de cabeça e pescoço após acidentes de trânsito são a causa mais comum de morbidade emortalidade na maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento e, também, podem resultar em incapacidade temporária ou permanente. Os autores determinaram o padrão de incidência de lesões na cabeça e pescoço, investigaram sua tendência e identificaram a gravidade das lesões envolvidas com acidentes rodoviários durante o período de 2001-2006. Foi realizado um estudo retrospectivo baseado em um hospital. Os pacientes com lesões na cabeça e no pescoço foram observados e tratados no departamento de acidentes e emergências de um hospital geral. Foi realizada uma análise retrospectiva de 6709 pacientes atendidos e tratados no período pesquisado. As lesões de cabeça e pescoço foram determinadas de acordo com os critérios do CID 10. Destes, 3013 motoristas, 2502 passageiros, 704 pedestres e 490 ciclistas ou motociclistas. Um total de 6709 pacientes com lesões na cabeça e no pescoço foram relatados durante o período de estudo.  A maioria das vítimas não era local (68,7%), homens (85,9%), faixa etária entre 20 a 44 anos (68,5%). Houve diferenças estatísticas significativas em relação à idade, nacionalidade, gênero e acidente durante os finais de semana para lesões na cabeça e no pescoço (p<0,001). A relação entre homens e mulheres para lesão na cabeça e no pescoço foi de 6.1:1. Houve uma incidência desproporcionalmente maior de acidentes nos finais de semana (27,8%). A maioria dos pacientes apresentou lesão leve (87,2%), seguida de moderada (7,3%) e grave (5,5%). A maior frequência de lesão na cabeça foi entre os adultos jovens de 20 a 44 anos (68,5%). Houve um aumento notável na taxa de incidência de lesões de cabeça e pescoço por 10.000 habitantes no ano de 2005 (18,2) em relação aos anos anteriores e diminuiu ligeiramente em 2006 (17,1). No geral, a incidência de lesões de cabeça e pescoço causados por acidentes de trânsito está aumentando. Os autores concluíram que a incidência de lesões de cabeça e pescoço ainda é muito alta no Catar, mas a gravidade da lesão leve foi observada na maioria das vítimas. As conclusões do estudo ressaltam a necessidade de tomar medidas urgentes de segurança das pessoas, especialmente os motoristas e os passageiros.

Rodrigues et al. (2010) analisaram o tipo e padrão das lesões envolvendo motociclistas no município de Sorocaba. Houve predomínio de vítimas do sexo masculino, adultos jovens, condutores e em uso do capacete. Houve relação do horário das ocorrências com a ida e a volta do trabalho. Quanto às lesões, houve predomínio de ferimentos cortocontusos e escoriações, envolvendo principalmente a cabeça e os membros. Houve tendência de queda no número de acidentes após o início da Lei 11.705/2008, sugerindo que o álcool é um fator importante na gênese desses acidentes.

Reith et al. (2015) afirmaram que os pedestres envolvidos em colisões de veículos motorizados apresentam uma situação de trauma única. Essa assertiva foi corroborada por intermédio de um estudo que demonstrou as características clínicas específicas dessa população de pacientes em comparação com os feridos, ocupantes de veículos motorizados no local de emergência médica. Um total de 4435 vítimas de colisão de trânsito – pedestres admitidos em hospitais participantes do registro de traumas no período de 2002 a 2012, foi avaliado e comparados com 16042 ocupantes de veículos motorizados gravemente feridos. As análises incluíram características de distribuição demográfica, padrões de lesões, curso de tratamento, complicações subsequentes e resultados clínicos de modo geral. Os pedestres gravemente feridos mais comumente eram do sexo feminino (42% vs. 34% dos ocupantes de veículos motorizados) e crianças menores de 16 anos (12% vs. 2%) ou idosos acima de 60 anos (39% vs. 17%). Os pedestres foram mais gravemente feridos, com taxas maiores de lesões na cabeça (64% vs. 47%), lesões pélvicas (32% vs. 23%) e lesões nas extremidades inferiores (52% vs. 43%). Por conseguinte, os pedestres mais comumente apresentaram escala de coma de Glasgow <9 (36% vs. 28%) e uma pressão arterial sistólica abaixo de 90 mmHg (18% vs. 13%) acumulando um pior prognóstico (RISC-Score 24% vs. 15%). Apesar de um tempo de tratamento mais curto na cena (26 min. vs. 38 min.) e um período mais curto desde a colisão até a admissão hospitalar (61 min. vs. 78 min.), os pedestres apresentaram maior mortalidade (22% vs. 12%). Os autores concluíram que os pedestres gravemente feridos representam uma população de pacientes desafiadora com padrões únicos de lesão e alta mortalidade subsequente. Os membros da equipe de emergência devem ser sensibilizados para o termo ‘pedestre’ para melhorar o gerenciamento inicial de emergência e, portanto, o resultado clínico geral.

Simoneti et al. (2016) realizaram um levantamento epidemiológico sobre as vítimas de eventos traumáticos com motocicletas encaminhadas para um hospital terciário, em Sorocaba, e descreveram as lesões encontradas e discutiram o impacto na qualidade de vida das vítimas. Foi realizado um estudo prospectivo que incluiu vítimas de trauma envolvidas em acidentes com motocicletas no período de abril-setembro/2013, referenciadas a um hospital terciário. Um total de 143 pacientes foram analisados: 83,2% homens e 16,8% mulheres, com o predomínio do grupo etário de 20-29 anos (49,6%). O uso de capacete foi relatado em 98,5% dos casos. O gênero masculino representou cerca de 86% na categoria de condutor da motocicleta. Os principais mecanismos de trauma foram colisões (72,7%), seguidas de queda da motocicleta (15,4%). Quanto às lesões, as mais encontradas foram as escoriações (72,9%) e os ferimentos cortocontusos (13,8%). Os segmentos anatômicos mais acometidos foram os membros superiores e inferiores, representando 97,9%, o que sugere gravidade relativamente leve da maioria dos pacientes. Os autores concluíram que o padrão majoritário das vítimas de acidentes envolvendo motocicletas (homens, com 20-29 anos) são compatíveis com a literatura. O predomínio da população economicamente ativa do país em eventos tão onerosos e incapacitantes como acidentes com motocicletas implica na necessidade de novas estratégias de gestão do trânsito e da saúde pública.

Os estudos supracitados demonstram que as lesões em pedestres, ciclistas e motociclistas, na maioria dos casos, são mais severas e provocam maiores índices de morbidade e mortalidade em comparação com as lesões dos ocupantes de veículos motorizados. Contudo, muitas colisões que envolvem usuários de veículos de quatro rodas também podem ser severas e resultar em morbidade permanente ou mortalidade do usuário do veículo. Assim, as medidas de prevenção são necessárias para diminuir o risco de lesões ou, em último caso, reduzir a severidade das lesões durante uma colisão.

A MT possui um papel importante na prevenção de LRAT, como é descrito no tópico a seguir.

2.3.2 Medicina de Tráfego: prevenção de lesões

A colisão no trânsito é resultante da interação entre diversos fatores e subsistemas, tais como: usuários da via, a rede viária e seu entorno e os veículos. A figura 2 demonstra a interação nas vias e os fatores que influenciam nas colisões no trânsito.

Figura 2: Abordagem sistêmica das possíveis interações nas colisões de trânsito
Fonte: Mohan et al., 2011, p. 26.

Em 1972, William Haddon desenvolveu uma matriz para identificar os fatores de risco antes, durante e após uma colisão no trânsito, em relação à pessoa, ao veículo e ao ambiente, como demonstra a tabela 3.

A Matriz de Haddon pode ser considerada uma ferramenta analítica que permite a análise dos riscos, os fatores de influência e o tipo de prevenção que pode ser adotada para reduzir o número de LRAT.

A partir dessa Matriz, Haddon apresentou dez estratégias para prevenção de lesões causadas pelo trânsito conforme apresentado na figura 3.

Figura 3: Dez estratégias de Haddon para prevenção de lesões causadas pelo trânsito
Fonte: Mohan et al., 2011, p. 63-64.

De acordo com Mohan et al. (2011) existem boas práticas que podem ser seguidas para reduzir a incidência de acidentes de trânsito e reduzir o número de lesões.

A redução da exposição ao risco por intermédio de políticas de transporte e uso do solo pode reduzir significativamente o risco de LRAT com o planejamento adequado e projetos arrojado das vias de tráfego bem como sobre políticas de uso do solo, como descrito na figura 4.

Figura 4: Gestão da exposição dos usuários das vias aos riscos de acidentes
Fonte: adaptado de Mohan et al., 2011

Outra possibilidade de intervenção da Medicina do Tráfego em conjunto com outras disciplinas para a redução de acidentes de trânsito ou para prevenir a ocorrência de lesões mais severas dos usuários das vias consiste no controle da velocidade, aumento da visibilidade dos veículos e dos pedestres nas rodovias e em vias localizadas em áreas residenciais. As vias devem ser classificadas de forma adequada e funcional, com o controle do fluxo de pedestres, ciclistas e de veículos motorizados (MOHAN et la., 2011).

A boa visibilidade é uma condição essencial para a segurança dos usuários das vias – pedestres, ciclistas, motoristas, as principais formas de aumentar a visibilidade são descritas na figura 5.

Figura 5: Melhora da visibilidade nas vias
Fonte: adaptado de Mohan et al., 2011.

Os veículos também devem ser projetados para reduzir a severidade das lesões em caso de colisões, como descrito na figura 6.

Figura 6: Projeto de veículos para redução da severidade de lesões
Fonte: adaptado de Mohan et al., 2011.

Outra intervenção importante para a prevenção de colisões e da severidade das LRAT está relacionada às regras de segurança no trânsito (figura 7).

Figura 7: Regras de segurança no trânsito
Fonte: adaptado de Mohan et al., 2011.

Atenção após uma colisão: a prevenção é importante, mas quando uma colisão ocorre, é importante que as vítimas recebam o atendimento médico adequado para evitar o agravamento das lesões ou a morte da vítima do acidente de trânsito (MOHAN et al., 2011).

Além das observações supracitadas, outra possível forma de intervenção que pode reduzir o número de acidentes de trânsito é a educação no trânsito. A educação no trânsito também contribui para a instrução dos usuários sobre a importância do cinto de segurança, do uso de capacetes, de dirigir na velocidade permitida, atravessar na faixa, entre outros.

Sobre a educação para o trânsito, segundo Hoffmann e Luz Filho (2011), esse processo extrapola a aplicação de procedimentos a fim de que o aluno conheça, compreenda e respeite as normas de circulação e se comporte como um cidadão responsável, ela insere-se num âmbito mais amplo que é a educação ético-social. Ambas se ocupam de procedimentos para promover e desenvolver estratégias e habilidades com alunos que facilitem sua compreensão e respeito ativo às normas e aos princípios que as regem. A missão da educação para o trânsito é favorecer a criação de atitudes, comportamentos e pautas de conduta para possibilitar a convivência harmônica das pessoas e dos grupos.

A educação no trânsito é uma parte fundamental, mas que nem sempre apresenta resultados efetivos, assim alguns estudos analisaram questões relacionadas à eficácia ou não da educação no trânsito e da formação na segurança no trânsito, conforme demonstra a figura 8.

Figura 8: Análise do papel da educação e da formação na segurança no trânsito
Fonte: Mohan et al., 2011, p. 71.

Existe uma série de intervenções que podem ser realizadas para evitar as lesões decorrentes de acidentes de trânsito, ou ainda, reduzir a severidade dessas lesões para as vítimas. As mortes por tráfego rodoviário e lesões graves são, em grande medida, evitáveis, uma vez que o risco de sofrer lesões em um acidente é em grande parte previsível e existem diversas intervenções que podem ser efetivas. A lesão resultante de acidente de trânsito deve ser considerada um problema de saúde pública que responde bem a intervenções direcionadas (PEDEN et al., 2004).

A provisão de meios de viagem seguros, sustentáveis e acessíveis é um objetivo fundamental no planejamento e projeto de sistemas de tráfego rodoviário. Para atingir esse objetivo, são necessárias uma forte vontade política e uma abordagem integrada que envolva uma colaboração estreita de muitos setores, no qual o setor de saúde, nomeadamente a MT, desempenha um papel importante baseado na prevenção de lesões do trânsito.

3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A revisão de literatura demonstrou que a MT possui um papel importante na prevenção de LRAT. Quando ocorrem colisões no trânsito, as lesões podem ser severas tanto para os usuários de veículos como para os pedestres e ciclistas e podem levar a morbidade ou mortalidade das vítimas.

A MT ao realizar a análise dos diversos tipos de possíveis lesões resultantes de acidente de trânsito, os fatores de risco para essas lesões e formas de prevenção, pode orientar os usuários das vias (condutores, passageiros, pedestres, motociclistas e ciclistas) se prevenirem de diversas formas:

I. Para evitar a ocorrência de acidentes:
a. Melhorar a gestão das vias, com o devido planejamento e projeto para melhorar a segurança na visibilidade dos veículos;
b. Facilitar a travessia de pedestres, com melhor iluminação e visibilidade das faixas de pedestres;
c. Uso de faróis mesmo durante o dia;
d. Uso de luzes de freio em lugares de fácil visualização;
e. Aplicação de normas de segurança/legislação para controle de velocidade, consumo de álcool e drogas por parte dos condutores, entre outros;
f. Ações voltadas para a educação no trânsito.

II. Para reduzir a severidade das lesões na ocorrência de acidentes de trânsito:
a. Uso de cinto de segurança;
b. Encosto de cabeça devidamente ajustados;
c. Airbags;
d. Uso de capacete por parte de ciclistas e motociclistas.

III. Para reduzir a severidade das lesões e os índices de morbidade e mortalidade após a ocorrência de acidentes de trânsito:
a. Otimizar o atendimento das vítimas, e prestar atendimento adequado no local;
b. Promover a devida atenção às vítimas após a colisão.

Este estudo demonstrou que a MT possui um papel importante na prevenção de LRAT tanto na promoção de ações que evitem a ocorrência de acidentes, como na redução da severidade da lesão durante a colisão e na atenção às vítimas após a colisão.

Políticas de transporte adequadas e voltadas para a segurança dos usuários das vias, bem como a gestão da exposição ao risco de acidentes de trânsito nas vias são condições essenciais para melhorar a segurança no trânsito, reduzindo a ocorrência e gravidade das lesões.

O planejamento e design das vias voltados para a segurança da rede rodoviária podem minimizar o risco de acidentes e lesões do trânsito. As características de proteção contra colisões em um veículo podem salvar vidas e reduzir as lesões dos usuários, dentro e fora do veículo. O cumprimento das principais regras de segurança no trânsito pode ser significativamente ampliado usando uma combinação de legislação, aplicação das leis, informações aos usuários e educação para o trânsito.

A disponibilidade de cuidados de emergência de boa qualidade pode salvar vidas e reduzir significativamente a gravidade e as consequências das LRAT.

Por fim, cumpre observar que o presente estudo foi de grande valia para aprimorar o conhecimento acadêmico e profissional do pesquisador, possibilitando maior compreensão sobre a importância da MT na prevenção de lesões do trânsito.

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1Médico, aluno do Curso de Pós-Graduação em Medicina do Trabalho da PUC-Goiás.
2Professor titular da PUC-Goiás, orientador