PREDITORES DA NEUROTOXICIDADE NA ICTERÍCIA NEONATAL: UMA REVISÃO DE LITERATURA

 PREDICTORS OF NEUROTOXICITY IN NEONATAL JAUNDICE: A LITERATURE REVIEW

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10793900


¹Josefa Lyvia Gonçalves de Souza, ²Ana Letícia da Silva Saraiva, ³Chslanna Mayra Morais Sousa, ⁴Gabriela Ricarte Leite Rolim, ⁵Kailane Barroso Nogueira, ⁶Kathaleen Temoteo Felix, ⁷Maria Fernanda Araújo Batista, ⁸Rafael Pereira Duarte, ⁹Tâmila Mirielly Virgino Feitoza, ¹⁰Yasmin Pinheiro Fernandes


RESUMO

Introdução: A icterícia é uma condição neonatal comum que atinge, pelo menos, 60% dos recém-nascidos (RN) a termo e 80% dos pré-termo, nos primeiros dias de vida (Ebbesen et al.,2020). Nos neonatos, a icterícia é uma condição decorrente de uma maior carga de bilirrubina indireta ao hepatócito e redução do clearance hepático e entérico da bilirrubina. Sua manifestação clínica se caracteriza por uma coloração amarelada da pele, com padrão de acometimento crânio-caudal. Objetivo: Identificar fatores preditores de neurotoxicidade na icterícia neonatal. Metodologia: de início, o presente estudo constitui uma revisão integrativa de literatura, tendo sido produzido segundo as diretrizes estabelecidas na declaração PRISMA 2020 (PAGE et al, 2020). Nesse contexto, o primeiro passo na construção desta revisão foi a definição da pergunta de pesquisa, a saber: que fatores estão associados com a incidência de encefalopatia em recém-nascidos com icterícia neonatal? Quanto à pesquisa na base de dados, utilizou-se as palavras-chave neurotoxicidade, icterícia neonatal e encefalopatia, com a restrição de que os artigos tivessem sido publicados nos últimos 10 anos. Além disso, foram excluídos estudos experimentais em animais, artigos incompletos e estudos que não tinham relação com a pergunta de pesquisa após avaliação por texto completo. Resultados: Obtivemos dados clínicos de 75 pacientes com encefalopatia bilirrubínica entre 2002 e 2016. O nível médio máximo de bilirrubina total foi de 12,6 miligramas por decilitro (215 micromoles por litro), e a idade média na obtenção máxima foi de 19,7 dias após o nascimento. O nível de albumina foi inferior a 2,5 gramas por decilitro em 44 pacientes, e o nível máximo de bilirrubina direta foi de pelo menos 2 miligramas por decilitro (34,2 micromoles por litro) em 20 pacientes. A razão média de bilirrubina/albumina (B/A) máxima foi de 3,8 (razão molar de 0,475), e a idade média na obtenção máxima foi de 18,6 dias. A idade média e a idade gestacional dos neonatos foram de 146,5 ± 86,9 horas e 38,6 ± 1,3 semanas [38,7(34,6-41,1) semanas], respectivamente; 52,17% eram do sexo masculino. A análise de regressão logística binária após ajuste para covariáveis mostrou uma associação positiva entre os níveis de bilirrubina não conjugada e o desenvolvimento de encefalopatia bilirrubínica aguda (odds ratio = 1,41, intervalos de confiança de 95% 1,05-1,91, P = < 0,05). Conclusão: A análise dos estudos revisados destaca a icterícia neonatal como uma condição comum, benigna na maioria dos casos, mas que pode indicar problemas subjacentes sérios. A avaliação cuidadosa do recém-nascido é de suma importância, especialmente para identificar sinais de icterícia patológica, que podem ter origem precoce e persistir por mais de quatorze dias. Portanto, a abordagem otimizada do paciente com icterícia neonatal deve incluir avaliação neurológica e auditiva, pesquisa de metabólitos e aplicação da pontuação BIND, de modo que os pacientes com maior risco de evolução para kernicterus sejam identificados precocemente.

Palavras-chave: neurotoxicidade; icterícia neonatal; encefalopatia

ABSTRACT

Introduction: Jaundice is a common neonatal condition affecting at least 60% of term and 80% of preterm newborns in the first few days of life (Ebbesen et al., 2020). In neonates, jaundice results from an increased load of indirect bilirubin to the hepatocyte and reduced hepatic and enteral clearance of bilirubin. Its clinical manifestation is characterized by a yellowish discoloration of the skin, with a cranio-caudal distribution pattern. Objective: To identify predictors of neurotoxicity in neonatal jaundice. Methodology: Initially, this study constitutes an integrative literature review, produced according to the guidelines established in the PRISMA 2020 statement (PAGE et al., 2020). In this context, the first step in constructing this review was to define the research question, namely: what factors are associated with the incidence of encephalopathy in newborns with neonatal jaundice? Regarding database research, the keywords neurotoxicity, neonatal jaundice, and encephalopathy were used, with the restriction that articles had been published within the last 10 years. Additionally, experimental animal studies, incomplete articles, and studies unrelated to the research question were excluded after full-text evaluation. Results: Clinical data were obtained from 75 patients with bilirubin encephalopathy between 2002 and 2016. The mean maximum total bilirubin level was 12.6 milligrams per deciliter (215 micromoles per liter), and the mean age at maximum attainment was 19.7 days after birth. Albumin level was less than 2.5 grams per deciliter in 44 patients, and the maximum direct bilirubin level was at least 2 milligrams per deciliter (34.2 micromoles per liter) in 20 patients. The mean maximum bilirubin/albumin (B/A) ratio was 3.8 (molar ratio of 0.475), and the mean age at maximum attainment was 18.6 days. Mean age and gestational age of neonates were 146.5 ± 86.9 hours and 38.6 ± 1.3 weeks [38.7(34.6-41.1) weeks], respectively; 52.17% were male. Binary logistic regression analysis after adjustment for covariates showed a positive association between unconjugated bilirubin levels and the development of acute bilirubin encephalopathy (odds ratio = 1.41, 95% confidence intervals 1.05-1.91, P = < 0.05). Conclusion: The analysis of the reviewed studies highlights neonatal jaundice as a common condition, benign in most cases, but which can indicate serious underlying problems. Careful evaluation of the newborn is paramount, especially to identify signs of pathological jaundice, which can have an early onset and persist for more than fourteen days. Therefore, the optimized approach to neonatal jaundice patients should include neurological and auditory assessment, metabolite research, and application of the BIND score, so that patients at higher risk of progressing to kernicterus are identified early.

Keywords: neurotoxicity; neonatal jaundice; encephalopathy

1. INTRODUÇÃO

A icterícia é uma condição neonatal comum que atinge, pelo menos, 60% dos recém-nascidos (RN) a termo e 80% dos pré-termo, nos primeiros dias de vida (Ebbesen et al.,2020). Nos neonatos, a icterícia é uma condição decorrente de uma maior carga de bilirrubina indireta ao hepatócito e redução do clearance hepático e entérico da bilirrubina. Sua manifestação clínica se caracteriza por uma coloração amarelada da pele, com padrão de acometimento crânio-caudal  (DE FREITAS et al.,2022).

A icterícia torna-se visível quando o nível da bilirrubina não-conjugada, ou indireta, atinge níveis superiores a 5 mg/dl. Os valores de bilirrubina podem-se associar às Zonas de Kramer, de modo que a icterícia de cabeça e pescoço (6mg/dL) é considerada zona 1;  a icterícia até o umbigo (9mg/dL) significa zona 2; pele de coloração amarelada até os joelhos (12mg/dL) indica zona 3; icterícia até os tornozelos e/ou antebraço (15mg/dL) sugere zona 4 e icterícia até região plantar e palmar (>15mg/dL) classifica-se como zona 5 (DE SOUZA ALMEIDA et al.,2017).

As causas da icterícia são amplamente estudadas na atualidade, envolvendo aspectos fisiológicos e patológicos. A icterícia fisiológica é uma condição comum, benigna e autolimitada. Seu início ocorre geralmente entre 24 e 36 horas de vida, atingindo o pico entre o terceiro e o quinto dia nos recém-nascidos a termo, e entre o quinto e o sétimo dia nos recém-nascidos pré-termo. Desaparece espontaneamente entre o sétimo e o décimo dia nos recém-nascidos a termo, e até o décimo quarto dia nos recém-nascidos pré-termo (CARVALHO et al.,2020).

A icterícia fisiológica pode ocorrer por diversos fatores, sendo os principais mecanismos: aumento da produção de bilirrubina, imaturidade hepática e maior absorção intestinal por aumento da circulação êntero-hepática. Por outro lado, a icterícia patológica pode decorrer de dois mecanismos distintos, sendo classificada como hemolítica e não hemolítica. No que concerne às causas não hemolíticas, tem-se, por exemplo, a atresia de vias biliares, que cursa com colestase e acúmulo de bilirrubina direta, o que suscita a necessidade de abordagem cirúrgica para correção. Adicionalmente, no que diz respeito às causas hemolíticas, a relação mais comum é a de incompatibilidade Rh ou ABO, de modo que os anticorpos maternos reagem contra os antígenos do sangue fetal, causando hemólise (HANSEN, 2021)

Nesse contexto, pacientes com hiperbilirrubinemia podem desenvolver encefalopatia em virtude da neurotoxicidade da bilirrubina, especialmente nos gânglios da base (ANDRADE et al., 2022). Por isso, a análise de fatores preditores de risco de acometimento de sistema nervoso central em recém-nascidos com icterícia é fundamental. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é identificar fatores preditores de neurotoxicidade na icterícia neonatal.

 2. METODOLOGIA

2.1 PROTOCOLO E REGISTRO

De início, o presente estudo constitui uma revisão integrativa de literatura, tendo sido produzido segundo as diretrizes estabelecidas na declaração PRISMA 2020 (PAGE et al, 2020). Nesse contexto, o primeiro passo na construção desta revisão foi a definição da pergunta de pesquisa, a saber: que fatores estão associados com a incidência de encefalopatia em recém-nascidos com icterícia neonatal?

2.2 FONTE DE DADOS

Em seguida, procedeu-se à escolha da fonte de dados que seria utilizada para selecionar os artigos pertinentes a esta revisão. Nesse sentido, definiu-se a plataforma MEDLINE como fonte de dados e informação, de modo que a pesquisa foi realizada neste banco de dados no dia 19 de fevereiro de 2023.

2.3 PESQUISA NA BASE DE DADOS

Quanto à pesquisa na base de dados, utilizou-se as palavras-chave neurotoxicidade, icterícia neonatal e encefalopatia, com a restrição de que os artigos tivessem sido publicados nos últimos 10 anos. Além disso, foram excluídos estudos experimentais em animais, artigos incompletos e estudos que não tinham relação com a pergunta de pesquisa após avaliação por texto completo.

Desse modo, a pesquisa, que encontrou 446 artigos, foi realizada da seguinte forma:

Pubmed/MEDLINE: (neurotoxicidade) AND (encefalopatia) AND (icterícia neonatal) AND (year_cluster:[2014 TO 2024])

2.4 CRITÉRIOS DE SELEÇÃO

Quanto ao processo de seleção, os artigos foram inicialmente avaliados por título e resumo, de modo que aqueles sem correlação com a pergunta de pesquisa foram excluídos. Posteriormente, os artigos que permaneciam selecionáveis foram avaliados por texto completo, de modo que cada estudo foi analisado por pelo menos dois autores. Nesse momento, foram excluídos artigos sobre os quais não era possível identificar o texto completo e estudos com graves conflitos de interesse, de modo que subsistiram ao escrutínio e foram selecionados seis estudos.

2.5 SUMARIZAÇÃO DOS RESULTADOS

Quanto às medidas de sumarização, os seis estudos foram relatados com foco na metodologia, objetivo e resultados, de modo que uma tabela foi criada com informações relevantes acerca dos estudos incluídos nesta revisão.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Quadro 1: Resultados

Título do ArtigoAno de PublicaçãoObjetivoResultados
Neonatal Jaundice in Preterm Infants with Bilirubin Encephalopathy.2021Avaliar os níveis de bilirrubina em recém-nascidos em tratamento para encefalopatia bilirrubínicaObtivemos dados clínicos de 75 pacientes com encefalopatia bilirrubínica entre 2002 e 2016. O nível médio máximo de bilirrubina total foi de 12,6 miligramas por decilitro (215 micromoles por litro), e a idade média na obtenção máxima foi de 19,7 dias após o nascimento. O nível de albumina foi inferior a 2,5 gramas por decilitro em 44 pacientes, e o nível máximo de bilirrubina direta foi de pelo menos 2 miligramas por decilitro (34,2 micromoles por litro) em 20 pacientes. A razão média de bilirrubina/albumina (B/A) máxima foi de 3,8 (razão molar de 0,475), e a idade média na obtenção máxima foi de 18,6 dias. O nível médio máximo de bilirrubina não conjugada foi de 0,67 microgramas por decilitro (11,5 nanomoles por litro). A duração mediana da fototerapia foi de 6 dias, e o dia mediano da última sessão foi o 12º. O nível máximo de bilirrubina total ocorreu após o último dia de fototerapia em 30 dos 61 pacientes disponíveis para comparação.
Newborn Metabolic Profile Associated with Hyperbilirubinemia With and Without Kernicterus.2019Avaliar a influência do perfil metabólico em neonatos com hiperbilirrubinemia com e sem kernicterusVários padrões de metabólitos permaneceram consistentes entre os grupos de idade gestacional para a hiperbilirrubinemia sem kernicterus. O hormônio estimulante da tireoide (TSH) e C-182 estavam diminuídos, enquanto a tirosina e C-3 estavam aumentados em bebês em todos os grupos. O aumento de C-3 também foi observado para kernicterus (OR 3,17; 95% CI 1,18-8,53). Trinta e um metabólitos estavam associados à hiperbilirrubinemia sem kernicterus no conjunto de treinamento. Fenilalanina (OR 1,91; 95% CI 1,85-1,97), ornitina (OR 0,76; 95% 0,74-0,77) e isoleucina + leucina (OR 0,63; 95% CI 0,61-0,65) foram os mais fortemente associados.
Prediction of 3- to 5-Month Outcomes from Signs of Acute Bilirubin Toxicity in Newborn Infants.2017Avaliar a capacidade do escore de disfunção neurológica induzida pela bilirrubina (BIND) em prever deficiência neurológica e auditiva residual.Exames neurológicos e auditivos de acompanhamento foram realizados em 145/202 (72%) dos lactentes sobreviventes. Todos os lactentes com encefalopatia bilirrubínica aguda grave (pontuações BIND 7-9) ou faleceram ou sofreram deficiência residual neurológica e auditiva. Dos 24 casos com encefalopatia moderada (BIND 4-6), 15 (62,5%) resolveram após intervenção agressiva e estavam normais no acompanhamento. Três dos 73 lactentes com encefalopatia leve (pontuações BIND 1-3) mas icterícia grave (TSB variando de 33,5-38 mg/dL; 573-650 µmol/L) tiveram deficiência residual neurológica e/ou auditiva. Uma pontuação BIND ≥4 teve uma especificidade de 87,3% e uma sensibilidade de 97,4% para prever resultados neurológicos ruins (análise da curva característica de operação do receptor). As pontuações BIND tenderam a ser mais altas com hiperbilirrubinemia grave (r2 = 0,54, P <0,005), mas 5/39 (13%) lactentes com TSB ≥36,5 mg/dL (624 µmol/L) tiveram pontuações BIND ≤3 e resultados normais aos 3-5 meses.
Neonatal hyperbilirubinemia and bilirubin neurotoxicity in hospitalized neonates: analysis of the US Database.2022Avaliar a prevalência, a tendência e a neurotoxicidade da hiperbilirrubinemia neonatalO estudo incluiu 57.989.476 lactentes; destes, 53.259.758 (91,8%) eram lactentes a termo e 4.725.178 (8,2%) eram lactentes pré-termo. A neurotoxicidade da bilirrubina diminuiu ao longo dos anos em lactentes a termo (Z = 0,36, p = 0,03) sem alteração em lactentes pré-termo (Z = 42,5, p = 0,12). Os neonatos negros tinham menos probabilidade de serem diagnosticados com hiperbilirrubinemia do que os neonatos brancos (aOR = 0,77, intervalo de confiança de 95% (IC) 0,77-0,78, p < 0,001) e mais propensos a desenvolver neurotoxicidade da bilirrubina do que os neonatos brancos (aOR = 3.0.5, IC 95% 2,13-4,36, p < 0,001). A taxa de neurotoxicidade da bilirrubina na população geral foi de 2,4 por 100.000 nascidos vivos.
High levels of unbound bilirubin are associated with acute bilirubin encephalopathy in post-exchange transfusion neonates.2021Avaliar a relação entre a bilirrubina indireta e a encefalopatia bilirrubínicaA idade média e a idade gestacional dos neonatos foram de 146,5 ± 86,9 horas e 38,6 ± 1,3 semanas [38,7(34,6-41,1) semanas], respectivamente; 52,17% eram do sexo masculino. A análise de regressão logística binária após ajuste para covariáveis mostrou uma associação positiva entre os níveis de bilirrubina não conjugada e o desenvolvimento de encefalopatia bilirrubínica aguda (odds ratio = 1,41, intervalos de confiança de 95% 1,05-1,91, P = < 0,05).
Extreme neonatal hyperbilirubinemia and kernicterus spectrum disorder in Denmark during the years 2000-2015.2020Avaliar a associação entre hiperbilirrubinemia e encefalopatia, com foco na incidência e etiologiaNós incluímos 408 lactentes. A incidência de hiperbilirrubinemia neonatal extrema entre os lactentes com idade gestacional ≥35 semanas foi de 42/100.000 durante o período do estudo, com uma incidência aparentemente decrescente entre 2005 e 2015. Doze dos 408 lactentes desenvolveram Síndrome do Desconforto Respiratório Neonatal (SDRN), (incidência de 1,2/100.000). A doença isohemolítica ABO foi a etiologia explicativa mais comum.
Fonte: autores

A icterícia neonatal é uma síndrome clínica de alta prevalência, identificada especialmente pela alteração na coloração da pele dos neonatos. Estima-se que entre 60 e 80% dos recém-nascidos irão desenvolver icterícia neonatal, mas a maioria dos casos é fisiológica e não apresenta risco à saúde do bebê. Apesar disso, alguns sinais de alerta são importantes na suspeita de uma causa subjacente relacionada à icterícia, a exemplo da classificação de Kramer, segundo a qual recém nascidos com icterícia atingindo os joelhos tem um nível de bilirrubinas estimado de 12mg/dL, o que indica possível origem patológica. Além disso, a icterícia fisiológica costuma ter origem tardia, geralmente após as primeiras 24 horas de vida, além de não durar mais de 14 dias, com predomínio de bilirrubina indireta associado a quatro mecanismos principais: a policitemia do recém nascido em resposta à diferença de saturação no ambiente intrauterino em comparação com o ambiente extrauterino; a vida média reduzida das hemácias, gerando bilirrubina indireta como subproduto da degradação Heme; a deficiência de glicuronil-transferase, tornando o processo de conjugação da bilirrubina insuficiente e mantendo uma fração indireta maior ou o aumento da beta-glicuronidase, que reabsorve a bilirrubina que seria eliminada nas fezes em virtude do trânsito intestinal ainda lento do recém nascido. No que diz respeito à icterícia patológica, esta costuma ser de início precoce (nas primeiras 24 horas de vida) e o aumento da bilirrubina tende a ser acelerado, caracterizado como mais de 0,5mg/kg/h. Além disso, pode persistir por mais de 14 dias e exibe uma classificação de zona de Kramer maior que III, ou seja, a icterícia se estende pelo menos até os joelhos. Quanto ao exame físico, pode-se observar palidez e petéquias, mais tipicamente nas icterícias patológicas de etiologia hemolítica, podendo ser incompatibilidade ABO ou Rh, esferocitose, deficiência de G6PD ou alguns tipos de talassemia. Ainda no que diz respeito ao exame, pode haver edema ou hepatoesplenomegalia em um contexto de predomínio da bilirrubina direta, quando deve-se suspeitar de atresia de vias biliares como a causa colestática mais comum (BOMFIM et al, 2021).

Na evolução do paciente com icterícia neonatal, é importante avaliar o estado neurológico do recém-nascido, na medida em que a bilirrubina indireta pode ultrapassar a barreira hematoencefálica e causar efeitos neurotóxicos ao depositar-se especialmente nos gânglios da base, no sistema nervoso central. O quadro clínico desses pacientes que evoluem com encefalopatia bilirrubínica inicia-se com uma hipotonia generalizada, em virtude do dano neurológico incipiente, mas é seguida por uma hipertonia reflexa, de modo que a criança pode apresentar-se caracteristicamente em posição de opistótono. Por último, na terceira fase da encefalopatia, a criança volta a apresentar-se hipotônica, o que indica fase avançada da enfermidade e predispõe o recém-nascido ao risco de retardo motor, disartria, atetose e perda auditiva neurossensorial. Quanto à duração, é bem estabelecido que a icterícia neonatal fisiológica pode durar até 14 dias, de modo que uma duração maior deve suscitar investigação de outras causas. Nesse contexto, observou-se na literatura que recém-nascidos com encefalopatia bilirrubínica tiveram níveis máximos de bilirrubina total aos 19,7 dias de vida, o que indica icterícia patológica. Além disso, esses neonatos demonstraram níveis médios de bilirrubina de 12,6 mg/dL, o que ultrapassa o limite fisiológico de 12mg/dL e sugere causa subjacente. Nesse sentido, o tratamento com fototerapia pode não ser suficiente para a completa remissão do quadro, de modo que 30 dos 61 pacientes tratados tiveram aumento da bilirrubina total mesmo após a fototerapia (OKUMURA et al, 2021).

Avaliou-se também a relação entre alguns metabólitos e a presença de icterícia neonatal com ou sem kernicterus. Nesse sentido, a consistência dos padrões de metabólitos entre diferentes grupos de idade gestacional sugere que a presença desses compostos tem como principal variável de determinação os níveis de bilirrubina. A diminuição dos níveis de hormônio estimulante da tireoide (TSH) e C-182, associados ao aumento de tirosina e do C-3, presumivelmente decorre de alterações no metabolismo energético e na homeostase lipídica relacionadas à resposta hepática à hiperbilirrubinemia. Nesse contexto, o TSH desempenha um papel fundamental na regulação da atividade metabólica em diversos tecidos, incluindo o fígado, onde ocorre o metabolismo da bilirrubina. A elevação de tirosina e C-3 pode indicar uma maior atividade metabólica nesses processos, possivelmente como uma tentativa do organismo de eliminar o excesso de bilirrubina. No que concerne à associação entre o aumento de C-3 e o desenvolvimento de kernicterus, esta provavelmente relaciona-se com a neurotoxicidade da bilirrubina não conjugada. Sabe-se que a bilirrubina, especialmente a fração indireta, pode ultrapassar a barreira hematoencefálica, causando efeitos neurotóxicos nos núcleos da base (DING et al, 2021).

A presença elevada de C-3 pode refletir processos inflamatórios ou de estresse oxidativo associados à lesão neuronal, potencialmente exacerbando os efeitos nocivos da bilirrubina no sistema nervoso central. Ademais, quanto aos metabólitos específicos associados à hiperbilirrubinemia sem kernicterus, como a fenilalanina, ornitina e a combinação de isoleucina + leucina, suas funções metabólicas podem explicar esse achado. Por exemplo, a fenilalanina está envolvida na síntese de neurotransmissores como a dopamina, enquanto a ornitina desempenha papéis importantes no ciclo da ureia e no metabolismo dos aminoácidos. Desse modo, a presença desses compostos pode exercer atividade neuroprotetora, impedindo a evolução da hiperbilirrubinemia para encefalopatia (MCCARTHY et al, 2019).

A literatura científica também destaca a importância da avaliação neurológica e auditiva de acompanhamento em lactentes com encefalopatia bilirrubínica, dada a potencial gravidade das complicações e sequelas associadas à icterícia neonatal. Observou-se que todos os lactentes que evoluíram para encefalopatia bilirrubínica aguda grave tiveram desfecho desfavorável, incluindo morte e sequelas neurológicas graves. Isso sugere fortemente que a gravidade inicial da encefalopatia pode ser um indicador significativo de prognóstico a longo prazo, ressaltando a necessidade de intervenções precoces e eficazes em casos graves. Alternativamente, verificou-se que a maioria dos casos de encefalopatia moderada teve resolução após intervenção agressiva, produzindo resultados normais durante o acompanhamento. Além disso, a observação de deficiência neurológica e/ou auditiva residual em lactentes com encefalopatia leve, mas icterícia grave, ressalta que o papel dos níveis de bilirrubina pode ser mais fundamental que o grau encefalopatia nas sequelas de longo prazo. Outros fatores além dos níveis de bilirrubina também podem influenciar a progressão e a gravidade da encefalopatia bilirrubínica, como possíveis fatores genéticos, resposta inflamatória ou predisposição individual. A alta especificidade e sensibilidade da pontuação BIND ≥4 para prever desfechos neurológicos adversos sublinha sua utilidade como ferramenta de triagem em lactentes com hiperbilirrubinemia. A relação entre pontuações BIND mais elevadas e hiperbilirrubinemia grave sugere uma possível associação entre a gravidade da icterícia e a gravidade da encefalopatia. No entanto, a presença de lactentes com níveis elevados de bilirrubina e pontuações BIND baixas indica que outros fatores, como resposta terapêutica ou susceptibilidade individual, podem modular a expressão clínica da encefalopatia bilirrubínica (EL HOUCHI et al, 2017).

4. CONCLUSÃO

A análise dos estudos revisados destaca a icterícia neonatal como uma condição comum, benigna na maioria dos casos, mas que pode indicar problemas subjacentes sérios. A avaliação cuidadosa do recém-nascido é de suma importância, especialmente para identificar sinais de icterícia patológica, que podem ter origem precoce e persistir por mais de quatorze dias.

A evolução da icterícia para encefalopatia bilirrubínica pode ter consequências graves, incluindo sequelas neurológicas e auditivas permanentes ou até mesmo morte. A relação entre os níveis de bilirrubina e o desenvolvimento de kernicterus é bem estabelecida, evidenciando a importância da monitorização e tratamento adequados. Nesse sentido, evidenciou-se que a utilização da pontuação BIND ≥ 4 constitui uma ferramenta útil na previsão de desfechos adversos, apesar de outros fatores individuais influenciarem na avaliação final.

Além disso, aspectos metabólicos como a concentração de fenilalanina, ornitina e a combinação isoleucina/leucina foram associados à ocorrência de hiperbilirrubinemia sem kernicterus, indicando que esses aminoácidos tem papel importante na modulação da resposta neuroinflamatória causada pela bilirrubina não conjugada. Enquanto isso, o aumento de C-3 esteve associado ao desenvolvimento de encefalopatia bilirrubínica, o que presumivelmente tem relação com a resposta inflamatória.

Portanto, a abordagem otimizada do paciente com icterícia neonatal deve incluir avaliação neurológica e auditiva, pesquisa de metabólitos e aplicação da pontuação BIND, de modo que os pacientes com maior risco de evolução para kernicterus sejam identificados precocemente.

5. REFERÊNCIAS

ANDRADE, Anny Suelen dos Santos. Uso da fototerapia em recém-nascidos de uma unidade neonatal: análise da implantação. 2022. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

BOMFIM, Vitoria Vilas Boas da Silva et al. Repercussões clínicas da icterícia neonatal no prematuro. Research, society and development. São Paulo. Vol. 10, no. 9 (2021), e4010917580, 8 p., 2021.

CARVALHO, Rafaela Loiola de; LAVOR, Maria Francielze Holanda. Icterícia neonatal e seus fatores perinatais associados: perfil dos recém-nascidos internados em uma unidade de terapia intensiva neonatal de maternidade de referência terciária no município de Fortaleza–Ceará, 2020.

DE FREITAS, Sarah Maria Soares et al. Perfil epidemiológico da icterícia neonatal no Estado de Pernambuco. Research, Society and Development, v. 11, n. 15, p. e67111536794-e67111536794, 2022.

DE SOUZA ALMEIDA, Tarciana Mendonça (Ed.). Manual de condutas do IMIP emergências pediátricas. Simplíssimo, 2017.

DING, Yiyi et al. High levels of unbound bilirubin are associated with acute bilirubin encephalopathy in post-exchange transfusion neonates. Italian Journal of Pediatrics, v. 47, p. 1-8, 2021.

DONNEBORG, Mette Line et al. Extreme neonatal hyperbilirubinemia and kernicterus spectrum disorder in Denmark during the years 2000–2015. Journal of Perinatology, v. 40, n. 2, p. 194-202, 2020.

EBBESEN F., Vandborg P.K. & Donneborg M.L. (2020). The effectiveness of phototherapy using blue-green light for neonatal hyperbilirubinemia – Danish clinical trials. Seminars In Perinatology. 45 (1): 1-6.

EL HOUCHI, Salma Z. et al. Prediction of 3-to 5-month outcomes from signs of acute bilirubin toxicity in newborn infants. The Journal of pediatrics, v. 183, p. 51-55. e1, 2017.

HANSEN, Thor Willy Ruud. The epidemiology of neonatal jaundice. Pediatric Medicine, v. 5, n. 18, p. 18-18, 2021.

MCCARTHY, Molly E. et al. Newborn metabolic profile associated with hyperbilirubinemia with and without kernicterus. Clinical and translational science, v. 12, n. 1, p. 28-38, 2019.

OKUMURA, Akihisa et al. Neonatal jaundice in preterm infants with bilirubin encephalopathy. Neonatology, v. 118, n. 3, p. 301-309, 2021.

QATTEA, Ibrahim et al. Neonatal hyperbilirubinemia and bilirubin neurotoxicity in hospitalized neonates: analysis of the US Database. Pediatric Research, v. 91, n. 7, p. 1662-1668, 2022.


1Graduanda em medicina pelo Centro Universitário Santa Maria (UNIFSM) Lyviagss@hotmail.com

2Graduanda em medicina pelo Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS)leticiassaraiva1@gmail.com

3Graduanda em medicina pelo Centro Universitário Estácio do Ceará / IDOMED chslannamoraes77@gmail.com

4Graduanda em medicina pelo Centro Universitário Santa Maria (UNIFSM ) gabrielaricarte00@gmail.com

5Graduanda em medicina pelo Centro Universitário Estácio do Ceará / IDOMED bnkailane@gmail.com

6Graduanda em medicina pelo Centro Universitário Estácio do Ceará / IDOMED kathtemoteo@gmail.com

7Graduanda em medicina pelo Centro Universitário Santa Maria (UNIFSM) mariafernandinhaab@gmail.com

8Graduando em medicina pelo Centro Universitário Santa Maria (UNIFSM) rafaelpereiraduarte2330@gmail.com

9Graduanda em medicina pelo Centro Universitário Santa Maria (UNIFSM) tamilamirielly.vf@gmail.com

10Graduanda em medicina pelo Centro Universitário Estácio do Ceará / IDOMED yasmin.pf23@gmail.com