A SAÚDE DO TRABALHADOR NA PERSPECTIVA DA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10645507


Sheila Fernanda Madeira1
Willians Cassiano Longen2


RESUMO

Introdução: A Atenção Primária em Saúde (APS) é responsável por abranger as necessidades em saúde da população, além de ser a porta de acesso dos indivíduos ao grande Sistema de Saúde. É de extrema importância a atenção e inserção da Saúde do Trabalhador (ST) nesse sistema. Metodologia: Trata-se de uma revisão bibliográfica, com pesquisa do tema específico, nas bases de dados Scielo, Elsevier e Pubmed, nos anos de 2017 a 2023. Foram encontrados 20 artigos com temática relacionada para leitura e considerados 14 com convergência temática específica para análise. Discussão: O trabalho é um importante determinante do processo saúde-doença. Sabendo disto, a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT) reafirmou a inserção da ST na APS, reforçando as ações de Vigilância em Saúde para garantir essa inserção. O apoio matricial é visto como metodologia essencial para o compartilhamento de saberes e para suporte técnico das equipes da APS, com isso, a Educação Permanente em Saúde (EPS) é fundamental para essa operacionalização. Apesar disto, a ST ainda encontra muitas dificuldades e desafios para sua efetiva implantação na APS. Considerações Finais: A APS tem se mostrado essencial na ST, porém é necessário a implementação reforçada das diretrizes descritas pela PNSTT. Para isso, os CEREST precisam redefinir e assumir seu papel de suporte técnico especializado. Por fim, a EPS necessita ser incorporada na formação dos profissionais de saúde para que seja possível reconhecer o usuário do SUS como trabalhador, estando assim, atentos para as possíveis implicações para a saúde deste indivíduo.

Palavras-chave: Atenção Básica em Saúde; Vigilância; Atenção Primária; Saúde Do Trabalhador.

ABSTRACT

Introduction: Primary Health Care (PHC) is responsible for covering the health needs of the population, in addition to being the gateway for individuals to access the large Health System. Attention and insertion of Occupational Health (ST) is extremely important in that system. Methodology: This is a bibliographic review, with research on the specific topic, in the Scielo, Elsevier and Pubmed databases, in the years 2017 to 2023. Twenty articles were found for reading and considered 14 for analysis. Discussion: Work is an important determinant of the health-disease process. Knowing this, the National Health Policy for Workers (PNSTT) reaffirmed the insertion of ST in PHC, reinforcing the actions of Health Surveillance to guarantee this insertion. Matrix support is seen as an essential methodology for sharing knowledge and for technical support of PHC teams, with this, Permanent Education in Health (EPS) is essential for this operationalization. Despite this, ST still faces many difficulties and challenges for its effective implementation in PHC. Final Considerations: PHC has been shown to be essential in TS, however, reinforced implementation of the guidelines described by PNSTT is necessary. For that, CEREST need to redefine and assume its role of specialized technical support. Finally, PHE needs to be incorporated into the training of health professionals so that it is possible to recognize the SUS user as a worker, thus being aware of the possible implications for the health of this individual.

Keywords: Primary Health Care; Surveillance; Primary attention; Worker’s health.

Introdução

A Atenção Primária em Saúde (APS), de modo geral, é considerada a porta de entrada dos indivíduos ao Sistema de Saúde (PAIXÃO et al., 2019; FONSECA e DIAS, 2019). Ela abrange as necessidades em saúde da população, através de critérios de frequência, risco e vulnerabilidade de cada local, considerando de modo essencial a acessibilidade fácil dos indivíduos a esse sistema (DANTAS e al., 2019). A equipe multiprofissional e a organização por territórios ampliam a formação de vínculo com a população (MENEZES et al., 2017).

Por essas características é que a APS tem papel primordial na inserção da saúde do trabalhador na rede do SUS, tanto no sentido de revelar o adoecimento relacionado ao trabalho, quanto para promover o cuidado daqueles que estão inseridos no mercado informal, no trabalho precarizado e também aos que se encontram desempregados, visto que essas situações têm crescido consideravelmente nos últimos anos (LAZARINO et al., 2019). Este imenso grupo de trabalhadores têm acesso somente a essas unidades de saúde e, portanto, são elas que podem romper com a invisibilidade desta precarização e destes trabalhadores, alcançando onde os órgãos de fiscalização não conseguem chegar (GARBIN e PINTOR, 2019).

O intuito desse artigo de revisão é investigar a realidade sobre a atuação da Atenção Primária em Saúde, especificamente na Saúde do Trabalhador, buscando analisar os pontos fortes e limites, a fim de conquistar dos leitores um olhar atento à saúde desse público trabalhista, que diariamente enfrenta embates entre a relação saúde-trabalho-doença. 

Metodologia

Essa revisão contou com pesquisas na base de dados: Scielo, Elsevier e Pubmed, entre os anos de 2017 a 2023, utilizando para a busca palavras como: atenção básica em saúde, vigilância, atenção primária e saúde do trabalhador. Foram separados 20 artigos para leitura inicialmente, sendo que após análise foram recrutados 14 artigos selecionados com convergência específica com a temática proposta para compor esta revisão. 

Discussão

O cuidado oferecido aos trabalhadores pelas APS possui condições de ser resolutivo e de qualidade, para tal não pode ser desagregado do entendimento que o trabalho é um importante determinante do processo saúde-doença, com as especificidades de cada território (AMORIM et al., 2017; COSSI et al., 2017; FONSECA e DIAS, 2019). 

O campo da Saúde do Trabalhador se objetiva em conhecer e intervir, quando necessário, nas condições de trabalho do indivíduo e na relação entre saúde-doença (FERNANDES, 2017). Cada ambiente laboral possui sua especificidade, desta forma é necessário ter conhecimento que a relação de saúde-doença deve ser analisada e investigada individualmente, de acordo com o local e a realidade vivida de cada trabalhador, para que assim a saúde destes possa ser priorizada (CASTRO, 2019).

Todo este cenário da estrutura do cuidado ao trabalhador foi reforçado em 2012, com a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), que reafirmou a inserção da ST na APS, pelo seu modelo de atenção e constante incremento de estratégias.  A política ainda apontou a necessidade de integração entre os setores de Vigilância em Saúde com a Atenção Básica como modo de garantir a integralidade do cuidado (COSSI et al., 2017; SILVA e JÚNIOR, 2016).

Embora a integração das ações de Vigilância em Saúde na APS seja reconhecida como condição obrigatória para a integralidade do cuidado, a maior parte do trabalho das equipes ainda se concentra nas ações assistenciais (AMORIM et al., 2017).  Os resultados do estudo realizado por Cossi et al., (2017) corroboram tal situação ao mostrarem que a visão dos enfermeiros da APS na ST é insipiente e não compreende a Vigilância em Saúde para o planejamento das ações.

Na tentativa de avançar e superar a supremacia das ações de assistência em detrimento com as de vigilância, de ampliar o olhar das equipes da APS para o trabalho como determinante no processo saúde-doença e do reconhecimento do usuário como também um trabalhador, a PNSTT reconhece o apoio matricial como metodologia importante de compartilhamento de saberes para o suporte técnico especializado para as equipes da APS. A referida política ainda vai além quando reitera que os CERESTs devem ser os protagonistas do apoio matricial, por constituir lócus privilegiado de irradiação da ST (MENEZES et al., 2017; AMORIM et al., 2017; FERNANDES, 2017; NAVARRO et al., 2020; GARBIN e PINTOR, 2019).

Dois estudos recentes, de Menezes et al., (2017) e de Navarro et al., (2020), corroboram o papel de destaque desta metodologia desempenhada pelos CEREST, demonstrando que o matriciamento possibilitou intervenções mais resolutivas, qualificando o cuidado dos trabalhadores na APS. Evidenciaram também o potencial do método para o aprimoramento da comunicação entre o serviço especializado com aqueles “da ponta”, com o auxílio na resolução dos problemas e do direcionamento das ações em saúde do trabalhador, inserindo neste rol as de vigilância e de promoção da saúde.

Uma ferramenta fundamental para a operacionalização do apoio matricial e que está prevista na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), é o planejamento das ações de saúde voltadas para os trabalhadores. Inicia pelo diagnóstico situacional de saúde no território, compreendendo além do perfil demográfico, epidemiológico e ocupacional dos trabalhadores, a identificação e análise do perfil produtivo (FONSECA e DIAS, 2019).

Para tanto, as equipes da APS necessitam, além do apoio matricial, o apoio institucional, articulação intersetorial e efetiva participação da comunidade para o fortalecimento das ações de ST e do sistema de saúde (AMORIM et al., 2017; FERNANDES, 2017; SILVA e JÚNIOR, 2016). 

Neste contexto, a Educação Permanente em Saúde (EPS) tem papel fundamental na operacionalização das equipes de APS para a intervenção em ST (FONSECA e DIAS, 2019). A PNAB explica que a EPS compreende um processo pedagógico que inicia com a aquisição/atualização de conhecimentos e habilidades, onde o aprendizado é construído a partir dos problemas e desafios do dia a dia, no enfrentamento do cotidiano dos processos de trabalho (AMORIM et al., 2017).

A EPS tem como objetivo a inserção de ferramentas, espaços e temas que produzam a autoanálise, autogestão, comprometimento e a efetiva mudança de pressupostos. Pretende levar à emancipação dos profissionais de saúde, tornando-os protagonistas de seu caminho, gerando reflexões críticas para a resolução das questões emergentes do cotidiano do trabalho (LAZARINO et al., 2019; GARBIN e PINTOR, 2019; FONSECA e DIAS, 2019).

Como resultado do estudo de Garbin e Pintor (2019), a educação permanente acelerou e potencializou as articulações intersetoriais. Já Amorin et al., (2017), encontraram em sua pesquisa que apenas 24% dos profissionais entrevistados na atenção básica do município de João Pessoa relataram já terem participado de qualificações provenientes do processo de educação permanente.

Embora tenham ocorrido avanços consideráveis na ST desde sua emergência na Constituição Federal de 1988 até a atualidade, há também diversas dificuldades, desde aquelas gerais que abrangem toda a rede do SUS, como as que envolvem a complexidade da ST (AMORIM et al., 2017).

A rotatividade das equipes, com relações celetistas, em particular dos médicos e psicólogos, e o frágil vínculo com o movimento sindical são reconhecidas como as maiores dificuldades para o desenvolvimento de EPS na APS. Além disso, as poucas ações de vigilância, a fraca articulação intrassetorial, inexistência de pactos intersetoriais, baixa comunicação em ST entre os municípios da região, dentre outros aspectos, contribuem ainda mais para essa carência, já existente, em saúde (FERNANDES, 2017; LAZARINO et al., 2019).

Outros pontos a serem superados são a centralidade dos planejamentos e a falta de suporte técnico institucional, técnico e pedagógico especializado às equipes da APS, já que as experiências com apoio matricial se mostraram positivas (LAZARINO et al., 2019; NAVARRO et al., 2020).

É necessário demonstrar o apoio matricial como forma de pulverizar, para toda rede do SUS, o entendimento do trabalho na determinação do processo saúde-doença, de qualificar e ampliar a resolutividade das ações já desenvolvidas e de consolidar a integralidade do cuidado aos trabalhadores (AMORIM et al., 2017; MENEZES et al., 2017; NAVARRO et al., 2020).

Uma dificuldade importante ligada ao apoio matricial é a frágil inserção dos CEREST neste campo. Amorin (2017) demonstrou que apenas 22% dos participantes do estudo (profissionais da APS) mencionaram o CEREST da sua região como apoiador para as ações em ST. Neste sentido Navarro et al. (2020) e Fonseca e Dias, (2019) também apontam para a deficiente articulação destes centros com a rede de saúde do SUS, com atuações não sistemáticas e não sustentáveis.

Por outro lado, quando os matriciadores (profissionais do CEREST) foram indagados, referiram que não se sentem preparados para esta função, já que a maioria possui formação/graduação que tem como base a assistência de forma individual. Este fato fortalece ainda mais a EPS também aos profissionais dos CEREST (NAVARRO et al., 2020).

Os estudos que realizaram entrevistas e oficinas com profissionais da APS evidenciaram o raso conhecimento dos participantes acerca da PNSTT e sua abrangência e do trabalho como determinante do processo saúde-doença. O reconhecimento das situações de risco advindo dos processos produtivos, da mesma forma, mostrou-se incipiente (FONSECA e DIAS, 2019; GARBIN e PINTOR, 2019; NAVARRO et al., 2020; LAZARINO et al., 2019; AMORIM et al., 2017).

É fundamental que os gestores públicos proporcionem as condições necessárias para melhorar os ambientes e processos de trabalho dos trabalhadores do SUS, para que exerçam seu papel de cuidadores da saúde da população. Tais aspectos têm influência direta na qualidade dos serviços e podem comprometer a efetividade de todo o sistema (FONSECA e DIAS, 2019).

Considerações Finais

A APS tem se mostrado cada vez mais como essencial para o cuidado integral à ST, principalmente pela capilaridade dos serviços e pela proximidade de onde as pessoas vivem e trabalham. Mas a implementação efetiva das diretrizes e ações da PNSTT precisa ser reforçada, especialmente com o grande contingente de trabalhadores no mercado informal.

Certamente uma ferramenta que tem contribuído para este fim é o apoio matricial às equipes da APS. Através dele as ações de ST podem ser sistematizadas, com ênfase na vigilância, fazendo com que cada vez mais o trabalho seja compreendido como determinante no processo saúde-doença. Para isto, os CEREST precisam redefinir e assumir definitivamente seu papel de referência técnica especializada. E, por fim, a EPS necessita ser incorporada no processo de formação dos profissionais de saúde, proporcionando-lhes cada vez mais postura ativa, numa perspectiva humanista, com condições de reconhecer o usuário do SUS como um trabalhador e todas as implicações que isso resulta.

Referências

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1 Psicóloga. Mestre em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva-PPGSCol da Universidade do Extremo Sul Catarinense-UNESC.
2 Fisioterapeuta. Doutor em Ciências da Saúde. Professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva-PPGSCol da Universidade do Extremo Sul Catarinense-UNESC.