HISTÓRICO DO DIREITO AO ACESSO À RECONSTRUÇÃO MAMÁRIA NO BRASIL

THE HISTORY OF THE ACCESS TO BREAST RECONSTRUCTION IN BRAZIL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10632944


Ana Luiza Telles Leal1


RESUMO

Neste artigo, discute-se o histórico do acesso à reconstrução de mama após mastectomia no Brasil. O tratamento do câncer de mama apresentou importante evolução nos últimos 50 anos, e além da melhora do prognóstico da doença, houve também uma atenção à importância do acesso à cirurgia reparadora após o tratamento de câncer de mama, que pode gerar mutilação e dificultar a aceitação da doença pela paciente. Com o surgimento de leis que garantem o acesso tanto no Sistema Único de Saúde quanto via planos de saúde, as pacientes portadoras de câncer de mama com indicação de mastectomia e sem contra-indicações à reconstrução mamária possuem acesso à essa cirurgia no Brasil, diminuindo o impacto negativo da doença na imagem corporal feminina e as consequências psicossociais relativas à mastectomia. No entanto, ainda há alguns desafios no alcance dessas cirurgias, uma vez que, para serem realizadas, necessitam de um conjunto de variáveis, como equipe de mastologistas e cirurgiões plásticos capacitados, além de acesso a materiais como implantes e expansores.

Descritores: Mama, Câncer de Mama, Procedimentos Cirúrgicos Reconstrutivos, Mamoplastia

ABSTRACT

In this article, we discuss the history of the access to breast reconstruction after mastectomy in Brazil. Breast cancer treatment has shown important evolution over the last 50 years, and in addition to the improvement of the disease’s prognosis, there has also been attention to the importance of reconstructive surgeries after breast cancer treatment, which can lead to mutilation and make difficult acceptance of the disease by the patients. With the emergence of laws that guarantee access both in the Public Health Care System in Brazil and by health insurance plans, patients with breast cancer with indications for mastectomy and without contraindications to breast reconstruction have access to this surgery in Brazil, reducing the negative impact of the disease on female body image and the psychosocial consequences related to mastectomy. However, there are still some challenges in achieving these surgeries, since, to be carried out, they require a set of variables, such as a team of trained mastologists and plastic surgeons, as well as access to materials such as implants and expanders.

Keywords: Breast, Breast Neoplasms, Reconstructive Surgical Procedures, Mammaplasty

INTRODUÇÃO

Em 1894, foi publicado o trabalho de Halsted1, que descreveu a técnica da mastectomia radical, que consiste na retirada de toda a mama, músculos peitorais maior e menor e conteúdo axilar. Esse tratamento aumentou as taxas de sobrevida das pacientes com câncer de mama, porém, a deformidade decorrente dessa cirurgia estimulou o surgimento de estudos visando o desenvolvimento de uma técnica cirúrgica menos mutilante, mantendo a mesma eficácia2,3.

Em 1948, Patey descreveu a mastectomia radical modificada, em que o músculo peitoral maior era preservado, técnica alterada por Madden em 1965, com preservação dos músculos peitorais e remoção apenas da mama e conteúdo axilar1.

O surgimento de novos medicamentos, de tratamentos como a radioterapia, e o diagnóstico precoce devido à evolução de técnicas diagnósticas, como a mamografia, possibilitaram procedimentos menos agressivos, em que a mama é preservada e é retirado apenas o tumor com margem de segurança, mantendo-se os mesmos resultados da cirurgia radical4,5.

Atualmente, é possível tratar muitos casos, com a mesma eficácia, somente com a retirada de um segmento de mama e complementação da cirurgia com sessões de radioterapia. Ainda assim, algumas pacientes possuem indicação de mastectomia, que consiste na retirada completa da mama, o que traz prejuízo à compreensão de autoimagem corporal pela mulher e dificuldade de aceitação do tratamento.

Dessa forma, todas as mulheres que passam por cirurgia de câncer de mama são candidatas à reconstrução mamária, conforme dispõe a Lei nº 13.770, de 19 de dezembro de 2018, do Governo Federal6. No entanto,  até a criação dessa Lei, ocorreram ações médicas que evidenciaram a importância desse procedimento, esclarecendo que não se trata apenas de estética, mas sim, de etapa fundamental no tratamento das pacientes acometidas. Posteriormente, obteve-se apoio no poder legislativo, com criação de diversas leis que garantem o direito das mulheres de terem acesso a esse procedimento.

A MAGNITUDE DO CÂNCER DE MAMA NO BRASIL

O câncer de mama é a neoplasia maligna mais comum entre as mulheres brasileiras, à exceção do câncer de pele não melanoma7. Segundo dados do Instituto Nacional de Câncer, em 2023, foram estimados 73.610 novos casos da doença. Trata-se de uma doença heterogênea, com uma ampla gama de possibilidades terapêuticas de acordo com cada caso. Quando descoberta em suas fases iniciais, o tratamento cirúrgico pode ser menos radical. Porém, a doença inicial é assintomática, na maioria dos casos, somente visível nos exames de imagem. Esse fato reforça a importância dos programas de rastreio mamográfico, em que mulheres sem sinais ou sintomas podem ser diagnosticadas em estágios iniciais, em que a chance de cura é muito grande8.

Diante da prevalência elevada e em faixas etárias cada vez mais jovens7,9, o tratamento do câncer de mama apresenta constante evolução, com surgimento crescente de novas drogas para refinamento do tratamento10. Isso permitiu que o tratamento cirúrgico se tornasse menos radical, e muitas mulheres acometidas podem ser adequadamente tratadas com a cirurgia conservadora, em que a mama é preservada, sendo retirado somente o tumor com margem de segurança11. Nas cirurgias conservadoras, o tratamento adjuvante com radioterapia é fundamental12.

Ainda assim, em alguns casos, não se consegue obter o tratamento adequado com a cirurgia conservadora e a mastectomia se faz necessária. A possibilidade de retirada da mama torna ainda mais difícil a aceitação da doença e do tratamento para muitas mulheres. Diante disso, a ciência também evoluiu e diversas técnicas de reconstrução mamária foram desenvolvidas.

A reconstrução de mama pode ser imediata ou tardia. A reconstrução imediata é realizada logo após a mastectomia, na mesma cirurgia. A técnica mais comum envolve a colocação de expansor de tecido ou prótese mamária13. Porém, em caso de lesões mais extensas, com necessidade de grandes excisões de pele, o cirurgião plástico consegue realizar a reconstrução utilizando retalhos da própria paciente14,15.  

A reconstrução de mama traz à mulher a possibilidade de tratar sua doença de forma adequada sem se sentir mutilada, aumentando a aceitação ao tratamento com maior adesão às terapias propostas. Porém, em determinadas situações, a reconstrução imediata é contra indicada, por aumentar o risco cirúrgico de forma injustificável. Por exemplo, no caso de pacientes com comorbidades graves, em que o aumento do tempo cirúrgico necessário para que se realize a reconstrução imediata a torna proibitiva. Além disso, pacientes com diagnóstico de carcinoma inflamatório também não devem realizar a reconstrução imediata, pois há grande risco de complicações pós-operatórias16. Há também mulheres que não desejam a reconstrução imediata e essa vontade deve ser respeitada.

É importante orientar a paciente que a reconstrução de mama também pode ser tardia, em outra cirurgia posterior à mastectomia. A reconstrução tardia pode ser realizada a qualquer momento, desde que haja condições clínicas para tal.

HISTÓRICO DE AÇÕES E LEIS

Apesar da mutilação causada pela mastectomia nas mulheres com indicação dessa cirurgia, o acesso à reconstrução de mama pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é relativamente recente. Essa etapa do tratamento não era considerada importante, e o foco era apenas no tratamento oncológico, sem pensar na reparação dos danos causados por ele. Dessa forma, esse direito era muitas vezes negado à mulher.

Apenas em 1994 o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ) e o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) entraram com pedido para que a cirurgia de reconstrução de mama fosse caracterizada como uma cirurgia estético-reparadora necessária nos casos de câncer de mama, tanto na rede pública como na rede privada. Em 1997, o Conselho Federal de Medicina (CFM) também emitiu uma resolução sobre o direito da mulher de ter a mama reconstruída. Nos seus três artigos, afirma que a reconstrução mamária, os procedimentos na mama contralateral e as reconstruções do complexo aréolo-papilar, são parte integrante do tratamento, e que a indicação e a técnica devem ser definidas pelo cirurgião17.

Em 1999, foi publicada a Lei nº 9.797, a primeira sobre obrigatoriedade da cirurgia plástica reparadora da mama nos casos de mutilação decorrentes do tratamento do câncer no SUS18. Uma nova lei, nº 10.233, de 2001, abrangeu a obrigatoriedade desses procedimentos pelos planos de saúde. Em 2013, a Lei nº 12.802 fez obrigatória a informação e, sempre que possível, a realização da reconstrução da mama no mesmo ato operatório em que é feito o tratamento oncológico, o que é chamado de reconstrução imediata. Em caso de impossibilidade de reconstrução imediata, a paciente tem garantida a realização da cirurgia imediatamente após alcançar as condições clínicas requeridas19. Em 2018, a Lei, nº 13.770, incluiu um novo parágrafo na Lei de 2013, definindo que os procedimentos de simetrização da mama contralateral e de reconstrução do complexo aréolo-mamilar integram a cirurgia plástica reconstrutiva6.

Mais recentemente, em 2023, a portaria nº127 do Ministério da Saúde, de 13 de fevereiro, instituiu a estratégia excepcional de ampliação do acesso à reconstrução mamária em caso de mulheres com diagnóstico de câncer de mama, no âmbito do SUS20.

DESAFIOS DA RECONSTRUÇÃO MAMÁRIA

Apesar de ser um direito estabelecido por Lei, o acesso à reconstrução mamária após tratamento de câncer de mama ainda possui alguns desafios. Um deles é a falta de informação. Muitas mulheres não têm conhecimento desse direito, o que reforça a importância da figura do profissional de saúde nesse momento. Além disso, as cirurgias reconstrutivas são consideradas de alta complexidade, com necessidade de formação de profissionais capacitados para sua realização.

Outra dificuldade, especialmente em locais distantes dos grandes centros, é o provimento de equipamentos e insumos que tornam possíveis os procedimentos reparadores, como próteses e expansores.  

Por fim, a inclusão de novos métodos diagnósticos e terapêuticos levam ao diagnóstico precoce, possibilitando cirurgias conservadoras com mínimo defeito estético. Assim, quanto menor o número de pacientes que necessitem de reparação, mais facilitado será o acesso das pacientes candidatas a esses procedimentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todas as mulheres que passam por cirurgia de câncer de mama são candidatas à reconstrução mamária, uma vez que o tratamento gera algum grau de mutilação. A Lei nº 13.770, de 19 de dezembro de 2018, do Governo Federal, dispõe sobre a cirurgia plástica reconstrutiva da mama em casos de mutilação decorrente de tratamento de câncer6. Em caso de impossibilidade de reconstrução imediata, a paciente será encaminhada para acompanhamento e terá garantida a realização da cirurgia imediatamente após alcançar as condições clínicas requeridas. Assim, as pacientes portadoras de câncer de mama com indicação de mastectomia e sem contra-indicações à reconstrução mamária imediata possuem acesso a essa cirurgia no Brasil, diminuindo o impacto negativo da doença na imagem corporal feminina e as consequências psicossociais relativas à mastectomia.

REFERÊNCIAS

1 Hermann RE, Steiger E. Modified radical mastectomy. Surg Clin North Am. 1978;58(4):746-54.

2 Clough KB, Kroll SS, Audretsch WN. An approuch to the repair of partial mastectomy defects. Plast Reconstr Surg. 1999 Aug.; 104(2):409-19.

3 Madden JL. Modified radical mastectomy. Surg Gynecol Obstet. 1965;121:1221-30.

4 Bonadonna G, Veronesi U, Brambilla C, Ferrari L, Luini A, Greco M, et al.. Primary chemotherapy to avoid mastectomy in tumors with diameters of three centimeters or more. J Nat Cancer Inst. 1990;82(19):1539-45

5 Veronesi U, Saccozzi R, Del Vecchio M, Banfi A, Clemente C, De Lena M, et al. Comparing radical mastectomy with quadrantectomy, axillary dissection and radiotherapy in pacient with small cancer of breast. N Engl J Med. 1981;305:6-11.

6 Diário Oficial da União, de 20/12/2018 [acesso em 2022 ago 8]. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jspjornal=515&pagina=1&data=20/12/2018&totalArquivos=243 .

7 Brasil, Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer (Inca). Câncer de mama: vamos falar sobre isso? / Instituto Nacional de Câncer. 8. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: INCA, 2023.

8 Frasson A, Novita G, Brenelli F, Luzzatto F, Berrettino Júnior A, Cavalcante FP, et al., editores. Doenças da mama: guia de bolso baseado em evidências. 3ª edição. São Paulo Atheneu; 2022.

9 Brasil, Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer (Inca). Câncer de mama: vamos falar sobre isso? / Instituto Nacional de Câncer. 8. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: INCA, 2023.

10 Brasil, Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer (Inca). Estimativa 2023: incidência de câncer no Brasil / Instituto Nacional de Câncer. Rio de Janeiro: INCA, 2022.

11 Frasson A, Novita G, Brenelli F, Luzzatto F, Berrettino Júnior A, Cavalcante FP, et al., editores. Doenças da mama: guia de bolso baseado em evidências. 3ª edição. São Paulo Atheneu; 2022.

12 National Comprehensive Cancer Network. NCCN Clinical Practices in Oncology [internet]. Philadelphia: NCCN; 2023 [acesso em 2023 ago 10]. Disponível em: https://www.nccn.org/professionals/physician_gls/default.aspx .

13 Osborne MP, Orminston N, Harmer CL, McKinna JA, Baker J, Greening WP. Breast conservation in the treatment of early breast cancer – A 20-year follow-up. Cancer. 1984;53:349-55.

14 Nevin JE, Baggerly JT, Laird TK. Radiotherapy as an adjuvant in the treatment of carcinoma of the breast. Cancer. 1982;9:1194-200.

15 Bostwick J, Vasconez LO, Jurkiewics MJ. Breast reconstruction after a radical mastectomy. Plast Reconstr Surg. 1978;61:682-93.

16 Petit JY, Rietjens M, Garusi C. Breast reconstructive techniques in cancer patients: which ones, when to apply, which immediate and long term risks?. Crit Rev Oncol Hematol. 2001;38(3):231-9.

17 Brasil, Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução CFM Nº 1.483/1997. Resolve: A reconstrução mamária, sempre que indicada com a finalidade de corrigir deformidade consequente de mastectomia parcial ou total, é parte integrante do tratamento da doença para a qual houve indicação de mastectomia.

18 Brasil, Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei Nº 9.797, de 6 de Maio de 1999. Dispõe sobre a obrigatoriedade da cirurgia plástica reparadora da mama pela rede de unidades integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS nos casos de mutilação decorrentes de tratamento de câncer.

19 Brasil, Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei Nº 12.802, de 24 de Abril 2013. Altera a Lei nº 9.797, de 6 de maio de 1999, que “dispõe sobre a obrigatoriedade da cirurgia plástica reparadora da mama pela rede de unidades integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS nos casos de mutilação decorrentes de tratamento de câncer”, para dispor sobre o momento da reconstrução mamária.

20 Diário Oficial da União, de 14/02/2023 [acesso em 2024 fev 5]. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-127-de-13-de-fevereiro-de-2023-464446190.


1Médica residente em Mastologia, Hospital Central da Aeronáutica, Rio de Janeiro – RJ; Rua Werneck da Silva, 11 – Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro/RJ. Telefone (21) 96556-2323, e-mail: analuizat.leal@gmail.com