PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DAS PROFESSORAS DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19: DO ACÚMULO DE TAREFAS AOS SOFRIMENTOS PSÍQUICOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10472232


Amanda Caroline da Silva Soares[1]
Flávia Cristina Silveira Lemos[2]


RESUMO: Como estudante e pesquisadora, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Federal do Pará (UFPA), surgiu o interesse em aprofundar o estudo sobre a psicologia das emergências e sua aplicabilidade na Tese de Doutorado, cujo objeto consiste nas narrativas de professoras-mães, de uma Universidade pública do estado do Pará, que se reinventaram durante a pandemia da COVID-19. O presente estudo é inicial e tem como ponto de partida levantamentos bibliográficos e a nossa vivência enquanto pedagoga de uma universidade federal, já que a pesquisa de campo, que envolve entrevistas semi-estruturadas, ainda não foi realizada. Os resultados iniciais apontam para a precarização do trabalho das professoras, aumento da violência doméstica, além de impactos na saúde mental das mulheres-professoras que vivenciaram o momento pandêmico. Tais resultados servirão de base para o aprimoramento do projeto de pesquisa doutoral.

Palavras-chave: ensino remoto; pandemia da COVID-19; precarização do trabalho das professoras; saúde mental; violência de gênero.

O uso das tecnologias de ensino durante a Pandemia da Covid-19

Atualmente a internet é uma das ferramentas mais utilizadas pela sociedade e corrobora para a construção de um mundo globalizado, onde saberes múltiplos são compartilhados a uma velocidade que faz com que o mundo pareça menor diante da ampliação do acesso às tecnologias da informação e comunicação. Os usos e apropriações da internet e das novas tecnologias no cotidiano tem gerado efeitos complexos nas existências, nas relações sociais e no campo dos valores culturais (CASTELLS, 2003).

A difusão e expansão da internet fomentaram o uso das tecnologias nos diversos setores da sociedade, trazendo mudanças nas relações econômicas, sociais e culturais, por exemplo, inclusive na educação e no trabalho. Estas transformações têm impactado tanto positivamente quanto negativamente a vida das pessoas em diversos aspectos. Além destas mudanças, o reconhecimento de que os jovens, e aqui destacamos os estudantes, estão cada vez mais conectados, o que requer repensar paradigmas, redefinir o trabalho docente, vendo o professor como um formador/orientador que incentiva o pensamento crítico e inovador (SORJ, 2003; 2004).

Por outro lado, o acesso à internet não é amplo e igualitário. Há desigualdades de acesso e da qualidade do sinal, sem falar que há limites de equipamentos e aquisição de celulares, notebooks e computadores de mesa pelo preço e renda baixa de boa parte da população no país. No Brasil e em várias áreas específicas há problemas graves no acesso, falta de antena ou pequena quantidade de cobertura das antenas das operadoras (SORJ, 2018).

Na Amazônia, por exemplo, que tem grandes extensões e florestas densas com diversas populações em regiões ribeirinhas e em territórios indígenas, quilombolas e de assentamento dos movimentos sem-terra há uma situação diferenciada também no acesso à internet e a uma rede de serviços e infraestrutura. Deve-se considerar estas dimensões na pesquisa e no trabalho educativo bem como em diversas políticas públicas.

No contexto da pandemia da COVID – 19, o professor foi fundamental para dar prosseguimento ao processo de ensino-aprendizagem remoto de modo a não comprometer o processo formativo dos alunos. O fechamento das escolas e universidades, dadas as peculiaridades de prevenção do vírus, fez com que o ensino remoto, que foi adotado para dar continuidade ao processo de ensino-aprendizagem, trouxesse uma complexidade de acontecimentos para o campo da política pública de educação, de assistência social e saúde.

Esse “novo” modelo de ensino alterou bastante o trabalho dos professores e aqui destacamos as professoras em função das situações de violência de gênero vividas por mulheres no cotidiano e que foram acirradas com a pandemia. Além de precisar adotar novas e diversas metodologias e estratégias para dar continuidade ao seu trabalho, foi necessário transformar a sua casa em sala de aula. Desse modo, surgiu o desafio de conciliar sua jornada de trabalho, dessa vez, em outra configuração, e as atividades dedicadas à família e ao lar. Tarefas, muitas vezes, dadas como exclusivas para as mulheres ou pouco compartilhada com os homens foram intensificadas na pandemia e trouxeram uma sobrecarga de trabalho para as mulheres.

Desse modo, fica clara a manipulação capitalista e patriarcal que amplia a desigualdade pautada numa democracia (relativa) de acesso ao conhecimento que tem se mostrado cada vez mais burguesa (BAALBAKI, 2014). Tudo isso acentua a precarização do trabalho da mulher-mãe-professora, além de um sistema patriarcal, misógino e desigual condições de equidade de gênero.

O estudo busca explanar esse processo que envolve mulheres- professoras- mães, a partir da imposição do isolamento social, e que muitas vezes é esquecida como profissional e que impactou na sua subjetividade e sociabilidade.

A precarização do trabalho das professoras em tempos de pandemia

O desejo de pesquisar a precarização do trabalho das mulheres surgiu a partir de reflexões realizadas durante o período pandêmico, reconhecendo a gravidade do cenário que se instalou, bem como os esforços para se conter o contágio, cuja adoção do home office se deu como medida essencial de preservação da saúde coletiva. Tal experiência, nesse modelo de trabalho, se fez presente em diversos ambientes, inclusive na Universidade Federal do Pará, onde atuamos como Técnica em Assuntos Educacionais – Pedagoga.

Destaca-se aqui a importância de que a Psicologia se efetua como um viés da educação que possibilita reflexões sobre o processo de ensino-aprendizagem, tanto no ensino regular/presencial, quanto no Ensino Remoto Emergencial (ERE). A partir desta realidade, propomos o presente estudo de um lugar de fala e percurso tanto profissional quanto de formação que nos coloca em uma posição de acúmulo de experiências relevantes para realizar este trabalho.

Talvez, num momento inicial, e baseado em uma perspectiva superficial pensou-se que, para as mulheres-mães o trabalho remoto seria positivo, pois todos os afazeres, seja como mãe, profissional ou com os cuidados com a casa estariam concentrados no mesmo lugar, mas o que acabou ocorrendo foi a precarização do dia-a-dia da mulher somada às diversas modalidades de violências vividas por estas em suas casas, muitas vezes. Mesmo que no período do home office tanto mulheres quanto os homens estivessem em casa, mas sabe-se que, no geral, as mulheres são responsáveis pelo maior acúmulo de tarefas dentro de casa ou dependendo do caso recebem ajuda do parceiro.

A rotina do trabalho associada à rotina das mães apresentava dificuldades, já que assim como essa mãe/professora precisava desenvolver seu trabalho docente, ministrar suas aulas, era necessário garantir que seus filhos assistissem as aulas programadas para suas turmas, já que estes também estavam estudando de maneira remota. E, muitas vezes, tudo isso acontecia no mesmo horário, sobrecarregando ainda mais o papel de mãe, professora e mulher.

É do nosso conhecimento que a realidade da trabalhadora mãe é mais desigual e o contexto pandêmico colocou em evidência aquilo que já discutimos há anos, mas que ainda precisa de muita luta e resistência: a desigualdade de gênero. O trabalho desenvolvido dentro do ambiente familiar, acabou reduzindo, e as vezes até anulando, o seu tempo de descanso, já que, muitas vezes, não havia horário para iniciar e encerrar suas atividades, uma vez que o trabalho público atravessou o ambiente privado, ocasionando o acúmulo de atividades, gerando cansaço físico e até mesmo problemas mentais (SILVA et al.,2020).

Além de ministrar suas disciplinas remotamente, os professores que são pais e, sobretudo, as mães também eram responsáveis por um outro ambiente que se misturava ao espaço doméstico: a da escola dos filhos. O suporte familiar era fundamental para que o ensino remoto fosse eficaz. Considerava-se necessário que as famílias participassem mais efetivamente na vida escolar dos alunos, propiciando maior apoio aos trabalhos dos professores.

Inicialmente tudo isso aconteceu de maneira bem conturbada, já que a comunicação entre professores e alunos passou a ser feita apenas pelos canais digitais. Os docentes e os alunos que estavam habituados com o contato presencial, acreditando, até então, que essa interação era essencial para o desenvolvimento da aprendizagem, precisaram se adequar ao novo modelo de ensino e comunicação.

Aí, foi posto outro desafio, visto que as aulas remotas precisavam ser atrativas, além de possibilitar a aprendizagem, mesmo que muitos professores não dominassem as ferramentas digitais, precisavam utilizá-las a seu favor, atendendo as necessidades do aluno e do processo educativo. Numa perspectiva mais positiva sobre esse período pandêmico há de se destacar que o professor desenvolveu novas habilidades, a exemplo do melhor uso das tecnologias, o que, talvez, em outro contexto não haveria essa oportunidade. Constata-se que o uso das tecnologias educacionais é imprescindível para ensinar as gerações futuras, se aperfeiçoando e de adaptando às práticas inovadoras.

O Ensino Remoto Emergencial foi uma forma de ensinar e aprender diferente do habitual e foi um processo bastante desafiador tanto para as professoras quanto para os alunos, já que todos foram pegos de surpresa. Além disso existia um fenômeno sanitário que mexeu e ainda mexe com o emocional das pessoas, impactando na saúde mental.

O Coronavírus foi descoberto, em dezembro de 2019, após casos catalogados na China. A transmissão acontece de uma pessoa doente para outra pela proximidade, sem o uso de barreiras físicas (principalmente o uso de máscaras) e por meio de superfícies contaminadas, daí a importância do uso de álcool em gel. Diante disso e da falta de medicamentos ou vacinas, que só começaram a ser aplicadas no Brasil em janeiro de 2021, o distanciamento social tornou-se uma medida necessária para diminuir a transmissão. Em virtude disso, a população mundial precisou adotar o distanciamento social e os processos formativos passaram a ser realizados a partir das tecnologias digitais.

As instituições públicas, historicamente, apresentam dificuldades por falta de recursos tecnológicos, e muitas vezes sem infraestrutura básica para aluno e professor, precarizando tanto o trabalho docente como o processo de ensino-aprendizagem. Além disso, muitos alunos se encontram em situação de vulnerabilidade e sem a estrutura mínima para o ensino remoto, ocasionados pela falta de políticas públicas eficientes; professores com poucas habilidades tecnológicas; famílias com problemas financeiros; etc. Ricardo Antunes (2020) e Sennett (2008) são importantes referências sobre a precarização do trabalho, inclusive, denominando este processo de uberização da vida.

Ademais, não tem como minimizar os efeitos deixados pela pandemia, seja pelas perdas de entes queridos, na economia, na educação e os efeitos disso tudo na saúde mental de quem vivenciou esse momento de medo e incertezas que assolou o mundo.

A pandemia assustadora ocasionada pelo vírus SARS-CoV-2 deu espaço para uma nova pandemia, que merece tanta atenção como a outra, e que envolve a saúde mental. A sobrecarga do trabalho remoto, a falta de socialização, o abalo emocional devido as perdas de pessoas, a violência doméstica, já que muitas mulheres ficaram mais tempo com seus agressores, aumentaram o nível de estresse e sofrimento psíquico da população.

Em março de 2021, o diretor gral da OMS, Tedros Adhanom, se manifestou declarando o aumento da violência de gênero no período pandêmico:

A violência contra as mulheres é endêmica em todos os países e culturas, causando danos a milhões de mulheres e suas famílias, e foi agravada pela pandemia de Covid-19. Mas, ao contrário da Covid-19, a violência contra as mulheres não pode ser interrompida com uma vacina. Só podemos lutar contra isso com esforços sustentados e enraizados – por governos, comunidades e indivíduos – para mudar atitudes prejudiciais, melhorar o acesso a oportunidades e serviços para mulheres e meninas e promover relacionamentos saudáveis e mutuamente respeitosos (FIOCRUZ, 2021).

O confinamento forçado e a convivência prolongada em um mesmo espaço, intensificou os fatores de risco, ficando a mulher em uma situação de maior vulnerabilidade, aumentando os conflitos familiares e, por consequência, a violência contra a mulher (ABUDE, 2021).

Considerações finais

Apesar da docência ser marcada pelo gênero feminino e as mulheres-professoras terem se mantido no teletrabalho no ensino remoto, a manutenção do trabalho na educação formal não deu destaque a mulher, já que, em muitos casos, estas foram vistas como privilegiadas por terem mantido seus trabalhos em casa e sem terem perdido ou reduzido sua renda, sem se darem conta que nesse período o trabalho dessas professoras foi mais desgastante, já que sobrava pouco ou quase nada de tempo para que elas olhassem para si, evidenciando a desigualdade de gênero acentuada nesse momento histórico.

A intensificação do trabalho, juntamente com a precarização das condições laborais, trouxe impactos significativos para essa categoria profissional. Além das demandas acadêmicas, muitas professoras tiveram que conciliar o trabalho remoto com as responsabilidades domésticas, enfrentando jornadas exaustivas e o desafio constante de equilibrar as demandas profissionais e familiares.

As mulheres professoras precisaram se adaptar rapidamente a novas tecnologias, preparar materiais didáticos virtuais e lidar com as complexidades de manter os alunos engajados à distância. Essa transição abrupta não apenas demandou habilidades técnicas, mas também exigiu uma carga emocional adicional, já que muitas professoras buscaram apoiar emocionalmente seus alunos diante do contexto desafiador da pandemia, além de serem suas próprias apoiadoras em caso de violências sofridas em seus próprios lares.

Observando atentamente o impacto social da pandemia, é doloroso constatar que o isolamento imposto para conter a propagação da COVID-19 resultou em um ambiente propício para o aumento das tensões familiares, exacerbando situações já existentes e criando novos desafios. Mulheres, em particular, enfrentaram um aumento nas incidências de violência, muitas vezes com menos recursos para buscar ajuda, dada a restrição de movimentação.

A precarização das condições de trabalho também se manifestou na falta de suporte institucional adequado. A ausência de políticas específicas para mitigar os impactos da pandemia nas atividades acadêmicas e na saúde mental das professoras agravou a situação.

Temos interesse especial nas consequências psicológicas desse contexto para as mulheres professoras, que enfrentam não apenas as dificuldades práticas, mas também o desgaste emocional resultante da sobrecarga e da incerteza. É crucial que, mesmo após a pandemia, reconheçamos e abordemos essas questões para tentar garantir, cada vez mais, um ambiente de trabalho justo e sustentável para as mulheres que desempenham um papel fundamental na educação, já que esse processo de precarização do trabalho docente não é novo, apenas foi intensificado no momento de isolamento social.

REFERÊNCIAS:

ABUDE, Kátia Maria Brasil. O impacto da pandemia no Brasil, em 2020, na incidência da violência doméstica contra mulher, em especial, o feminicídio. Conteúdo Jurídico. Brasília- DF, 2021. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/o-impacto-da-pandemia-no-brasil-em-2020-na-incidencia-da-violencia-domestica-contra-mulher-em-especial-o-feminicidio. Acesso em: Novembro, 2023.

ANTUNES, Ricardo. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

BAALBAKI, E. C. F. E Divulgação científica e o discurso da necessidade. LETRAS, v.24, n.48, p. 379-396, Santa Maria, 2014.

CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

LIMA, Everton. Violência contra as mulheres no contexto da Covid-19. FIOCRUZ. 2021. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/violencia-contra-mulheres-no-contexto-da-covid-19

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. São Paulo: Record, 2008.

SILVA, et al. A Feminização do cuidado e a sobrecarga da mulher-mãe na pandemia. Revista Feminismos, v. 8, n. 3, Set. – Dez. 2020.

SORJ, B. et al. Sobrevivendo nas Redes – Guia do Cidadão. São Paulo: Editora Moderna, 2018.

SORJ, B., A Democracia Inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

SORJ, B., brasil@povo.com – A Luta contra a Desigualdade na Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.


[1] Doutoranda em Psicologia, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPA. Pedagoga pelo Instituto de Ciências da Educação da UFPA. Técnica em Assuntos Educacionais, na Pró-Reitoria de Ensino de Graduação, da UFPA. E-mail: amanda84soares@yahoo.com.br

[2] Doutora em História Cultural pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora na Universidade Federal do Pará. E-mail: flaviacslemos@gmail.com