FEBRE DE ORIGEM INDETERMINADA: RELATO DE UM DIAGNÓSTICO EM PACIENTE IMUNOCOMPETENTE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10306566


Karine Leão Marinho1; Luciano Moura de Assunção2; Flávia Karoline Souza da Silva3; Lucas da Silva Lopes4; Edilson Santos Silva Filho5; Denise Lima de Sousa6; Isabela Soraia Figueiredo da Silva7; Thiago Eric Monte Borges8; Remita Viegas Vieira9; Márcia Helena Ribeiro de Oliveira10


RESUMO

Introdução: A Febre de Origem Indeterminada (FOI) é classificada como a presença de temperatura axilar maior que 37,8ºC em várias ocasiões, por tempo mínimo de 03 semanas, sem diagnóstico de causa após 01 semana de investigação hospitalar1. As suas causas variam conforme a população e o local, mas as doenças infecciosas permanecem sendo a principal causa de FOI2. Objetivo: Relatar o caso de um paciente hospitalizado em investigação de FOI e realizar revisão de literatura sobre o caso. Metodologia: Trata-se de um estudo observacional, descritivo, do tipo relato de caso de um paciente imunocompetente em investigação de FOI com diagnóstico de Toxoplasmose. Resultados: Este projeto traz o relato de caso de paciente com quadro de febre diária por período superior a três meses, associado a sintomas respiratórios no início da patologia e, posteriormente, perda visual bilateralmente. Durante a internação na Fundação Santa Casa Misericórdia do Pará, foi diagnosticado com Toxoplasmose após realização de pesquisa de doenças infecciosas causadoras de lesão retiniana grave. Devido quadro ocular, paciente recebeu tratamento com Sulfadiazina, Pirimetamina, Clindamicina e Ácido Folínico. Conclusão: Ressalta-se a importância de conhecimento da Toxoplasmose como possível causa de FOI em imunocompetentes, e a necessidade de descartá-la como diagnóstico diferencial relevante, por suas consequências oculares muitas vezes irreversíveis em caso de não tratamento

1. INTRODUÇÃO 

A definição clássica de Febre do Origem Indeterminada (FOI) é a presença de temperatura axilar maior do que 37,8 ºC em várias ocasiões, por tempo mínimo de 03 semanas, sem diagnóstico da causa subjacente após uma semana de investigação hospitalar1.  Em 1991, Durack e Street revisaram os critérios clássicos, propondo uma redução do período de investigação para 03 dias em ambiente hospitalar ou, pelo menos, 03 consultas ambulatoriais2. Os autores também sugerem uma classificação clínica da FOI em grupos clínicos específicos para facilitar o raciocínio diagnóstico da doença causadora da síndrome febril. Os grupos são divididos em: pacientes hospitalizados, neutropênicos febris, portadores de vírus, imunodeficiência humana (HIV) e idosos1.

As causas de FOI variam conforme a população e local onde é realizado o estudo, ano da publicação e critérios conceituais estudados1,2. As doenças infecciosas permanecem sendo a principal causa de FOI, porém, pesquisas recentes demonstram um aumento do número de diagnósticos relacionados a condições neoplásicas, autoimunes ou inflamatórias2. Apesar do avanço tecnológico no setor da saúde, muitos pacientes permanecem sem causa definitiva da etiologia da FOI3.

A abordagem diagnóstica da FOI deve iniciar pela anamnese e exame físico completos. O profissional médico não deve se limitar aos dados orgânicos apresentados pelo paciente, devendo investigar também aspectos profissionais, condições de moradia, viagens, contato com pessoas doentes ou animais, histórico vacinal, histórico pregresso, realização de tratamentos e cirurgias prévias, além de doenças endêmicas na região de origem do paciente3. O exame físico deve ser minucioso, pesquisando lesões cutâneas, lesões na cavidade oral, seios da face, linfonodomegalias, visceromegalias, exame de fundo de olho e região anal. É importante repetir diariamente o exame físico até o diagnóstico ser obtido1,3.

Os exames complementares são fundamentais para elucidação diagnóstica da FOI. Não há uma padronização dos exames a serem solicitados. Deve-se avaliar o paciente individualmente a partir da ananmese e exame físico completos, além do perfil do serviço de saúde onde será realizada a investigação 1,4. A investigação mínima deve incluir exames como hemograma, perfil bioquímico, hemoculturas, sorologia para HIV, para hepatites e para doenças endêmicas regionais, além de exames de imagem do tórax, abdome e pelve2.

Dentre as causas infecciosas de Febre de Origem Indeterminada pode-se citar a Toxoplasmose como um diagnóstico pertinente na população brasileira, especialmente no grupo dos pacientes imunocompremetidos5.

A Toxoplasmose é uma zoonose causada pelo Toxoplasma gondii, um protozoário intracelular obrigatório. O T. gondii tem um ciclo biológico complexo, no qual o gato é o hospedeiro definitivo. Este animal abriga o ciclo coccidiano em suas células epiteliais do intestino e um ciclo assexuado nos outros tecidos. O homem, assim como outros mamiferos e aves, são hospedeiros intermediários, abrigando o ciclo assexuado deste parasita. A infecção no ser humano pode ser adquirida a partir de 03 formas: ingestão de cistos no solo; ingestão de cistos em carnes cruas ou mal cozidas; e infecção transplacentária 5,6,7.  

Esta doença tem distribuição geográfica ampla, especialmente em regiões tropicais, com importante repercussão na saúde pública7. A prevalência da Toxoplasmose depende de uma combinação de  variáveis, como condições climáticas locais, hábitos higiênicos da comunidade, quantidade de felinos, hábitos culturais para preparação dos alimentos e população de gestantes adolescentes vulneráveis4. Estima-se prevalência de anticorpos na população adulta brasileira entre 50 – 80%, com maiores índices na região Norte6

Na maioria dos casos, a infecção aguda da Toxoplasmose em pacientes imunocompetentes é assintomática. Quando presente, os sintomas incluem febre baixa associada a linfadenite cervical e hepatoesplenomegalia autolimitadas que raramente necessitam de tratamento. Em alguns pacientes, a Toxoplasmose pode apresentar sinais de acometimento cerebral, pulmonar, hepático ou miocárdico. Lesões na retina também podem ser atribuídas a infecção aguda pelo T. gondii, especialmente a retinocoroidite6

A suspeita clínica de Toxoplasmose deve ser confirmada por meio dos resultados sorológicos. Realiza-se a pesquisa de anticorpos contra o protozoário das classes IgG, IgM, IgA e IgE no paciente. O diagnóstico de Toxoplasmose aguda sistêmica é obtido mediante a verificação de anticorpos anti-T.gondii IgM no soro. Na fase crônica, encontram-se anticorpos IgG em baixos níveis e ausência de IgM 7. 

O tratamento contra toxoplasmose é oferecido apenas às gestantes e pacientes com lesões graves e sintomas persistentes, devido ao potencial tóxico dos esquemas terapêuticos utilizados. Na prática clínica, a terapêutica é realizada com associação de sulfadiazina, pirimetamina e ácido folínico, com duração do esquema a depender da resposta clínica do paciente6.

2. OBJETIVOS

2.1 Geral:

Relatar o caso de um paciente hospitalizado em investigação de Febre de Origem Indeterminada

2.2 Específicos:

  • Descrever o caso clínico e relatar como ocorreu a investigação da Febre de Origem Indeterminada.
  • Detalhar a admissão, evolução e desfecho do caso clínico.
  • Realizar revisão de literatura para caracterizar o perfil epidemiológico, clínico e perfil de exames de laboratório do paciente com Toxoplasmose.

3. METODOLOGIA: CASUÍSTICA E MÉTODOS

3.1. CARACTERIZAÇÃO DO ESTUDO

Seguindo os preceitos da resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), foi solicitada a análise do projeto de pesquisa ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da instituição, localizada na Rua Bernal do Couto – 395, CEP: 66050-380, e após aprovação os pesquisadores iniciaram a coleta de dados. 

Para realização deste projeto, foi emitido pelos pesquisadores Termo de Compromisso de Utilização de Dados (TCUD) com o objetivo de assegurar o sigilo dos dados coletados e utilização de tais informações única e exclusivamente para fins científicos, preservando, integralmente, o anonimato do paciente.

3.2. DESENHO DO ESTUDO

Trata-se de um estudo observacional, descritivo, do tipo relato de caso de um paciente imunocompetente com diagnóstico de Toxoplasmose, com acometimento ocular, tendo como investigação inicial a Febre de Origem Indeterminada.

3.3. LOCAL DO ESTUDO

Esta pesquisa foi realizada na Gerência de Arquivo Médico (GAME). Este departamento é responsável pelo arquivo de todos os prontuários (físicos e eletrônicos) dos pacientes hospitalizados na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMPA). 

No referido local, está arquivado o prontuário do paciente que é objeto de estudo desta pesquisa. E, por isso, durante o mês de setembro de 2022 foi feita a coleta periódica de dados relevantes ao relato do caso.

3.4. POPULAÇÃO ALVO

Paciente hospitalizado na enfermaria São Roque da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará com diagnóstico de Toxoplasmose, com acometimento ocular, tendo como investigação inicial a Febre de Origem Indeterminada, entre os meses de março e abril de 2022.

3.5. DELINEAMENTO DO ESTUDO

As informações para este relato de caso foram obtidas através da análise de prontuário (físico e eletrônico) do paciente que constitui a população alvo. Foram extraídas as informações clínicas, bem como investigação complementar através de resultados de exames laboratoriais e imagem, cujos dados relacionados ao paciente foram mantidos sob sigilo pelos pesquisadores do projeto, por meio de assinatura do TCUD, realizada pelo pesquisador principal e mantido pelos demais autores do estudo.

3.6. CRITÉRIOS DE INCLUSÃO

Paciente internado na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, na enfermaria São Roque, entre os meses de março e abril de 2022, sob os cuidados da Clínica Médica para investigação de Febre de Origem Indeterminada e, posteriormente, Toxoplasmose.

3.7. CRITÉRIOS DE EXCLUSÃO

Demais pacientes internados que não tenham o diagnóstico dessa doença e não sejam a paciente acima descrita.

3.8. RISCOS E BENEFÍCIOS

Os riscos para o participante seriam a indevida exposição pública de seus dados associada a divulgação da sua identidade, podendo provocar constrangimentos para o pesquisador e seus familiares. Este risco foi evitado pelo compromisso dos pesquisadores em não utilizar nenhuma forma de identificação na coleta destes dados, resguardar com segurança os dados coletados e manter sigilo quanto às informações pessoais e publicar exclusivamente em meios de comunicação científica.

Os riscos para a Instituição seriam a divulgação indevida de informações pessoais do participante afetando a credibilidade do hospital para comunidade. Tal fato foi evitado com o compromisso dos pesquisadores em obedecer aos princípios éticos que regem as pesquisas científicas, como resguardar informações pessoais do participante durante a coleta de dados, prezando pelo sigilo dos dados do pesquisador. Ainda, a possibilidade de eventual perda de documentos do prontuário, durante a busca de informações ou sua danificação. A fim de minimizar esse risco, os pesquisadores se comprometeram a ter total cuidado com o manuseio do prontuário físicos ou prontuário eletrônico como manter a organização durante a busca de dados, não se alimentar ou ingerir líquidos durante coleta, manter a higiene das mãos ao manipular documentações para evitar danos.

Os riscos para a Ciência seriam a coleta inadequada dos dados e posterior análise incorreta do caso clínico. Tal risco foi minimizado com o comprometimento dos pesquisadores em utilizar somente informações presentes nos prontuários, de forma clara e concisa.

A pesquisa trará grandes benefícios à comunidade médico científica ao proporcionar a ampliação do conhecimento acerca dessa síndrome clínica com diagnóstico desafiador e muito presente na prática médica.  

Além disso, o Hospital será beneficiado à medida que a habilidade, competência, eficácia e eficiência diagnóstica e terapêutica permitirá destacar a capacidade do corpo técnico da instituição diante da comunidade médica e científica, bem como do público em geral, destacando a qualidade na prestação do serviço médico e dos outros profissionais de assistência à saúde. 

4. RELATO DE CASO

Paciente sexo masculino, 43 anos, residente em Altamira/PA, eletricista, casado. Nega doenças crônicas, nega cirurgias prévias e alergias. Informa tabagismo prévio (carga tabágica de 7,5 maços/anos), etilismo prévio (consumo de 03 latas de cerveja esporadicamente) e consumo ocasional de anfetaminas e cocaína, com cessação destes hábitos há cerca de 10 anos. Quanto aos antecedentes familiares, relata a irmã com diagnóstico de Beta Talassemia Minor. 

Procurou atendimento médico em serviço de emergência público, em cidade de origem, em janeiro de 2022, com queixa de febre, associada à cefaléia, mialgia e coriza, iniciados há 02 dias. Após avaliação médica, recebeu receituário com medicações sintomáticas e informou que a principal hipótese do quadro seria Resfriado Comum.

Após três dias, retorna em serviço de emergência para novo atendimento devido à piora da mialgia e manutenção da febre diária, com início de tosse seca e cansaço aos grandes esforços. Neste atendimento, realizou teste rápido de antígeno para Covid-19, com resultado negativo, e Tomografia Computadorizada de Tórax, que demonstrou achados em padrão vidro fosco e derrame pleural bilateral. 

Diante destas alterações em exame de imagem, paciente foi internado em Unidade Pronto Atendimento e iniciado tratamento com antibioticoterapia parenteral, associado a suporte clínico. Permaneceu em leito de isolamento respiratório por suspeita de COVID- 19. Recebeu alta hospitalar após cinco dias, com melhora clínica dos sintomas. 

Porém, depois de uma semana de alta, paciente retorna em atendimento de emergência por permanência de febre diária, associada à mialgia e astenia intensa, além de perda de peso involuntária (cerca de 05 kg) e dispneia aos médios esforços, porém com melhora dos sintomas gripais. Foi internado novamente e encaminhado ao Hospital de Atendimento Terciário da Região. 

Durante internação em Hospital de Atendimento Terciário da região, paciente evoluiu em regular estado geral, mantendo febre diária, e iniciou queixa de diminuição de acuidade visual bilateral, pior à esquerda. Ao exame físico, foi descrito surgimento de linfonodos palpáveis em cadeia occipital à direita, hepatoesplenomegalia e ascite de pequeno volume. 

A investigação incluiu sorologias para HIV, HTLV, Hepatites A, B e C, Citomegalovírus, Epstein-Barr, além de pesquisa de BAAR em escarro. Todos estes com resultados negativos. Solicitou-se novamente testagem de antígeno para COVID – 19, com resultado negativo. Exames laboratoriais demonstraram presença de anemia hipocrômica/microcítica e aumento de enzimas hepáticas (3x/LSN), demais exames sem alterações. Exames de imagem com os seguintes achados: derrame pericárdico moderado, derrame pleural bilateral, esplenomegalia moderada, redes colaterais perigástricas e no hilo esplênico, com dilatação de veia porta e esplênica, líquido livre em cavidade abdominal. 

Ao longo desta internação, paciente foi avaliado por equipe de Hematologia, sendo descartado possibilidade de diagnóstico de doença linfoproliferativa. Recebeu antibioticoterapia com Ceftriaxona por sete dias e Anfotericina B por quatro dias, sem motivos claros em resumo de alta, além de hidróxido de ferro endovenoso e sintomáticos para controle de febre. Segundo sumário de alta, por apresentar melhora clínica e exclusão de diagnósticos de doenças agudas, paciente recebe alta hospitalar em 21 de fevereiro de 2022. 

No entanto, por ainda apresentar sintomas de febre, astenia e mal-estar geral, associados à perda de peso e piora do quadro ocular, paciente procurou atendimento médico em clínica particular com especialistas em Infectologia e Oftalmologia na cidade de Belém/PA. Nesta consulta com Oftalmologista, foi emitido laudo com orientação de internação imediata para tratamento hospitalar de lesão retiniana grave de provável origem infecciosa, sendo a principal suspeita naquele momento de citomegalovírus (CMV).

Paciente foi admitido na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará em 18 de março de 2022. Realizou-se novamente anamnese e exame físico detalhados, além de rastreio infeccioso com pesquisa de sorologias virais, Sífilis, pesquisa de BAAR em escarro, carga viral para CMV, investigação de doença reumatológica e Tomografia Computadorizada de crânio. Por forte suspeita de doença retiniana grave causada por Citomegalovírus, iniciou-se tratamento com Ganciclovir intravenoso em 19 de março de 2022.

No decorrer desta internação, enquanto aguardava resultados de exames, paciente manteve febre diária (37,9 – 38,2 º) e piora progressiva de acuidade visual bilateralmente. Demais sinais vitais e exame físico sem alterações. Análises laboratoriais iniciais demonstraram anemia hipocrômica e microcítica; e, devido histórico familiar de talassemia, solicitou-se Eletroforese de Hemoglobina, a qual confirmou diagnóstico de Beta Talassemia minor. Os resultados de sorologias para HIV, hepatites B e C foram negativos, além de exames de autoanticorpos também negativos. A imagem de tomografia computadorizada de crânio não demonstrou alterações. 

Após uma semana de hospitalização, apresenta resultado de sorologia para Toxoplasmose tipo IgG reagente em alta titulação (>400 UI/ml) e aguardando resultado de IgM; sorologia para Citomegalovírus tipo IgG reagente (>180 U/ml) e IgM não reagente. Em nova consulta com oftalmologista assistente, em 30 de março de 2022, foi visualizada perda total de visão central em olho esquerdo e perda de mais de 50% da visão no olho direito, mesmo em vigência de ganciclovir endovenoso. Tendo isso em vista, Oftalmologista assistente solicita realização de Ganciclovir intra-vítreo, medicação não-padrão do hospital, necessitando realizar procedimento de compra.

Em 04 de abril de 2022, encontra-se em sistema do hospital exame de Carga Viral em sangue com resultado indetectável para Citomegalovírus, além de resultado de IgM para Toxoplasmose positivo (> 160 UI/ml) – revisada e confirmada em duas amostras, a primeira coletada em 18/03/2022 e a segunda em 23/03/2022. Diante destas sorologias, solicitou-se parecer da equipe de infectologia da FSCMPa, a qual indicou suspender Ganciclovir endovenoso e iniciar tratamento para Toxoplasmose com esquema composto por Sulfadiazina, Pirimetamina, Clindamicina e Ácido Folínico, iniciado durante hospitalização. 

Em 05 de Abril de 2022, paciente recebe alta hospitalar, com o esquema iniciado em internação, para seguimento de tratamento de Toxoplasmose por ambulatório de clínica médica e oftalmologia. 

5. DISCUSSÃO 

A febre de origem indeterminada (FOI) é considerada um problema clínico comum e representa uma importante causa de internações hospitalares. É definida, classicamente, como a presença de temperatura axilar maior do que 37,8ºc por, no mínimo, 03 semanas e após uma semana de investigação hospitalar sem sucesso1. O caso apresentado encaixa perfeitamente nessa classificação, tendo em vista os sintomas terem iniciado no mês de janeiro e o paciente receber o diagnóstico correto somente em abril.

Esse conceito de FOI tende a eliminar doenças infecciosas autolimitadas, sobretudo viroses. Porém, observa-se que essa definição ainda é controversa na literatura, principalmente no quesito tempo1. Isso se deve ao fato de que o acesso aos exames laboratoriais e de imagem, para descartar os diagnósticos diferenciais, pode variar dependendo do país, inclusive dentro de um mesmo país, a exemplo do Brasil, no qual há maior dificuldade de acesso de exames mais avançados na região Norte em comparação ao Sul e Sudeste. No caso em estudo, o paciente obteve maior dificuldade de diagnóstico inicial em cidade do interior do estado do Pará, mesmo hospitalizado em serviço especializado.

Em uma revisão sistemática sobre FOI, 28% dos estudos a definiram como uma febre persistente mesmo após uma investigação diagnóstica mínima, sem o uso de critérios rígidos dependentes do tempo9.  Entretanto, há ainda validade em incorporar o tempo de duração da febre na definição de FOI, com objetivo de evitar usar o termo para condições com febre auto-limitadas2. Como no relato exposto, em que inicialmente foi considerado a hipótese de um caso de resfriado comum, o tempo de duração da febre, além da piora clínica do paciente, foram cruciais na decisão de internação pelos médicos.

Uma das classificações da FOI a divide em quatro categorias, sendo essas: clássica, nosocomial, relacionada à imunodeficiência e associada a viagens. A FOI clássica inclui também pessoas vivendo com HIV com carga viral suprimida, com contagem de CD4 > 200 cel/mm3, além de outros pacientes sem comorbidades que vieram da comunidade, e as suas causas são divididas em quatro categorias: infecciosas (ex: tuberculose, endocardite), câncer, doenças autoimunes e miscelânea2. A investigação do caso exposto se deu com o objetivo de descartar progressivamente estas causas, com a solicitação do laboratório básico, como hemograma e painel metabólico, além de hemocultura, sorologias para Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), tomografia de tórax e crânio. 

Tendo em vista a não elucidação com estes exames iniciais, foram solicitados testes mais avançados a fim de esclarecer o quadro, baseados sempre na sintomatologia e no exame físico do paciente, como investigação para Toxoplasmose e Citomegalovírus, além de investigação de doenças reumatológicas, com pesquisa do fator antinuclear (FAN), assim como de outros autoanticorpos. Caso não fosse elucidado o quadro, o próximo passo possível seria biópsia de lesões ou massas, como linfonodomegalias2

Durante as duas hospitalizações na cidade de origem, o paciente do caso foi investigado para infecção por COVID-19. Esta doença foi relatada pela primeira vez em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan (China) em pacientes com quadro de pneumonia grave, com a transmissão de SARS-COV-2 tomando proporções globais, afetando mais de 200 países 12.  No Brasil, foram confirmados cerca de 35 milhões de casos de COVID-19, com aproximadamente 680.000 óbitos decorrentes dessa doença13

A infecção por coronavírus apresenta inúmeras manifestações clínicas, exibindo desde quadros assintomáticos, ou queixas respiratórias leves e gastrointestinais, a quadro de saúde críticos 12. A tomografia computadorizada de tórax, em pacientes diagnosticados com COVID-19, demonstra alterações em opacidades bilaterais periféricas com padrão de vidro fosco, o mesmo descrito na primeira internação do caso relatado. De acordo com sintomas iniciais apresentados pelo paciente, além do atual contexto de saúde pública mundial, foi indispensável investigar a infecção por SARS-COV-2 como hipótese diagnóstica.  

Dos exames sorológicos solicitados, foi identificada a presença de anticorpo IgM e IgG para Toxoplasmose, a qual justificava o quadro clínico do paciente, sendo confirmado o diagnóstico. A Toxoplasmose é uma parasitose muito comum, causada pelo Toxoplasma gondii, e, quando manifestada na forma adquirida e em pacientes imunocompetentes, apresenta, na maioria dos casos, curso benigno e assintomático, com diagnóstico ao acaso através de pesquisa sorológica, o que não ocorreu no caso exposto5. Em pequena parcela de pacientes, especialmente os diagnosticados com vírus da imunodeficiência humana (HIV), as manifestações clínicas podem ser diversas 15

Em relação ao exame físico, o sinal mais típico da Toxoplasmose é a linfadenopatia occipital, que pode persistir até um mês após início da febre. Outro sinal importante é a hepatoesplenomegalia transitória5. No caso descrito, o paciente apresentou essas alterações em internação de Hospital de atendimento terciário na cidade de origem, que não foram evidenciadas em exame durante hospitalização em FSCMPa, o que pode demonstrar o caráter transitório das manifestações. 

A infecção aguda por Toxoplasmose também pode apresentar sintomas pulmonares5. A pneumonia é uma afecção rara em pacientes imunocompetentes, manifestando-se com coriza, mialgia, tosse seca e dor torácica5,15. A opacidade padrão vidro fosco bilateralmente, demonstrada na tomografia de tórax durante primeira hospitalização no caso estudado, é inespecífica e relacionada a diversas patologias pulmonares, dentre elas pneumonia por Toxoplasmose14,15

Em relação Toxoplasmose ocular (TO), é comum a presença de uveíte posterior, sendo o T. gondii o patógeno mais comum a causar este tipo de alteração ocular10. No Brasil, a toxoplasmose é responsável por aproximadamente 50% do total de uveítes e de 60-85% dos casos de uveíte posterior11. Apesar de não estar descrito em laudo oftalmológico o tipo de acometimento ocular do caso em questão, houve grande suspeição clínica para este diagnóstico devido a manifestação sistêmica do paciente associado a acometimento oftalmológico.

O sintoma mais frequente da TO é a diminuição da acuidade visual, semelhante ao caso exposto. Outros sinais e sintomas que podem ocorrer decorrentes do processo inflamatório: dor ocular, hiperemia conjuntival e ciliar, a fotofobia e miiodopsia (moscas volantes)7. Estes sintomas podem variar de acordo com a idade e em relação à época da infecção. Em crianças mais novas, que não se comunicam verbalmente, só recebem diagnóstico ao serem encaminhadas ao oftalmologista pelos professores ou pais que notam baixa acuidade visual, estrabismo, nistagmo ou leucocoria, e estes casos costumam decorrer da forma congênita11

A TO pode ocorrer tanto na forma congênita quanto na forma adquirida, assim como no contexto de infecção recém adquirida ou doença reativada (presença de antigas cicatrizes e uma lesão ativa)10.  Sobre isto, a maioria dos pacientes com a forma adquirida é geralmente assintomático e acomete os olhos na sua fase aguda em até 10% dos casos, de forma leve, transitória e, às vezes, despercebida11. De diferencial, geralmente a forma congênita acomete ambos os olhos e a adquirida somente um. Seria fundamental, nesse caso, a descrição detalhada das alterações oculares desde o início para diferenciar uma forma aguda de uma reativação, assim como do outro principal diagnóstico diferencial, o citomegalovírus.

Em relação ao laboratório, é necessário a realização de anticorpos IgM e IgG utilizando um teste ELISA (“enzyme-linked immunosorbent assay”). Em infecção aguda, o IgM geralmente surge entre 07 a 10 dias e pode persistir por duração variável. Se negativo, não exclui o diagnóstico, pois a forma ocular pode se manifestar semanas depois da infecção inicial e o IgM pode não estar presente neste momento. O IgG surge aproximadamente com duas semanas da infecção primária, com pico em 08 semanas, e persiste pela vida toda10. Este parece ter sido o caso do paciente exposto, por apresentar sorologia para anticorpos IgM em altas titulações, cerca de 20 vezes maior que o valor de corte proposto pelo laboratório, mesmo após três meses de evolução do caso.

Quanto ao tratamento, a TO geralmente é tratada com terapia via oral. Nem todos os casos são passíveis de tratamento, a exemplo de paciente com a forma inativa, identificada ao acaso em exame ocular, que não requer seguimento ou medicação enquanto estiver assintomática. Em alguns destes casos, em pacientes que irão utilizar medicação imunossupressora, poderá existir benefício de realizar terapia profilática para prevenir recorrência10.

O tratamento antimicrobiano é sugerido para pacientes com achados oculares ou condições que os colocam em risco de desenvolvimento de doença que ameaça a visão. Apesar de que a maioria dos casos de TO se resolva espontaneamente em torno de 04 a 08 semanas, alguns estudos sugerem que a terapia antimicrobiana pode estar associada a diminuição do tamanho da lesão e recuperação visual mais rápida, assim como pode reduzir o risco de recorrência10. No caso exposto, houve persistência e progressão de dano visual, trazendo urgência para a realização da terapia adequada.

O regime mais utilizado para tratamento de pacientes adultos não-gestantes no Brasil é a associação de Pirimetamina com Sulfadiazina por pelo menos 06 semanas, esquema utilizado pelo paciente do caso11. Outra opção possível é a associação de Sulfametoxazol com Trimetropim (800 mg/160 mg, respectivamente, duas vezes ao dia em pacientes com função renal normal). Esta última combinação está crescendo em seu uso, pois evidências, ainda limitadas, sugerem que a eficácia dos dois esquemas é comparável e parece que a combinação de Sulfametoxazol e Trimetropim causa menos efeitos colaterais, com maior adesão e comodidade10,11.

Ainda sobre isso, sabe-se que as drogas antitoxoplasma disponíveis têm boa ação, mas não eliminam os cistos, então a recidiva de toxoplasmose ocular é sempre possível.  A causa dessas recidivas ainda permanece desconhecida, mas pode estar associada à ruptura periódica de cistos retinianos, assim como a reinfecções. Por este motivo, o seguimento destes casos com médico capacitado é fundamental, tanto para acompanhamento da resposta ao tratamento como de possível toxicidade devido às medicações, sendo necessária a avaliação de hemograma, função renal e hepática10,11.

6. CONCLUSÃO

Em conclusão, apresenta-se o achado de caso clínico de hipertermia persistente por período prolongado em paciente imunocompetente associada a evolução com acometimento ocular, com diagnóstico de Toxoplasmose ocular obtido após quatro meses do início dos sintomas e inúmeras internações. Este fato ressalta a importância de conhecimento desta zoonose como possível causa de FOI e a necessidade de descartá-la como diagnóstico diferencial relevante, por suas consequências oculares muitas vezes irreversíveis em caso de não tratamento. Portanto, em casos semelhantes, é de suma importância incluir a pesquisa de anticorpos anti-T. gondii visando incluir as hipóteses diagnósticas de FOI para além das causas bacterianas, virais e neoplásicas.

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1karine.marinho@hotmail.com. Instituição: FSCMP
2l.moura.assuncao@gmail.com. Instituição: FSCMP
3Graduada em medicina Pela Universidade Estadual do Pará. flaviakarolinesouza@gmail.com
4luclopes.27@gmail.com. FSCMP
5edilsonsfilho23@gmail.com. Instituição de ensino: UEPA CAMPUS XII
6denise_sousa2@hotmail.com. UEPA campus XII
7isabelafigueiredo.contato@gmail.com. Fundação Santa casa misericórdia PA
8Universidade Federal do oeste do Pará. thiagoBorges.tb20@gmail.com
9remitaviegas@outlook.com. Universidade Federal do Oeste do Pará
10oliveira.mhr@gmail.com. Instituição: FSCMP