ABANDONO DIGITAL: O DILEMA DA RESPONSABILIDADE PARENTAL SOB A ÓPTICA DA GLOBALIZAÇÃO

DIGITAL ABANDONMENT: THE DILEMMA OF PARENTAL RESPONSIBILITY FROM THE PERSPECTIVE OF GLOBALIZATION.

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.10246818


Gustavo Henrique Fonseca Cravo 1
Thiago Henrique Fonseca Cravo 1
Pauliana Maria Dias 2


RESUMO: O presente estudo tem como finalidade analisar as responsabilidades parentais de ordem moral-ético-legal numa sociedade globalizada, decorrente do processo de avanços tecnológicos massivos, permeado do livre e irrestrito acesso aos meios e espaços digitais, por crianças e adolescentes. Bem como, observar e identificar possíveis riscos e danos a integridade físico-psíquico-social e moral infantojuvenil, ocasionada pela prática do que convencionou-se chamar “abandono digital”. Por tratar-se de uma temática relevante ao meio jurídico e social, merecedor de entendimento e aprofundamento, buscou-se embasar e alicerçar por um percurso metodológico baseado na pesquisa e coleta de dados bibliográficos, de caráter qualitativo, utilizando-se o método indutivo. Com análise da Constituição Federal de 1988, Estatuto da Criança e do Adolescente, Jurisprudências, livros e artigos pertinentes. Tendo como foco principal, avaliar e definir as responsabilidades parentais no fenômeno do abandono digital, sob os aspectos do Princípio da Dignidade Humana e do Princípio da Proteção Integral, Prioritária e Absoluta.

PALAVRA-CHAVE: Abandono Digital. Responsabilidade Parental. Proteção Integral. Globalização. Princípios éticos-morais e legais.

ABSTRACT: The present study aims to analyze the parental responsibilities of a moral-ethical-legal order in a globalized society, resulting from the process of massive technological advances, permeated by the free and unrestricted access to digital media and spaces by children and adolescents. As well as observe and identify possible risks and damages to the physical, psychological, social and moral integrity of children and adolescents, caused by the practice of what is conventionally called “digital abandonment”. As it is a theme relevant to the legal and social environment, deserving of understanding and deepening, it was sought to support and support a methodological path based on research and the collection of bibliographic data, of a qualitative nature, using the inductive method. With analysis of the Federal Constitution of 1988, the Statute of the Child and Adolescent, Jurisprudence, books and pertinent articles. Its main focus is to evaluate and define parental responsibilities in the phenomenon of digital abandonment, under the aspects of the Principle of Human Dignity and the Principle of Integral, Priority and Absolute Protection.

KEYWORD: Digital Abandonment. Parental Responsibility. Comprehensive Protection. Globalization. Ethical-moral and legal principles.

1 INTRODUÇÃO

Prefacialmente é preciso salientar que, a sociedade em âmbito global, nas últimas duas décadas, tem sofrido um processo de reorganização e reformulação estrutural e, de dinâmicas de comunicação, interação e acessibilidade. Ligados a globalização e ao desenvolvimento contínuo e vertiginoso dos meios tecnológicos.

De forma inegável os processos tecnológicos passaram a fazer parte do dia a dia da humanidade. E os meios e recursos digitais, ganharam uma conotação e contornos de “extensão” dos membros humanos. A necessidade pungente de estabelecer relações, contatos, negociações, dinamizar tarefas, manter-se conectado e atualizado, direcionou os indivíduos a usarem amiúde os ambientes e meios digitais. E esse uso não se restringiu apenas aos adultos. Vê-se pessoas da mais tenra idade, manuseando aparelhos digitais e navegando o ciberespaço, com uma surpreendente desenvoltura e, com pouca ou nenhuma supervisão de adultos. Surgindo um fato recorrente e preocupante nos aspectos formativo, social, psicológico e legal, a modalidade de abandono infantojuvenil por parte de seus responsáveis, deixando-os inadvertidamente livres e sem supervisão ao utilizarem ferramenta e acessos digitais (CRUZ, 2020).

No Brasil, a Constituição cidadã de 1988, o Estatuto da Família, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a doutrina da Proteção Integral e os Princípios Proteção Integral e da Prioridade absoluta asseguram a criança e ao Adolescente direitos basilares e irrefutáveis. Entre esses o direito à vida, afeto, educação e proteção. Cabendo ao Estado, sociedade e família, resguardarem e assegurarem tais direitos. Quando os indivíduos responsáveis em garantir os aspectos salutares a existência dessas crianças e adolescentes, descumprem esse dever, por descuido, omissão, despreparo, negligência, inclusive no que concerne aos espaços digitais, permeados de riscos ocultos. Incorrem no descumprimento do dever de cuidado e proteção, gerando lesão de monta psicoafetiva, físico e social para a criança e ao adolescente, bem como anomalias e prejuízos sociais. Influenciando o aparecimento de situações jurídicas envolvendo casos de ilícito de responsabilidade civil, de abandono digital infantojuvenil por parte de responsáveis parentais (CRUZ, 2020).

Em termos legais e morais, tornou-se coerente a construção deste artigo que traz como objetivo um estudo analítico e crítico dos riscos assumidos por pais e responsáveis legais, ao agirem de modo displicente no acesso infantojuvenil aos meios digitais e, as responsabilidades legais, ético e morais que esta atitude ocasiona. Suscitando a ideia de discorrer sobre a temática: Abandono Digital: o dilema da responsabilidade parental sob a óptica da globalização. Desta feita, sobre a égide e imperativo da “Proteção Integral e Prioritária” é que serão realizadas as análises da problemática estabelecida tomando como essência, a responsabilidade parental e os riscos resultantes do abandono digital infantojuvenil, na óptica própria da globalização, e as consequências e punições legais oriundas dessa prática.

Nesse processo de construção de embasamentos que corroborem com a perspectivas de alcançar respostas verossímeis para a inquietação deste estudo, optou-se na utilização de uma base metodológica apoiada na pesquisa e coleta de dados bibliográficos. Como bem explicitou Marconi e Lakatos (2017, p. 54) em sua publicação sobre metodologia do trabalho científico, pesquisas bibliográficas servem como uma espécie de embasamento para estudos e trabalhos científicos encorpados e relevantes para a comunidade acadêmica, e devem ser baseadas em leituras contemporâneas, variadas e que sirvam de parâmetros para um diagnóstico proximal da verdade. Assim, será usado doutrinas, acervos legais, livros e jurisprudências que endossem e versem sobre a temática. Optou-se pelo método indutivo com caráter qualitativo para apoiar a busca e alcance dos resultados.

O artigo está organizado em capítulos, assim definidos: a princípio discutir-se-á as perspectivas legais que se correlacionam aos direitos infantojuvenis, em especial os aspectos que envolvam os Princípios da Proteção Integral e o da Dignidade Humana. Num segundo momento, há que se definir a conceitualização de criança e adolescentes e direitos albergados no Estatuto da Criança e Adolescente. No terceiro tópico, discorrer-se-á sobre o papel e responsabilidades parentais, na proteção infantojuvenil. No quarto capítulo apresentar-se-á o abandono digital sob a óptica da globalização e do acesso de crianças e adolescentes de modo indiscriminado, irrestrito e sem mediação por responsáveis parentais aos meios digitais e ciberespaços. A seguir, em um quinto e último momento, analisar-se-á as implicações e riscos que surgem com a prática do abandono digital e, as penalidades possíveis de serem aplicadas aos responsáveis parentais, pela omissão no cuidado e proteção.

2 PERSPECTIVAS LEGAIS SOB OS DIREITOS INFANTOJUVENIS

À priori é necessário identificar que, o período que antecedeu a redação da Carta Magna Brasileira de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, foi de profundo cerceamento de direitos e de liberdade, a sociedade e movimentos organizados, exigiam uma carta legal que desse esperanças, garantias e dignidade as massas. Vários dispositivos foram erigidos para dar eficiência, eficácia e legalidade na busca por uma nação democrática, solida e com equidade social. Promulgaram-se Leis que garantiram direitos essenciais, pessoais, absolutos e intransferíveis, que vieram resguardar, preservar e propiciar o desenvolvimento e dignidade para a pessoa humana, como Gomes (1996) explica em sua obra. Tais dispositivos, se estenderam e inovaram os aspectos que envolviam o sistema de direitos voltados ao público infantojuvenil, ampliando sua proteção.

De modo irrefragável, na Constituição Federal da República do Brasil de 1988, normativas foram fixadas e aprimoraram o Direito de Família e de Poder familiar. Assim, na Carta Constitucional, foram elencados institutos de proteção integral das crianças e adolescentes. Não somente a Carta Magna, mas leis e Estatutos próprios discorrem sobre direitos e seguridades para essa parcela da sociedade.

2.1 GARANTIAS BASILARES ADQUIRIDAS

Observa-se que, na Constituição Federal de 1988 – CF/88, ao tríduo: Estado, sociedade, família são impostas deveres de “assegurar” com absoluta e inegável primazia os direitos de crianças e adolescentes manterem-se seguros, com cuidados necessários e direitos inquestionáveis, o que pode ser percebido por ocasião de vários artigos, mas em especial o artigo 227º da CF:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional no 65, de 2010). (BRASIL, 1988)

Quando tais deveres são estendidos a ramificações diferentes do estrato social, significa que esses deverão ter o papel de cuidar em uníssono e ajudarem-se mutuamente para que esses cidadãos em processo de desenvolvimento encontrem bases para crescerem de forma saudável, segura e com dignidade. Se articulando em torno de um Sistema de Garantias de Direitos, ao quais Rezende (2014), em “Considerações sobre o Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente”, explica e dá ênfase, com inegável eloquência:

“O sistema não é uma instituição, mas uma forma de ação, na qual cada um conhece seu papel, além de conhecer o papel dos demais, percebendo e articulando as ligações, relações e complementaridades destes papéis. Exemplos de sistemas são citados em todas as ciências, desde a biologia ou medicina, quando ouvimos falar em sistema digestivo ou urinário, por exemplo. Tecendo um paralelo, no sistema digestivo cada órgão tem seu papel e funciona de maneira articulada com os demais. Já no momento da mastigação os demais órgãos estão produzindo as enzimas necessárias e se preparando para receber os alimentos. São ações independentes, mas interligadas. Cada órgão cumpre o seu papel específico, porém, não de maneira indiscriminada, mas de forma a construir um todo que funciona rumo a um objetivo comum”. (REZENDE, 2013).

Ao caminhar pela história evolutiva relativa a direitos infantojuvenis, fica evidenciado que esta progrediu de forma lenta, mas nas últimas décadas, tem-se criado dispositivos, leis e instrumentos mais contundentes e dinâmicos voltados para a proteção e cuidados dessa parcela social, como o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que em seu artigo 15º, dispõe:

Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. (BRASIL, 1990)

Seguramente, como Bobbio (2004) afirmou em sua obra, o que compõe de fato a essência do direito, nas composições que versam sobre os direitos fundamentais dos homens, não se manifesta exatamente naquilo que justifica a sua criação, mas na necessidade de proteção que esses necessitam possuir garantidos.

Desse modo, percebe-se que a Lei n.º 8.060/1990, também disciplina que a integridade e respeito infantojuvenis devem ser reconhecidos e garantidos, uma vez serem determinantes de todo um universo de dignidade e de desenvolvimento saudável para crianças e adolescentes:

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crianças, dos espaços e objetos pessoais. (BRASIL, 1990)

No campo material, o público infantojuvenil, adquiriu um leque considerável de instrumentos, suporte legais e institucionais, obrigatórios e funcionais. Para certificar que haja, uma proteção integral deles enquanto indivíduos sociais e portadores de garantias de direitos. Evitando que estes sejam expostos a situações que firam direitos adquiridos, e os direcionem a riscos e fragilidades emocionais, físicas, sociais e mentais.

2.1.1     Princípio Da Proteção Integral

Como pode-se perceber, a lei é enfática quando garante que sejam priorizados de modo irrefutável a proteção integral as crianças e adolescentes, por serem indivíduos em formação. Encontrando-se em período de desenvolvimento psíquico-mental, moral-ético e físico. Tem na figura do Estado, da sociedade e da família pontos de apoio, de defesa, proteção e de direcionamentos para a molda de caráter e personalidade (BRASIL, 1988).

Mesmo que esses estejam ainda em processo de aquisição e desenvolvimento de competências necessárias para a vida adulta, são vistos e considerados pela lei como cidadãos com total usufruto de direitos, sendo necessária proteção Integral, desde seu nascimento, até sua maioridade. Como aponta o caput supracitado do artigo 227º, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Do ponto de vista do direito, o Princípio da Proteção integral, são medidas legais imperativas, que favorecem as crianças e adolescentes, amparando-as e resguardando-as de modo material, físico, cognitivo e simbólico de ações e omissões negativas por parte de terceiros. Determinando e obrigando as esferas sociais, administrativas, legislativas e legais a agirem a seu favor e em sua proteção. Uma vez que, por si, seriam incapazes. Pois são indivíduos que possuem uma fragilidade de constituição próprias dos hominídeos, o que os torna, até certo ponto, dependentes de colaboração, auxílio e direcionamentos para a maturação de certas capacidades, que surgem apenas na proximidade da vida adulta (VERCELONE, 2018). Assim como Vercelone (2018) menciona por ocasião da obra organizada por Cury:

Trata-se de uma situação real baseada em uma condição existencial ineliminável: o filhote humano […] é incapaz de crescer por si; durante um tempo muito mais longo do que aquele que outras espécies não humanas, ele precisa de adultos que o alimentem, o criem, o eduquem, e estes adultos, inevitavelmente, têm instrumentos de poder, de autoridade, em relação aos pequenos. Isto vale não apenas no que tange à relação entre filhos menores e pais, os primeiros e mais diretos protetores, como também na relação entre crianças e outros adultos, de regra, os pais. (VERCELONE, apud CURY, 2018).

Nota-se que na construção do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, há um profundo e contundente direcionamento para que seja dado reforço e ênfase a esse princípio, como se percebe nos comentários apresentados na reedição da obra compilada por Cury (2018), tratando dos posicionamentos na visão jurídica sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente:

O ECA, enfim, está comprometido com a proteção integral da criança e do adolescente, vistos sob um novo olhar e, com prioridade, agora considerados cidadãos, sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento. (CURY, 2018, p. 21)

          Salienta-se no decurso do ECA, a doutrina de proteção e garantias de direitos, reprimindo abusos e exposições infantojuvenis. Obrigando a família, o Estado e a sociedade com absoluta prioridade garantirem proteção integral, dignidade absoluta e condições éticas, morais, físicas e mentais para o crescimento salutar desses indivíduos (CURY, 2018).

2.1.2 Princípio Da Dignidade Humana

Em consoante, tem-se o Princípio da Dignidade Humana, no qual toda e qualquer situação que seja um obstáculo a integridade, honra e moral correlacionada a criança e ao adolescente, devem ser objeto de superação e proteção por parte da sociedade, família e Estado. Independente das circunstâncias encontradas, aplicando-se quaisquer recursos ou políticas públicas, para que todos os direitos que lhe são dirigidos sejam respeitados. Como fica evidenciado e pormenorizado no artigo 4º. e 5º. da Lei n.º 8.069/1990:

Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Art. 5º.Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. (BRASIL, 1990).

A temática Dignidade humana ainda é algo relativamente novo, nos compêndios da evolução humana e da história das Constituições, inclusive na brasileira. Necessário se faz dizer que, tal princípio é apresentado desde a Carta dos Direitos Humanos (1948), onde os representantes dos países signatários, optaram por resguardar a humanidade de fatos semelhantes aos que houveram por ocasião da Grande Guerra, onde direitos foram cerceados, uma parcela da humanidade esteve exposta a cenário humilhante, degradante, devastador, no qual o indivíduo foi comparando a condição de coisa sem medida e, com possibilidade de descarte (ONU, 1948).

Com intuito de enfatizar o valor humano dando-lhe garantias de uma vivência com preceitos de dignidade, no artigo 1º – III da Constituição Federal Brasileira (1988), esse Princípio está frisado, tornando-se basilar, estendidos a todos os cidadãos, mas que de forma concisa é prioritário ao universo infantojuvenil (BRASIL, 1988).

Este, garante que crianças e adolescentes tenham condições adequadas de criação, moradia, educação, com convivência social e familiar salutar, englobando os aspectos psíquicos, morais, éticos, emocionais e materiais enriquecedores para uma formação cidadã, social e mental (BRASIL, 1988).

E traz consigo a carga emblemática de os indivíduos serem portadores de um valor intrínseco, pessoal, intransferível e inegociável. Extensível a toda humanidade, sem distinção, limitação ou descriminação. Permitindo que tenham direitos a uma estrutura que lhes favoreça ao menos com o mínimo necessário para viver com dignidade e cidadania (ONU, 1948). Como enfatiza Rosenvald e Farias, no trecho que segue:

Com esta perspectiva, os direitos da personalidade – ultrapassando a setorial distinção emanada da histórica dicotomia direito público e privado – derivam da própria dignidade reconhecida à pessoa humana para tutelar os valores mais significativos do indivíduo, seja perante outras pessoas, seja em relação ao Poder Público. Com as cores constitucionais, os direitos da personalidade passam a expressar o minimum necessário e imprescindível à vida com dignidade. (FARIAS e ROSENVALD, 2009)

Tanto mais que, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 18º, dá diretivas de a quem cabe a responsabilidade de salvaguarda os direitos, proteger e impedir situações que possibilitem o infringir da dignidade infantojuvenil, ao assim instruir:

Art. 18É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. (BRASIL, 1990)

A partir de Leis, estatutos, doutrina da Proteção Integral e os Princípios da Dignidade Humana e da Prioridade Absoluta, foram estabelecidos requisitos, condutas e responsabilidade que compõem elementos básicos para que os interesse de crianças e adolescente estejam assegurados. Considerando, parâmetros de dignidade, integridade, segurança, prioridade e de proteção dos direitos fundamentais, personalíssimos e essenciais. Um dos principais documentos direcionado a esse fim, ficando abaixo apenas da Carta Magna/88, é o Estatuto da Criança e do Adolescente.

2.2 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Diante de situações que comprometiam o bem-estar, integridade, formação, proteção e desenvolvimento salutar infantojuvenil, é promulgada em 13 de julho de 1990, a Lei Federal n.º 8.069/90, nomeado de Estatuto da Criança e do Adolescente, comumente chamada pelas iniciais ECA.

Que surge como meio de articular medidas para sanar atos e ações de negligência e maus-tratos contra crianças e adolescentes, regulamentando o determinado no artigo 227º, da Constituição Federal de 1988. Garantindo direitos de proteção, acolhimento, equidade, liberdade e igualdade a todas as crianças e adolescentes, independente da raça, origem, credo, sexo, cor, classe econômica ou atipicidades (BRASIL, 1990).

Como bem afirmou Curry (2018), no ECA comentado, o Estatuto tem um alcance considerável, uma característica de uma constituição voltada especificamente ao público infantojuvenil, e que buscou abarcar as necessidades pungentes das crianças e adolescentes, livrando-os de situações de violência, miserabilidade e ausência de fatores elementares a um bom convívio com desenvolvimento digno.  Como pode-se observar no trecho a seguir:

O Estatuto da Criança e do Adolescente é considerado uma verdadeira constituição da população infantojuvenil brasileira. Estabelece as condições de exigibilidade para os direitos da criança e do adolescente, consagrados na Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1990) e demais normativas internacionais, bem como na Constituição da República Federativa do Brasil (1988) e nas leis que a complementam. (CURY, 2018, p. 24)

          Nota-se que, juntamente com o Estatuto, a concepção de criança e adolescente cria significância e importância disto do até então empregado. Até a promulgação do ECA, era comum e acertado aplicar o termo “Menor” àqueles indivíduos que não tivessem entrado na vida adulta e com idade inferior a 18 anos. Porém, embora usual e correto, a terminologia possuía uma sobrecarga estigmatizante, com uma significação pejorativa e discriminatória. Uma vez que, possuía uma correlação a inépcia infantil, e conexão a ideia de indivíduo sobre tutela e sem direitos plenos ou até mesmo na marginalidade (CURY, 2018).

Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, aboliu-se o termo menor e passou-se a distinguir os estados de maturação de crianças e de adolescentes. Identificando criança como o indivíduo até 12 anos incompletos, e adolescentes aqueles que possuam idade entre 12 e 18 anos, e essa nova leitura de nomenclatura aparece em todos os contornos redacionais do ECA, mas a definição da idade, encontra-se estabelecida em seu artigo 2º (BRASIL,1990).

Nesse diapasão, vale ressaltar que quando se cria uma diferenciação terminológica, acompanham-se situações de particularidades. Tanto crianças como adolescentes possuem os mesmos direitos fundamentais, proteção e grau de importância. Entretanto, enquanto se trata de atos infracionais, às crianças são indicadas disposições protetivas, disposta no artigo 101º do ECA (BRASIL, 1990), desde orientação, apoio, acompanhamento, tratamento médico/psiquiátrico ou psicológico, inclusão em programas de acolhimento familiar, entre outras medidas, resguardo e apoio.

Aos adolescentes, aplica-se o previsto no artigo 112º da Lei 8.069/1990 (BRASIL, 1990). E vão desde medidas protetivas até socioeducativas. Considerando sempre, o que determina o Art. 112, em seu § 1º – “A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração” (BRASIL, 1990). 

Na compilação do Estatuto da Criança e do Adolescente é reforçada a proteção integral, no aspecto do desenvolvimento social e pessoal, na garantia de sobrevivência, na integridade moral, psíquica e física. Considerando estes como sujeitos em desenvolvimento, com absoluta prioridade em relação à família, a sociedade e ao Estado. Detentores de direitos perenes, exigíveis, irrenunciáveis e intransferíveis. Assim, podemos verificar que o ECA, traça nortes legais para garantir tais direitos, em reforço a esse entendimento, podemos examinar o ordenado no artigo 3.º na supracitada lei:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (BRASIL, 1990)

De modo enfático, as crianças e o adolescentes, deixam de ser indivíduos tutelados e sem total gozo de direito, para serem elevados a situação de cidadãos, com oportunidades, direitos, deveres, prioridades e proteção.

2.3 RECONHECENDO OS ASPECTOS DA REPONSABILIDADE PARENTAL NA EFETIVA PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Com relação aos aspectos de responsabilidade e proteção infantojuvenil, percebe-se que no caminhar evolutivo das sociedades, os modelos, constituições e deveres relacionados a família foram sendo alterados, readequando-se as realidades vividas historicamente. As leis acompanharam tais transformações, possibilitando suporte, proteção e penalidades (REZENDE, 2016).

As Leis brasileiras albergam dispositivos que concedem e obrigam as famílias e aos responsáveis legais de crianças e adolescentes, cumprirem certas ações que venham favorecer aos indivíduos sobre sua tutela. Inclusive o supracitado artigo 4.º do ECA, discorre de modo claro sobre tais responsabilidades. Para que, de forma concreta, esses cresçam em condições salutares de desenvolvimento e se tornem cidadãos adultos idôneos, autossuficientes, plenos e em pertencimento com a sociedade (CURY, 2018).

Não somente leis e estatutos, apresentam preocupação em indicar e disciplinar sobre as funções e responsabilidades parentais na criação, proteção e cuidados com crianças e adolescentes. A sociedade organizada e setores dos mais diversos, também levantam bandeiras a favor da causa infantojuvenil e propõem uma sólida e moral conduta no trato com estes. Fato em verdade, que um dos mais celebres príncipe papal, Karol Wojtyla (João Paulo II, 1994), em sua carta direcionada a família, expõe com convicta eloquência ser responsabilidade da família, pais ou responsáveis a legítima e primordial competência de cuidar, amar, resguardar, proteger suas proles e observar sua educação, crescimento e desenvolvimento, circundado de preceitos morais, éticos e favorecendo autonomia e a não-maleficência (JOÂO PAULO II, 1994). Sob esse prisma familiar, o pontífice João Paulo II (1994, p.2), escreveu:

Os pais são os primeiros e principais educadores dos próprios filhos e têm também neste campo uma competência fundamental: são educadores porque pais. Eles partilham a sua missão educadora com outras pessoas e instituições, tais como a Igreja e o Estado; todavia, isto deve verificar-se sempre na correta aplicação do princípio da subsidiariedade. Este implica a legitimidade e mesmo o ónus de oferecer uma ajuda aos pais, mas encontra no direito prevalecente deles e nas suas efetivas possibilidades o seu limite intrínseco e intransponível. O princípio da subsidiariedade põe-se, assim, ao serviço do amor dos pais, indo ao encontro do bem do núcleo familiar. Na verdade, os pais não são capazes de satisfazer por si sós a todas as exigências do processo educativo inteiro, especialmente no que toca à instrução e ao amplo sector da sociabilização. A subsidiariedade completa assim o amor paterno e materno, confirmando o seu carácter fundamental, porque qualquer outro participante no processo educativo não pode operar senão em nome dos pais, com o seu consenso e, em certa medida, até mesmo por seu encargo. (JOÃO PAULO II, 1994, p. 2)

Mister esclarecer que, a família é considerada base social, concepção defendida sobre as regras religiosas, e as faces legais, esta é detentora de direitos e deveres. No Brasil, a Carta Magna, assegura a dignidade humana dos integrantes do núcleo familiar. Nos estudos de Venosa (2007), sobre os aspectos constitucionais relacionados a família, vê-se:

[…] situam-se os institutos do direito de família, o mais humano dos direitos, como a proteção à pessoa dos filhos, direitos e deveres entre cônjuges, igualdade no tratamento entre estes etc. Foi essa Carta Magna que também alçou o princípio constitucional da igualdade jurídica dos cônjuges e dos companheiros (art.226, § 5º) e igualdade absoluta dos filhos, não importando sua origem ou a modalidade de vínculo (art. 227, § 6º). Ainda, Constituição de 1988 escreve o princípio da paternidade responsável e o respectivo planejamento familiar (art.226, §7º). O Código Civil de 2002 complementou e estendeu esses princípios, mas, sem dúvida, a verdadeira revolução legislativa em matéria de direito privado e especificamente de direito de família já ocorrera antes, com essa Constituição. (VENOSA, 2007).

O certo é que, se existe uma responsabilidade agregada a obrigatoriedade, infere-se que existem consequências na quebra deste procedimento, não importando as razões que originaram a violação do dever jurídico. E isso se aplica a todos os campos que envolvam o cotidiano, cuidados, exposição, interação, convívio, contatos, influências com crianças e adolescentes, inclusive a utilização das mídias e meios digitais.

3 O ABANDONO DIGITAL NA NOVA DINÂMICA FAMILIAR EM FACE DA GLOBALIZAÇÃO E DO IRRESTRITO ACESSO AO CIBERESPAÇO

Por outro lado, no pós-guerra o uso das tecnologias ganha paulatino enraizamento e corpo. Abrindo possibilidades, inovação e dinamização social, político e econômico. Com o ultrapassar do milênio, a efervescência da globalização exigiu uma engrenagem que desse corpo e solidez a sua difusão, trazendo consigo como preconização e suporte, o uso tecnológico midiático. Tecnologias de ponta foram criadas e inovadas a miúde. Porém, em 2020, tanto a globalização como as tecnologias e meios midiático ganham uma dimensão maior do que a que se supunha, com o advento da SARS-CoV-2. Em que, todos os aspectos sociais, sanitários, econômicos, geopolíticos foram afetados. O poder e extensão das tecnologias e espaços digitais foram utilizados com maior eficácia e eficiência para combater a instaurada crise e eminente colapso mundial (CRUZ JUNIOR, 2020).

Desde então, o acesso aos meios digitais tornou-se contínuo, massivo, viciante e ininterrupto, adentrando em todos os aspectos humanos e sociais. Abrangendo todos os sujeitos

Os aparatos digitais e midiáticos, passam a ser comuns, necessários e indispensáveis a rotina humana e ao funcionamento social. Desde os idosos, adultos, passando aos adolescentes e crianças, consomem de modo ávido, perturbador e pouco criterioso, conteúdos computacionais. O uso irrestrito, por si só, já é fator preocupante, agrava-se pela inegável falta de moderação, por parte dos adultos, de conteúdo, sites e interações dos entes sobre sua tutela. O que deu origem a um fenômeno em expansão e preocupante, denominado “abandono digital”. Caracterizado pelo desenvolvimento, oferta exacerbada, acessibilidade irrestrita, interação não mediada dos meios digitais, por indivíduos pertencentes ao grupo infantojuvenil, sem uma moderação de um responsável parental, causando insegurança jurídica e social. O que Cruz Júnior (2020), no artigo apresentado para a Revista dos Tribunais, discorre com proficiência sobre o evento em ascensão.

Criança conectada à Internet sem a supervisão de um adulto é um menor abandonado digital. Por isso, os responsáveis precisam estar mais presentes na vida dos filhos, ouvindo e conhecendo suas aventuras no mundo on-line, sabendo de que e com quem os filhos estão brincando, inclusive no ambiente digital. Isso o fará se sentir acolhido, facilitando maior proximidade e controle sobre o que faz quando está conectado. (CRUZ JÚNIOR, 2020)

Constata-se que, as tecnologias e as mídias passaram a ser invasivas. O ciberespaço é transitado por inúmeras informações e sujeitos, alguns com certos traços morais, mais outros despidos de tais aspectos, escrúpulos e ideologias. Conceitualmente, ciberespaços são compreendidos como “espaços de comunicação abertos pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores”. (LÉVY, 1999). Estamos tratando de uma terra que agora que começa a apresentar dinâmicas legais de interação e responsabilidade, mas que desde seu surgimento tem admitido e admite inúmeras e indistintas formas de interação e utilização entre usuários, possuindo força, influência e uma dinâmica própria. Guedes (2013), em sua tese de pós-graduação em comunicação, para a Universidade de Brasília, faz um breve relato das origens do processo de utilização, divulgação e proliferação das redes sociais e seu poder influenciador, com a convergência e trânsito do ciberespaço por pessoas das mais diferentes origens, mas com ideologias e interesses em comum:

A semente de todo este processo para chegar as Redes sociais virtuais foi plantada ainda nos anos 1990. Começaram a surgir os blogs no ciberespaço, eles foram os primeiros para determinar os rumos que tomariam a aglutinação de pessoas em um ambiente digital por causa dos seus interesses em comum. (GUEDES, 2013)

Nos compêndios de análise juristas, há um posicionamento de Campos (2004), nos seus estudos sobre o direito das pessoas, em que este, afirma estar na família os elementos formativos, emancipatórios, afirmativos e constitutivos do ser humano, é na relação com o outro que o indivíduo encontra bases para crescer e se tornar completo, como demonstra o trecho a seguir:

O dever na família assume radicalmente a característica do dar (-se). Cada um, sem renunciar a si mesmo, mas, sendo completamente e cada vez mais “amorosamente” ele mesmo, vê em cada um dos outros o que precisa para ser completamente. Dá-se e recebe; ama e é amado; perdoa e é perdoado; disponibiliza-se e vive em comunhão; tenta, de tal maneira, ser um com os outros, que os outros se tornam elementos constitutivos do seu ser. (CAMPOS, 2004, p. 165)

Sabe-se que no mundo contemporâneo há inúmeras inconveniências e agentes que dispersam a atenção dos indivíduos e afasta-os do seio e convívio familiar em termos de qualidade e comprometimento. Entretanto, responsabilidades, compromissos e obrigatoriedades devem ser mantidos como prioritárias. A isso se inclui a responsabilidade parental por crianças e adolescentes.

Em termos morais é delegado a família o propósito de amar, zelar e cuidar. Em termos éticos, cabe aos responsáveis o poder e direito de educar, dar suporte de beneficência/não-maleficência e autonomia. Pelos preceitos legais, cabe aos responsáveis parentais a fiscalização, zelo, cuidado, proteção e orientação das crianças e adolescentes, por serem indivíduos em formação e em vulnerabilidade de discernimento. Independente de suas origens, poder aquisitivo, credo, das jornadas de trabalho ou desenvoltura psicopedagógica. A lei é taxativa, a eles pertence a responsabilidade primeira de cuidar, amar, educar e proteger aqueles sobre sua guarda (BRASIL, 1988).

Sendo assim, a supervisão e cautela com o que crianças e adolescente interagem nas redes e meios midiáticos precisa ser imperativa. O não acato a esse requisito, suscita situações de eminente perigo, sejam de ordem moral, sexual, intelectual, psíquicas, entre outras. O que implica no abandono digital e, em incorrências de descumprimento de direitos basilares previstos na Carta Magna, no Estatuto da Família e nos preceitos estabelecidos no ECA.

4 PONDERAÇÕES SOBRE OS RISCOS CAUSADOS PELO ABANDONO DIGITAL E AS POSSÍVEIS PENALIDADES DO ATO OMISSIVO

É notório que a cultura digital, exige que tanto crianças, como adolescentes e adultos estejam conectados e aprendam o uso das tecnologias ativas. Mas as duas primeiras figuras supracitadas, distingue-se dos adultos no que concerne ao desenvolvimento cognitivo e a capacidade de diferenciar e identificar riscos a sua integridade física e mental. Demandando, cuidados especificados de modo translúcidos e dispostos no Estatuto da Criança e do Adolescente (CURY, 2018).

Sob tal perspectiva, as facilidades de acesso do ciberespaço, o não conhecimento real de quem se encontra de fato na outra ponta de interação, os riscos de vazamento de dados. São antecedentes para um maior cuidado e fiscalização com o que crianças acessam e com quem interagem (CRUZ JUNIOR, 2020).

Outrossim, se aos responsáveis parentais é estendida de modo instantâneo a incumbência de cuidar da educação, formação psíquica, segurança, bem-estar e espólio da criança e do adolescente. Ato este considerado pelo Código Civil Brasileiro, de 2002, como poder familiar, indicando uma responsabilidade objetiva. Traz, em contrapartida, no agir de forma displicente e omissiva, a responsabilidade civil, prevista no artigo 932, do Código Civil, em seu inciso I, que ordena: “Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I – os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia” (BRASIL, 2002). De sorte que, segundo ensinamentos de Gonçalves (2022), a mesma lei infraconstitucional, determina que este direito protetivo e poder familiar ou parental, não pode ser renunciado, transferido ou delegado a terceiros e, nem prescreve.

De modo geral, o abandono digital passou a fazer parte de um leque extensivo de modos de ameaça e de violação dos direitos infantojuvenis. Causado pela omissão parental, do dever de vigiar e resguardar as crianças e adolescentes sob sua responsabilidade, de ambientes hostis, com interação direta a meandros e indivíduos desconhecidos. Estes sem uma vigilância concreta podem ser expostos a conteúdo diversos e desaconselháveis, em que estão passíveis de sofrerem alto grau de lesão a honra, integridade física e mental, como também de incorrerem na possibilidade de exposição e contatos de cunho obscenos e sexuais. Além de não haver uma certeza e verificação factual de quem é de fato o indivíduo que está na outra ponta de comunicação, nem da certeza de que dados pessoais e que envolvam crianças e adolescentes, não serão roubados, vazados, expostos e usados de forma pérfida (CRUZ JUNIOR, 2020). Uma advertência relevante, feita por Maruco e Rampazzo (2020), para a Revista de Direito de Família e Sucessão, em meio a efervescência da necessidade do uso das mídias, serve como alerta para os pais, sobre a interação livre e não moderada de jovens e crianças nas redes sociais: “O uso descontrolado desses meios de comunicação vêm desencadeando inúmeros transtornos que, de forma desmedida, acaba por afetar a vida das pessoas, tanto na comunidade, quanto no núcleo familiar” (MARUCO & RAMPAZZO, 2020).

Ainda segundo Maruco e Rampazzo (2020) esse acesso e uso desmedido dos meios tecnológicos e midiáticos afetam: as relações sociais e humanas; os níveis de desenvolvimento da linguagem e comunicação; a formação e desenvolvimento afetivo e cognitivo; empobrecendo vínculos familiares; diminuindo o convívio e interações interpessoais; gerando um contato crônico com as telas; favorecendo a agressividade, rebeldia, bullying e o desrespeito e quebra de autoridades preexistentes.

No que tange as disciplinas e leis que sejam voltadas diretamente para essa modalidade omissiva, o tema ainda é recente, tem-se pouca literatura e estudos que versem sobre este. Mas vale lembrar que, a abandono digital, pode configurar abandono de incapaz, com sua conduta tipificada no Código Penal, no artigo 133, sendo caracterizado como um dolo específico de violação do dever de zelar pela segurança do incapaz, colocando-o em perigo, Brasil (1940). Encontrando na letra da lei, na seguinte forma:

Art. 133 Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena – detenção, de seis meses a três anos. § 1º – Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de um a cinco anos. (BRASIL, 1940)

Esse descuido pode trazer consequências legais, quando por falta de moderação ou na inobservância das ações de adolescentes e crianças nas redes sociais, estes pratiquem crimes ou atos ilícitos. São os casos de ciberataques, cyberbullying, crimes contra honra, entre outros. Onde os pais e responsáveis parentais responderão civil e criminalmente, pelos atos praticados pelos sujeitos incapazes, sob seus cuidados. Com pena que varia segundo a conduta e o dano. Visando a reparação dos danos morais e materiais, se houverem (BRASIL, 2002).

Diante do exposto, se o descuido parental, no ato de proteger aos seus tutelados, desencadear a violação dos direitos de personalidade, ferindo o direito à dignidade, pode-se caracterizar em dano moral, que a luz do Direito de Família, encontra admissibilidade, sem vedações no ordenamento jurídico. Passível de ressarcimento em pecúnias pelos danos morais (VENOSA, 2016).

Em última análise, seja por meio da doutrina de Proteção Integral, dos Princípios da Dignidade Humana e da Prioridade Absoluta, das jurisprudências ou de critérios éticos e morais, ao responsável parental são designados deveres e responsabilidade para com as crianças e adolescentes sobre sua tutela. Inclusive de resguardá-los dos perigos que caminham em paralelo com o uso dos meios tecnológicos e mídias sociais (MARUCO & RAMPAZZO, 2020).

Nessa vereda, é dever dos pais e responsáveis ter um olhar mais atento, e estendido aos acessos e conteúdos digitais. Sob pena de um consentimento velado, de ações que coloquem em risco a segurança de crianças e adolescentes. Impingindo danos morais; exposição de imagens; interação prematura a conteúdos que afetarão a cognição e crescimento salutar; apropriação de ideias distópicas ou agressivas; aliciamentos; depressão/ansiedade, desordem no sono, instabilidade emocional, transtornos compulsivos, entre tantos riscos possíveis (MARUCO & RAMPAZZO, 2020).

Entende-se que a dinâmica da globalização, a contemporaneidade e a sociedade, apresentam uma dinâmica e singularidade própria, que moldam o agir e prioridades humanas. Que embora as tecnologias e meios midiáticos sejam necessários, facilitando a interação, funcionando como mola mestra da atual conjuntura político-social-econômica. Necessita-se de critérios no uso, no tempo disperso com estes e na permissividade de acessos infantojuvenil. Como também a conscientização de que máquina nenhuma ou entretenimentos e meios midiáticos, podem substituir a presença, contato e interação familiar (MARUCO & RAMPAZZO, 2020). Pois é nesta que são formados os espelhamentos de caráter, de respeito, de afetividade, de pertencimento concreto a um meio, de fomentação de ideias, de senso comum. Onde se geram as dialéticas e as descobertas de necessidades e busca de realizações. O amor, zelo e controle (dentro dos limites necessários) familiar é que darão segurança, identidade enquanto sujeitos, estabilidade emocional e aporte físico e social a esses indivíduos em formação (CAMPOS, 2004).

5 CONCLUSÃO

No desenvolver deste trabalho foram empregados esforços para observar e identificar os aparatos e leis que disciplinam sobre as garantias de direitos estendidas ao público infantojuvenil. Fazendo uma análise sobre os aspectos dos Princípios da Dignidade Humana e o Princípio da Proteção Integral, que são estendidos a essa parcela social de forma pétrea. Estendendo o estudo concomitantemente à investigação das responsabilidades parentais, nas ocorrências de abandono digital infantojuvenil. De modo a delinear o fenômeno emergente na nova óptica da globalização, determinando os riscos para crianças e adolescentes, e especificando as penalidades advindas com o ato omissivo.

Identificou-se que com a Constituição Federal de 1988, nortes foram traçados para a construção de mecanismos protetivos, fiscalizadores e punitivos para atos que agredissem a dignidade humana e direitos infantojuvenis. E de modo meticuloso e sólido, o Estatuto da Criança e do Adolescente, trouxe critérios de proteção, seguridade e blindagem do objeto tutelado. Todo o arcabouço legal, gira em torno da proteção integral, de garantias de direito, e da dignidade absoluta.

Percebeu-se que, no processo evolutivo natural da sociedade, houve transformações profundas e que o Sistema de Globalização encontrou nas tecnologias um suporte de sustentação e de alargamentos do poder de alcance. Onde o processo tecnológico e midiático ganhou expansão, efervescência e alcance mundial. Tornando-se necessário, difuso e viciante. Encontrando receptividade em todos os níveis e extensões sociais. Dessa feita, surgiu paulatinamente o processo de livre acessibilidade e massificação dos meios digitais. Que se estendeu inclusive ao público infantojuvenil. Contudo, notou-se que estes interagem e consomem conteúdos digitais, de forma livre, irrestrita e sem moderação parental, acessando e navegando pelo ciberespaço indiscriminadamente. O que gera riscos de ordem físico-mental, moral-educacional, intelectual e sexual-afetiva. Causada pela ação omissiva do ato de não cuidar, observar, zelar e proteger por parte dos responsáveis parentais.

Em suma, as crianças e adolescentes são tutelados do Estado, sociedade e família, com uma gama de leis e mecanismos que definem serem estes dotados de direitos inalienáveis. Sendo delegada à família “o poder familiar”, que disciplina os deveres e obrigatoriedades parentais para com as crianças e adolescentes. Bem como lhes indica uma responsabilidade objetiva. O ato do descuido com os acessos e interações de crianças e adolescente nas mídias sociais, configura abandono digital, por ato omissivo, podendo causar dolo das mais variadas naturezas aos incapazes, sobre tutela ou a terceiros, pela ação direta dessas crianças e adolescentes, nas redes sociais e ciberespaços. Quando ocorre o abandono digital, incorre instantaneamente a quebra da Proteção Integral, prioritária e absoluta, e riscos de ferir a dignidade humana desses indivíduos. Sendo um ilícito, passível de penalidades, para os responsáveis parentais.

Não se trata de proibir o uso, por ser necessário e inevitável. Mas moderá-lo e disciplinar o tempo gasto, verificando os acessos, as fontes de interações, os tipos de conteúdos e as mensagens trocadas. Definindo senhas, bloqueios, além de estipular tempo de qualidade para o convívio familiar, distante dos meios tecnológicos, para haver de fato uma troca de afeto, cuidado, espelhamentos morais, éticos e intelectuais. Para que estes indivíduos em processo de formação tenham suporte emocional, psíquico e espirituais, e se sintam pertencentes a um grupo social que os acolhe, incentivam, educam, apoiam e protegem.

REFERÊNCIAS

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VENOSA, Silvio de Savio. Direito Civil: direito de família. 16ª.  ed. – São Paulo: Atlas, 2016. Coleção de Direito Civil; v.6


1 Acadêmicos do curso de Direito do Centro Universitário Una Bom Despacho. IES/Ânima Educação-2023. E-mail: Gustavocravo@outlook.com,ORCID:0009-0009-3914-6064, 

1 Acadêmicos do curso de Direito do Centro Universitário Una Bom Despacho. IES/Ânima Educação-2023.Email: thiagocravo@outlook.com, ORCID: 0009-0004-3086-5870

2Orientadora – Mestre em Direito Processual.

Artigo apresentado como requisito parcial para a conclusão do curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Una Bom Despacho.