UM ESTUDO CONTEMPORÂNEO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO MUNICÍPIO DE ITABELA/BA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10204847


Nery, Ivanilson Pereira²
Pestana, Marcos Farias³


RESUMO

A presente pesquisa versou sobre a judicialização da saúde no município de Itabela, no estado da Bahia, como forma encontrada pela população de usuários do Sistema Único de Saúde para garantir a efetivação das políticas públicas de saúde no âmbito municipal. Dessarte, esse estudo partiu do seguinte questionamento: quais os impactos da judicialização da saúde para a efetivação de suas políticas públicas no município de Itabela/BA? Para tanto, teve como objetivo geral analisar o quanto as ingerências do Poder Judiciário afetam a cumprimento do direito fundamental à saúde bem como a concretização das políticas públicas nessa área e seus reflexos para a população e para o sistema de saúde pública do município de Itabela/BA. A seu turno, os objetivos específicos empenharam-se em contextualizar os avanços da legislação brasileira quanto ao direito fundamental à saúde; em dissertar sobre as principais causas da judicialização da saúde pública brasileira, em especial a do município objeto do presente estudo; e, finalmente, em elucidar os principais impactos do ativismo judiciário no âmbito da saúde pública municipal itabelense e, especialmente, nas consequências das ingerências indevidas do Poder Judiciário para a relação entre a população itabelense e o sistema de saúde pública da referida localidade. Com essa finalidade, foi adotada como metodologia de investigação o estudo de caso e a pesquisa documental de caráter qualitativo, valendo-se da busca por documentos, livros e estudos já publicados em artigos a respeito do tema, bem como dados do município em pauta junto aos órgãos competentes. Destarte, a pesquisa tornou evidente que, embora a judicialização da saúde, por um lado, assegure o cumprimento do direito fundamental à saúde, por outro lado, esse fenômeno impacta negativamente outros âmbitos do poder executivo municipal, dificultando, sobretudo, o cumprimento das determinações da LC nº 101/2000, referentes ao orçamento administrativo, bem como a realização dos demais aspectos das políticas públicas municipais no âmbito da saúde, ademais de contribuir para a sobrecarga do Poder Judiciário em razão do volume crescente de demandas.

Palavras Chaves: Direito Fundamental. Saúde Pública. Judicialização da Saúde.

ABSTRACT

This research focused on the judicialization of health in the municipality of Itabela, in the state of Bahia, as a way found by the population of users of the Unified Health System to guarantee the implementation of public health policies at the municipal level. Therefore, this study was based on the following question: what are the impacts of the judicialization of health on the implementation of public policies in the municipality of Itabela/BA? Therefore, the general objective was to analyze how much the interference of the Judiciary affects the fulfillment of the fundamental right to health as well as the implementation of public policies in this area and its consequences for the population and the public health system in the municipality of Itabela/ B.A. In turn, the specific objectives sought to contextualize advances in Brazilian legislation regarding the fundamental right to health; to talk about the main causes of the judicialization of Brazilian public health, especially in the municipality that is the subject of this study; and, finally, in elucidating the main impacts of judicial activism in the context of municipal public health in Itabelense and, especially, in the consequences of undue interference by the Judiciary for the relationship between the Itabelense population and the public health system in that locality. For this purpose, case studies and qualitative documentary research were adopted as research methodology, using the search for documents, books and studies already published in articles on the topic, as well as data from the municipality in question along with to the competent bodies. Thus, the research made it clear that, although the judicialization of health, on the one hand, ensures compliance with the fundamental right to health, on the other hand, this phenomenon negatively impacts other areas of municipal executive power, making it difficult, above all, to comply with the determinations of LC nº 101/2000, referring to the administrative budget, as well as the implementation of other aspects of municipal public policies in the field of health, in addition to contributing to the overload of the Judiciary due to the increasing volume of demands.

Keywords: Fundamental Right. Public Health. Health Judicialization.

1. INTRODUÇÃO

O advento do Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil, teve o condão de superar diversos obstáculos ao acesso da população aos serviços de saúde pública. Contudo, alguns entraves ainda persistem, especialmente, o desequilíbrio entre o alcance da oferta de serviços pelo SUS e a demanda crescente do cidadão por tais serviços. Todavia, não se pode negar que o SUS representa uma das maiores conquistas do ordenamento jurídico pátrio no âmbito da efetivação do direito fundamental à saúde assegurado pela Carta Política brasileira de 1988.

Assim, dentre as ações macro do SUS, destaca-se a garantia das políticas públicas de saúde e municipalização do setor. Após longas décadas de um modelo centralizador de administração implantado pelo regime militar, o advento da democratização do país, assegurado pela promulgação da Carta Magna de 1988, formou as bases para a adoção de um sistema de saúde descentralizado, voltado para o atendimento das necessidades locais da população por meio da municipalização dos serviços públicos de saúde.

Nesta direção, segundo o Ministério de Saúde, em uma avaliação feita em 64 mil domicílios em 2014, 3% dos entrevistados não conseguiram atendimento, 38,8% alegaram a falta de profissionais médicos, 32,7% não conseguiram vaga ou senha para o atendimento (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016). Esses dados demonstram a relação estreita existente entre as falhas no atendimento ao público e a procura dos usuários pelo Poder Judiciário a fim de verem garantido o acesso ao serviço de saúde pública.

Em razão disso, desenvolveu-se nos usuários do SUS de Itabela, município objeto dessa pesquisa, a cultura de recurso prévio e imediato à Justiça, pela via do Ministério Público, com a finalidade de obter acesso aos serviços de saúde pública, sem que esses tenham sido sequer obstaculizados à população. À vista disso, questionou-se: quais os impactos da judicialização da saúde na efetivação de suas políticas públicas no Município de Itabela-BA?

Ante o exposto e com vistas a estruturar um planejamento de ações eficazes no combate ao problema em pauta, o objetivo geral desta pesquisa buscou analisar os impactos da intervenção judiciária na efetivação do direito constitucional à saúde, bem como os efeitos do cumprimento das referidas intervenções nas políticas públicas do sistema de saúde pública do município objeto do presente estudo.

Por conseguinte, os objetivos específicos dessa pesquisa visaram contextualizar os avanços legislativos brasileiros no âmbito da saúde pública, tomando como referência as disposições constitucionais pretéritas, sobretudo, a constituição vigente; elucidar as principais razões do ativismo judicial na esfera da saúde pública brasileira, especialmente, no município de Itabela-BA; e, por fim, estudar a maneira como os impactos do cumprimento das sentenças judiciais reverberam no acesso da população do município em estudo aos serviços do SUS.

A relevância do estudo da problemática da judicialização da saúde pública reside no agravamento crescente da sobrecarga enfrentada pelo judiciário brasileiro, cujos processos avolumam-se sem que a quantidade de servidores nos órgãos judicantes possa fazer frente à tamanha demanda. Nesse contexto, os pedidos judiciais referentes ao atendimento da população no domínio da saúde pública municipal contribuem, sobremaneira, para o agravamento da situação. Outrossim, esse quadro revela a ineficiência das políticas públicas de saúde no contexto da gestão municipal. Dessa forma, faz-se imprescindível aos operadores do Direito a visão de longo alcance no que concerne aos impactos das intervenções judiciais nos domínios da administração pública municipal.

Nesse cenário, o percurso metodológico adotado para esse trabalho foi a pesquisa qualitativa lastreada pelos procedimentos de pesquisa documental e bibliográfica, viabilizados por intermédio de plataformas virtuais de pesquisas como a Scientific Eletronic Library Online – SciELO, o Google Acadêmico e o repositório bibliográfico de universidades federais e da CAPES, compreendendo as publicações do período de 2012 a 2022. Ademais do estudo sistematizado das perspectivas doutrinárias nacionais a respeito do tema sob análise e da jurisprudência dominante nos tribunais brasileiros.

Quanto à estrutura, essa pesquisa foi organizada em três etapas distintas e complementares que buscaram trazer fundamento teórico suficiente para sendo a primeira etapa caracterizada pela contextualização histórica do direito à saúde da população brasileira e da maneira como a legislação pátria avançou para assegurar as garantias constitucionais e as execuções das políticas públicas nacionais.

Por sua vez, a segunda etapa procurou minudenciar as causas e as consequências da má ingerência do Poder Judiciário nos órgãos do Poder Executivo municipal no que respeita à concretização do direito à saúde, tanto no contexto nacional quanto no âmbito do município ora estudado. Por fim, partindo de dados coletados junto ao Ministério Público, à Secretária de Saúde e à Assessoria Jurídica do município de Itabela/BA, a terceira etapa compreende a análise dos impactos do ativismo judicial na efetivação das políticas públicas de saúde no município em tela e no acesso dos usuários locais aos serviços do SUS.

Em suma, restou evidente que apesar da relevância do papel do Poder Judiciário para a efetivação do direito à saúde, as ingerências indevidas desse Poder contribui para a sobrecarga do seu próprio sistema, uma vez que a propositura desenfreada e sem critérios de demandas visando acelerar o acesso, por vezes devidamente garantido, aos serviços do SUS, causa desarranjos no ecossistema do Poder Executivo municipal culminando na prática de atos de improbidade administrativa pelo não cumprimento de lei orçamentária, reforçando a fragilidade do sistema municipal na efetivação das políticas públicas de saúde.

2. METODOLOGIA

A metodologia, concebida como processo sistemático detentor de diversos recursos orientados para a resolução de problemas ou questões de investigação, possui, a rigor, natureza científica desenvolvida através das etapas de exame, de descrição e de avaliação, seguindo métodos e técnicas de investigação (PRONADOV, 2013). In casu, a primeira etapa abrangeu a elaboração do problema da judicialização da saúde pública no município de Itabela/BA, seguida da definição dos objetivos geral e específicos referentes à temática sob enfoque.

A seguir, fez-se necessária, à luz dos objetivos, a definição do percurso metodológico, cuja abordagem escolhida foi a qualitativa, de acordo com a qual foram priorizados aspectos relevantes de compreensão dos fenômenos, além de dados numéricos e medidas (LAKATOS; MARCONI, 2017), por meio dos quais foram analisadas as informações obtidas a partir das perspectivas interpretativa e comparativa de informações.

Por conseguinte, as técnicas investigativas empregadas foram aquelas inerentes à pesquisa bibliográfica, entendida como aquela que se realiza com investigação em “[…] livros, revistas […] monografias, dissertações, teses entre outros com o objetivo de colocar o pesquisador em contato direto com todo material já escrito sobre o assunto da pesquisa” (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 54), associada à pesquisa documental que, para os fins desse estudo, foi realizada no receituário normativo pertinente ao assunto e, também, nos documentos contidos na Secretaria Municipal de Saúde (GIL, 2017).

A esse respeito, destaca-se o magistério de Lee Epstein e Lary King, de acordo com o qual,

“Além de abrir o acesso a vários pesquisadores, grandes bancos de dados de uso comum possuem o que se entende por vantagem combinatória. Para verificar isto, considere um método útil de análise de dados – tabulação cruzada, ou uma tabela que resuma informações sobre uma variada gama de interesses. Por exemplo, a tabulação cruzada de ações judiciais da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre uma amostra de petições de revisão iii (providas ou não) pelo envolvimento do governo americano nestas petições (como peticionário ou não), como mostra a tabela número 1, produz quatro valores de “células” (“cell” values): o número de petições a que a Suprema Corte deu provimento quando o governo federal era o peticionário (26) e o número de petições a que negou provimento (0), a quantidade provida quando o governo não era o peticionário (85) e o número dos que foram desprovidos (1078). Isto é somado à informação sobre cada dado separadamente (por exemplo, a fração de petições em que o governo foi peticionário (26/1189) e de petições providas (111/1189)) (EPSTEIN; KING, 2013)”.

Outrossim, o local de estudo foi o município de Itabela, no extremo sul do estado da Bahia, de onde provieram as informações documentadas pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público e pela Secretaria Municipal de Saúde e que serviram de ponto de partida para as análises feitas ao longo desse estudo e, igualmente, de sustentáculo para as conclusões inferidas.

Dessa forma, constituíram passos dessa pesquisa o levantamento de obras em bases de pesquisa confiáveis como Capes, Scientific Eletronic Library Online – SciELO, Google Acadêmico e repositórios de faculdades e universidades, que compuseram a sua fundamentação teórica e tiveram como critérios de seleção das obras a publicação completa em língua portuguesa nos últimos dez anos e a existência de relevância para o objeto desse estudo.

Após a seleção das obras, como procedimento de estudo, foram realizadas a leitura exploratória, seguida da leitura seletiva e, por fim, das leituras analítica e interpretativa, acompanhadas da realização de fichamentos das ideias principais e escolha dos trechos de doutrina pertinentes ao tema em estudo para citação com o objetivo de fundamentar as reflexões trazidas nessa pesquisa. Vale destacar que o presente estudo constituiu-se em um artigo científico, cuja versão preliminar destinou-se à análise e à correção por parte do orientador que, após os reajustes requisitados, fora convertida em versão final para apresentação da banca de avaliação.

Por fim, junto à Secretaria Municipal de Saúde com o apoio do Ministério Público foram coletados os dados referentes às demandas judiciais contra o município de Itabela/BA. Assim, foram analisadas 664 ações judiciais, dentre as quais 368 tinham por objeto solicitações de medicamentos, tratamentos médicos e procedimentos cirúrgicos, das quais foram consideradas 317 ações, em razão da facilidade de acesso e da pertinência do conteúdo, cujos dados foram organizados em uma tabela no Excel 10, tendo como variáveis escolhidas a autoria, os fundamentos, os pedidos (medicamentos, atendimento médico especializado ou procedimento cirúrgicos), o polo passivo e a defesa. As 296 ações judiciais restantes tinham finalidades diversas e, portanto, não entraram no escopo da pesquisa.

3. O SUS E O PROGRESSO LEGISLATIVO DO DIREITO À SAÚDE

O progresso experienciado nos últimos anos não preclui a necessidade de que o SUS continue a ser fortalecido como um sistema de saúde público, gratuito, universal e capaz de garantir a todos os cidadãos o amplo acesso aos serviços de cuidado à saúde. Para tanto, faz-se necessário, entre outras ações, que sejam adotadas medidas para ampliar a oferta de serviços de saúde de acordo com as necessidades das diferentes regiões e das populações vulneráveis, objetivando melhorar a qualidade do atendimento prestado.

Quanto à origem do direito à saúde no Brasil, sem a pretensão de esgotar o tema, a presente pesquisa tomou como ponto de partida o marco legal da criação do Sistema Único de Saúde pelo artigo 196 da Constituição Federal brasileira de 1988, de acordo com o qual a saúde é direito de todos e dever do Estado.

O referido artigo e seguintes da Carta Magna brasileira tratam do direito à saúde como uma garantia fundamental do cidadão, propondo que esse é um dever do Estado assegurado por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e ao acesso igualitário às ações e serviços de saúde. Essas políticas devem ser executadas por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) que, por sua vez, é regido pelos princípios da universalidade, da equidade e da integralidade (BRASIL, 1988).

Ora, a previsão constitucional de criação de um sistema que integrasse uma rede de serviços regionalizados no Brasil contribuiu para a ocorrência de um salto qualitativo na democratização do acesso aos serviços de saúde que, sob a tutela do Estado, tornou-se direito social dos cidadãos brasileiros e dever de todos entes federativos. Desse modo, após dois anos de vigência da Carta Política brasileira, foi promulgada a Lei nº 8.080/1990, cujo artigo 4°, abaixo transcrito, dispõe acerca da constituição do Sistema Único de Saúde (SUS), in verbis:

Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS). § 1º Estão incluídas no disposto neste artigo as instituições públicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para saúde. § 2º A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar (BRASIL, 1990).

Dessa forma, a Lei nº 8.080/1990, denominada Lei Orgânica do SUS, tratou de regulamentar a criação e o funcionamento do SUS, trazendo consigo um novo paradigma acerca da concepção de saúde, que passou a abranger as determinações sociais relativas ao saneamento básico, ao direito ao trabalho e ao lazer, à distribuição de renda, à educação e não apenas a ausência de patologias.

Por conseguinte, a legislação ao prever a saúde como direito social da população e dever do Estado, precisou definir como condição para a sua efetivação e para a garantia da prestação dos serviços e do atendimento de qualidade à população, a forma de financiamento do sistema. Antes do SUS, os serviços de saúde prestados à população eram financiados com recursos cuja origem remontava às contribuições individuais nas folhas de pagamento dos trabalhadores brasileiros (SANTOS, 2021).

De acordo com esse modelo, apenas aqueles trabalhadores que possuíam registro em carteira de trabalho gozavam do direito à saúde. Ademais, os serviços de saúde contavam com a presença marcante do setor privado que atuava de forma irrestrita e deixava à margem parcela significativa da população brasileira.

O advento do SUS fez com que esse paradigma limitante fosse superado. No entanto, persistem outras limitações, sobretudo, aquelas advindas do atendimento ao público, vez que o caráter universal do sistema aliado à gestão descentralizada constituem enormes desafios para a concretização pelos entes públicos do comando constitucional que assegura o amplo acesso da população à saúde. Dentre os desafios existentes destaca-se a complexidade de seu próprio modelo de gestão, que busca garantir o direito à saúde a todos os cidadãos brasileiros de forma universal, integral e equânime (FREITAS; FONSECA; QUELUZ, 2020).

Ademais, a criação de um sistema único de saúde possibilitou a responsabilização do Estado quanto ao financiamento do serviço público de saúde, na medida em que a Lei Orgânica do SUS trouxe os parâmetros para o custeio do sistema, de modo que os entes públicos não podem eximir-se da responsabilidade. Outrossim, outro aspecto relevante do supracitado diploma legal foi o protagonismo a que foram alçados os municípios na execução das políticas públicas e programas relativos à saúde.

O modelo anterior à Constituição Federal vigente caracterizava-se pela centralização marcante, derivada do militarismo em voga, cuja tônica repousava sobre o distanciamento sistemático entre as ações de saúde e as necessidades e demandas locais. A partir do surgimento do fenômeno da municipalização, corolário do novo modelo de serviço público de saúde engendrado com o advento da nova ordem constitucional de 1988, os gestores locais adquiriram maior autonomia para planejar, gerir e implantar ações em saúde, considerando as especificidades e demandas locais (FREITAS; FONSECA; QUELUZ, 2020).

Nada obstante, esse modelo, longe de ser perfeito, enfrenta seus próprios desafios, dado que cada região e município possui peculiaridades que afetam diretamente a maneira como os serviços públicos de saúde são prestados às suas populações, tais como falta de recursos financeiros, déficit de profissionais capacitados, infraestrutura inadequada, ausência de serviços especializados, entre outros. Dessarte, tais deficiências do sistema incentivam os municípios a recorrerem excessivamente ao Poder Judiciário para verem atendidas as necessidades da sua população no domínio da saúde.

Por esse motivo, a Constituição Federal de 1988 criou uma estrutura organizacional com o fim precípuo de garantir a efetividade do direito à saúde por intermédio de um Sistema Único de Saúde (SUS). Para tanto, objetivando regulamentar e dar funcionalidade a esse sistema, foi promulgada a Lei nº 8.080/90, conhecida como a Lei Orgânica do SUS.

4. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NA ESFERA MUNICIPAL

A judicialização é um fenômeno social-jurídico decorrente da busca desenfreada pela intervenção do Poder Judiciário nos domínios de gestão dos serviços de saúde pública pelo Poder Executivo com vistas à obtenção de maior celeridade no atendimento às demandas dos usuários do sistema relativas aos medicamentos específicos de alto custo e aos tratamentos ou procedimentos médicos especializados. Nesse contexto, destaca-se o objeto de estudo da presente seção, cujo cerne encontra-se no estudo dos impactos administrativos e financeiros na gestão municipal.

Assim, de acordo com Santos (2021), o número de ações judiciais propostas pelos usuários do sistema público de saúde contra os municípios é crescente, ultrapassando, em 2019, dois milhões de pleitos, segundo o Relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Figuram entre as principais justificativas para a gênese desse fenômeno a falta de acesso satisfatório aos serviços públicos de saúde, a morosidade aliada à falta de transparência do atendimento e a indisponibilidade de medicamentos caros.

Ocorre que, o fenômeno da judicialização da saúde na esfera municipal afeta negativamente o equilíbrio das contas públicas nos domínios da gestão do Poder Executivo municipal em razão dos recursos canalizados para o cumprimento das sentenças judiciais desfavoráveis ao entende público, ademais de promover a injustiça social, na medida em que essa alternativa inviabiliza o acesso equânime aos serviços públicos de saúde, visto que parcela significativa da população tem o seu direito de acesso ao sistema preterido em favor daqueles que logram êxito nas demandas judiciais propostas com finalidade idêntica.

Ante o exposto, atualmente, muito se tem questionado acerca dos impactos negativos causados por esse ativismo judicial no âmbito da saúde, visto tratar-se de má ingerência de um poder sobre a esfera de atuação do outro (PINTO; BAHIA; SANTOS, 2016).

Por um lado, a principal crítica à judicialização da saúde é o impacto negativo causado no orçamento público, pois quando o jurisdicionado logra êxito na demanda judicial por medicamento de alto custo não disponível no SUS, é o ente municipal que suporta o ônus financeiro da derrota. Nesse ínterim, ante o aumento considerável de decisões judiciais desfavoráveis aos municípios, os gastos com os serviços de saúde aumentaram sem que houvesse um crescimento correspondente no volume de arrecadação que pudesse fazer frente ao financiamento dessas despesas.

Por outro lado, destaca-se, na doutrina contemporânea, a crítica aos efeitos perversos da judicialização da saúde para o acesso equânime aos serviços e tecnologias em saúde, visto que nem todos os pacientes que necessitam de um determinado medicamento ou tratamento possuem grau de instrução e recurso financeiro suficientes para recorrerem ao Poder Judiciário a fim de obtê-lo, de modo a acentuar as desigualdades fático-jurídicas entre os usuários do SUS (CAETANO; MATHEUS; DIEHL, 2021).

Além disso, a judicialização pode gerar uma “fila invisível” de pacientes que aguardam decisões judiciais em detrimento daqueles que já estão sendo atendidos pelo SUS. Diante desse quadro, é fundamental que os Poderes Executivo e Legislativo assumam o protagonismo na solução das demandas na esfera da saúde, por meio de políticas públicas consistentes e efetivas.

De mais a mais, embora a judicialização não seja um programa governamental, esse fenômeno cresceu tanto que acabou por tornar-se uma instituição de direito próprio. Contudo, no que pese o acesso aos programas públicos de saúde tenha sido assegurado pela via do Poder Judiciário, na prática, não se observa nenhuma melhoria na prestação de tais serviços, visto que persistem os episódios de escassez e inadequação no fornecimento de bens e serviços de saúde pelo sistema.

À vista disso, por representarem as decisões judiciais em matéria de acesso aos serviços públicos de saúde meras soluções individuais que em nada contribuem para o aperfeiçoamento coletivo do sistema, tem-se um desequilíbrio nas contas públicas dos entes municipais em razão do déficit causado pelo ônus suportado por esses entes quando da implantação das decisões judiciais que lhes são desfavoráveis aliado aos gastos com o financiamento natural das políticas públicas do SUS no âmbito do aprimoramento da gestão pública, do investimento em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias em saúde e da valorização dos profissionais da saúde (CAETANO; MATHEUS; DIEHL, 2021).

Por isso, faz-se imprescindível a destinação de maior investimento à pesquisa e à ampliação de serviços públicos de saúde de modo a criar alternativa eficaz à propositura precipitada de demandas judiciais. Ademais, o fortalecimento da participação popular e a transparência no uso dos recursos públicos do SUS são fundamentais para garantir a macro justiça da saúde e a efetivação do direito à saúde como um direito humano fundamental, e não apenas uma busca constante por soluções individuais.

Nesse contexto, uma possível solução capaz de, por um lado, desafogar o Poder Judiciário das crescentes demandas por serviços de saúde pública e, por outro lado, restabelecer o equilíbrio das contas públicas do Poder Executivo municipal, ao desonerá-lo das tais decisões judiciais, passa pelo entendimento da aplicação moderada da judicialização da saúde, restrita apenas a casos excepcionais que envolvam risco de vida ou incapacidade física grave e que não possam ser atendidos pela rede pública de saúde, garantindo a proteção individual sem prejudicar a coletividade. Dessa forma, torna-se possível reduzir o número de ações judiciais e garantir o acesso universal e equânime à saúde no país.

Partindo desses pressupostos, insta consignar que o presente estudo tem como objetivo precípuo evidenciar a grandeza do direito à saúde, por compreendê-lo como garantia fundamental à vida. Para tanto, o referido capítulo lançou luzes sobre o fenômeno da judicialização como forma de assegurar a efetivação do direito social à saúde, previsto expressamente no artigo 6º da Constituição Federal de 1988.

4.1. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO ÂMBITO DO MUNICÍPIO DE ITABELA – BA

A presente seção tomou como base as informações acerca do município de Itabela, no estado da Bahia que, semelhante à realidade de diversos outros municípios brasileiros, enfrenta desafios relativos ao atendimento integral das demandas atinentes à prestação de serviços públicos de saúde. Tais demandas, notadamente, são direcionadas, caso a caso, à Secretaria Municipal de Saúde. Contudo, não raro, os usuários do sistema são compelidos a buscar na via judicial o rápido atendimento das suas demandas, o que acarreta o desequilíbrio financeiro da gestão municipal.

O território de Itabela compreende área de 850,7 km² e população estimada em 30.584 habitantes, conforme censo de 2021. Neste contexto, a Secretaria Municipal de Saúde desenvolve as suas ações de atendimento à população local dispondo de rede de serviços composta por um hospital municipal, o Hospital e Maternidade Frei Ricardo, por onze Unidades de Básicas de Saúde (UBS) e, também, por unidades privadas como clínicas e consultórios de diversas especialidades, totalizando vinte e nove estabelecimentos. Ademais, também dispõe de serviços conveniados com outros municípios como Eunápolis, Ilhéus, Itabuna e Salvador que, por sua vez, dispõem de maior rede de serviços especializados.

Todavia, na realidade, não há correspondência exata entre as demandas dos usuários do sistema e a oferta dos serviços públicos de saúde capaz de tornar efetivo o princípio da universalidade dos serviços públicos previstos em lei. Ao contrário, na prática, como alternativa ao desequilíbrio do binômio oferta-demanda, ocorre uma espécie de triagem das solicitações apresentadas que utiliza os critérios da gravidade da enfermidade, da ordem cronológica das demandas apresentadas, da raridade da patologia e da disponibilidade de oferta no setor de regulação correspondente.

Em razão da discriminação advinda da supra citada seleção, caso a caso, das demandas dos usuários do sistema, esses encontram fundamento para a procura pela via judicial como forma de concretização do acesso aos serviços públicos de saúde, sem sequer buscar por informações pertinentes nos setores da Secretaria Municipal de Saúde responsáveis pelos procedimentos de que necessitam, sobrecarregando, dessa forma, o Poder Judiciário, ademais de contribuir para que aquele invada a esfera de competência do Poder Executivo municipal.

Por tanto, no caso em tela, pugna-se pela observação atenta à repartição constitucional de competência entre os Poderes Públicos, de modo que cada um exerça, preponderantemente, o seu mister, sem ingerências indevidas nas atribuições do outro. Assim, urgem medidas pedagógicas de instrução e conscientização da população do município de Itabela/BA no sentido de valorizar a sistemática de atendimento do SUS de maneira a evitar ações judiciais desnecessárias que produzem efeitos adversos ao pretendido, onerando os cofres públicos, implicando em improbidade administrativa e travando a já morosa máquina pública.

5. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS IMPACTOS DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE EM ITABELA -BA

Essa pesquisa baseou-se na análise investigatória de 368 processos cujo objeto compreendia o acesso aos serviços públicos de saúde, ajuizados entre os anos de 2012 e 2022, figurando no polo passivo da demanda judicial o município de Itabela/BA. Todavia, 51 desses processos estão pendentes de decisão, razão pela qual, apenas os dados de 317 ações judiciais foram utilizados para a fundamentação dessa pesquisa.

Destaca-se que, a maior parte dos 317 processos examinados e considerados, encontrava-se armazenada nos arquivos da Secretaria Municipal de Saúde de Itabela/BA. Além desses, também subsidiaram essa pesquisa, dados e informações acerca da judicialização da saúde coletados junto ao Poder Judiciário e ao Ministério Público. Vale ressaltar que os acima mencionados processos apresentavam demandas ou objetos de petição diversos, conforme destaca a Tabela 01 abaixo:

Tabela 01 – Demonstrativo do quantitativo por tipo de pedido nos processos relativos à saúde.

Descrição do Motivo da Ação JudicialNº de Processos
Medicamentos113
Consultas Médicas Especializadas em Alta Complexidade91
Atendimento em Atenção de Média e Alta Complexidade109
Outras Demandas04
Total317

Fonte: autoria própria

Observa-se, com fundamento nas informações da Tabela 01, que a busca pelo Poder Judiciário para garantia do acesso aos serviços públicos de saúde é uma realidade frequente no município de Itabela/BA, que afeta, negativamente, o planejamento e a gestão dos problemas efetivos de saúde em sua dimensão coletiva (CHIEFFE; BARATA, 2010, p.422), de modo que essas demandas individuais, sob o pretexto do direito à vida e à dignidade da pessoa humana, comprometem os investimentos em prol da coletividade.

Dentre essas ações, tomadas aquelas em que se pediam medicamentos, notou-se a diversidade de autoria (Tabela 02), sendo 72 processos solicitados pelo Ministério Público (MP) e 38 pela Defensoria Pública, totalizando 110 processos dos 113 analisados.

Insta consignar, a partir da exposição acima que, não apenas pela falta de recurso financeiro por parte do autor da ação, frequentemente, o Poder Judiciário serve de via de acesso célere aos tratamentos públicos de saúde ofertados pelo SUS, sobretudo, em razão da facilidade com que são deferidos os provimentos liminares, sem grandes exigências no que se refere ao conjunto probatório documental, conforme resta demonstrado pelos dados da Tabela 02.

Tabela 02. Representação dos autores das ações judiciais em saúde por medicamentos no período de 2012 a 2022.

Representação do autorNM*
Advogado03
Defensoria Pública38
Núcleo de assistência jurídica0
Ministério Público72
Total113

Fonte: Elaboração própria com base nos dados da pesquisa Um Estudo Contemporâneo da Judicialização da Saúde no município de Itabela/BA no acervo da Secretaria Municipal de Saúde.
Nota: NM representa o número de ações judiciais solicitando medicamentos.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no caput do seu artigo 127, atribui ao Ministério Público a tarefa de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, visto que a sociedade carece de meios próprios para a defesa dos seus interesses fundamentais, razão pela qual o Estado reforçou essa proteção através dos atributos do Ministério Público.

No que se refere às questões relativas à saúde, o Parquet tem operado a partir de ações públicas objetivando o fornecimento de medicamentos, tratamentos, consultas médicas, leitos de UTI, entre outros. Sua atuação é primordial para a garantia e para a efetivação do direito social à saúde, assim como em casos de lesão ao interesse público decorrente de condutas omissivas por parte do Poder Público.

A seu turno, a Defensoria Pública é uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, notadamente, como expressão do regime democrático, a promoção dos direitos humanos, a orientação jurídica e a defesa gratuita em todos os graus, judicial e extrajudicialmente, dos direitos individuais e coletivos.

A Defensoria Pública é uma entidade que proporciona gratuidade de justiça àqueles que comprovarem não possuir recursos financeiros para arcar com as custas processuais das ações em que figurarem como parte. Destarte, resta evidente que essa instância tem o cerne da sua defesa erigido na proteção dos interesses individuais, ao passo que o Ministério Público tem como responsabilidade precípua zelar pelo ordenamento jurídico, mediando os conflitos entre o Estado e a sociedade decorrentes da não implementação das políticas públicas de responsabilidade daquele.

São vários os pedidos que levam os usuários do sistema ao Poder Judiciário para verem atendido o seu direito à saúde, entre os quais destacam-se as solicitações de cirurgias, as consultas médicas especializadas, os exames médicos, as vagas em leitos de UTI, os medicamentos de alto custo, os produtos de saúde e os tratamentos médicos específicos. Assim, dos 317 processos analisados, observou-se que 35,64 % tinham como objeto a concessão de medicamentos, conforme descrito na Tabela 03 abaixo transcrita:

Tabela 03 – Quantidade de medicamentos solicitados via ação pública no município de Itabela/BA no período de 2012 a 2022.

MedicamentosNº Solicitado
SUS (Rename/Remume)59
Não faz parte da Rename/Remume51
Não possui protocolos clínicos03
Total113

Fonte: Elaboração própria com base nos dados da pesquisa Um Estudo Contemporâneo da Judicialização da Saúde no município de Itabela/BA no acervo da Secretaria Municipal de Saúde.

Em conformidade com os números apresentados, ressalte-se que 45% dos medicamentos procurados pela população não constam na lista do Rename/Remume. Outro aspecto relevante observado a partir do conjunto de informações coletadas é que 2,6% dos medicamentos demandados não possuem protocolo, o que somado aos 45% daqueles que não constam na lista do Rename/Remume do SUS representa quase a metade do total de demandas.

Os pedidos judiciais por medicamentos que não constam na lista do Rename/Remume ou não possuem protocolo pelo SUS não é algo exclusivo dos usuários do município de Itabela. Nessas hipóteses, a única forma possível de gratuito acesso aos medicamentos é pela via judicial, uma vez que o Poder Judiciário entende que a saúde é um direito fundamental e que o Estado deve garantir o acesso a medicamentos essenciais, mesmo àqueles que não constam na lista do Rename/Remume.

Nesse ponto, vale ressaltar a peculiaridade de cada caso, de maneira que se faz imprescindível a análise jurídica com a finalidade de verificar a viabilidade e as chances de sucesso da demanda. Ademais, também, devem ser levadas em consideração, quando do estudo acerca da viabilidade do pleito judicial, a existência de alternativas terapêuticas disponíveis pelo SUS, assim como a necessidade o medicamento pleiteado para o tratamento.

Tabela 04 – Quantidade de Consultas Especializadas solicitadas via judicial no município de Itabela/BA no período de 2012 a 2022.

Consulta EspecializadaQuantidade
Consulta em Genética13
Consulta com Cirurgião Plástico16
Consulta com Fonoaudiologia17
Consulta em Hematologia21
Consulta em Neurologia24
Total91

Fonte: Elaboração própria com base nos dados da pesquisa “Um Estudo Contemporâneo da Judicialização da Saúde no município de Itabela/BA” no acervo da Secretaria Municipal de Saúde.

É inconteste que em nível local, a realidade da judicialização da saúde também se apresenta na forma de um processo de crescimento gradual, conforme atestam os dados da Tabela 04 acima transcrita. Esse crescimento tem correlação direta com o contexto regional de instabilidade do Planejamento Integrado Regional, cuja distribuição de cotas para as consultas especializadas é desigual, necessitando, portanto, de um remapeamento das necessidades de saúde em nível regional com reflexos municipais. Dessa maneira, o Poder Judiciário exerce pressão sobre o ente municipal, compelindo-o ao cumprimento de deveres que extrapolam a sua alçada, dando provimento, de forma indiscriminada, a todos os pedidos, sem considerar os custos que essa judicialização acarreta ao orçamento do município destinado à saúde pública que, em tese, deveria ser destinado a assegurar a qualidade dos referidos serviços, de modo a abranger toda a coletividade.

Por tanto, é evidente que a judicialização do acesso à saúde no município de Itabela/BA configura verdadeira violação do direito fundamental à saúde, na medida em que esse fenômeno representa grande obstáculo à materialização dos princípios do Sistema Único de Saúde ao prover demandas pontuais em detrimento das necessidades coletivas.

Tabela 05 – Quantidade de Procedimentos Cirúrgicos de Média e Alta Complexidade solicitados via judicial no município de Itabela/BA no período de 2012 a 2022.

Procedimentos CirúrgicosQuantidade
Cirurgia Bariátrica13
Cirurgia de Facectomia19
Cirurgia de RTU de Próstata17
Cineangiocoronariografia21
Angiografia14
Angioplastia25
Total109

Fonte: Elaboração própria com base nos dados da pesquisa “Um Estudo Contemporâneo da Judicialização da Saúde no município de Itabela/BA” no acervo da Secretaria Municipal de Saúde.

Por fim, com base nos dados apresentados nas Tabelas 04 e 05, acima transcritas, percebe-se que em casos de procedimentos e consultas especializadas, cujo custo é elevado, a população em geral, e não apenas a camada inferior, tem recorrido, sistematicamente, ao Poder Judiciário como meio de assegurar-lhe o acesso aos referidos serviços, escapando, portanto, aos procedimentos e protocolos administrativos da marcação, especialmente, em razão do tempo de espera para o atendimento.

Logo, vê-se que o fenômeno da judicialização da saúde cresceu, vertiginosamente, nos últimos anos, acarretando desequilíbrio no orçamento público destinado à saúde, o que reflete, negativamente, na oferta de bens e serviços de saúde para a coletividade, tendo em vista que o Poder Judiciário, invadindo a esfera de competência do Poder Executivo municipal, determina a realização de gastos para os quais inexiste previsão legal orçamentária.

Ademais, frequentemente, o ativismo judicial advindo da conduta precipita dos usuários do sistema, que demandam pela aplicabilidade de arcabouço jurídico já devidamente positivado, contribuiu, dessa forma, para a conversão da exceção em regra, perpetuando o Poder Público na dianteira das decisões que implementam políticas por força coercitiva da instância judiciária.

É inegável que a má administração do poder público aliada à falta de financiamento efetivo em algumas áreas da saúde obstaculiza o exercício do direito à saúde, constituindo-se verdadeiro desafio para os gestores públicos, por sua vez, necessitam elaborar estratégias efetivas de acordo com a disponibilidade do orçamento com vistas a assegurar as políticas públicas de saúde.

Ante o exposto na Tabela 05, percebe-se um descompasso no número de processos judiciais relativos aos procedimentos de Cineangiocoronariografia e Angioplastia, uma vez que são dotados de alta complexidade e regulados adequadamente pelo Estado, inclusive quando se trata de agendamento. Nesse sentido, resta transparente que a judicialização é uma forma de encurtar o percurso com o fim de se obter alguma celeridade por meio da propositura irresponsável de demandas judiciais para objetos que não trazem em seu bojo qualquer complexidade de resolução.

Em síntese, o fenômeno da judicialização da saúde representa cenário extremamente complexo para o qual inexistem soluções ou respostas definitivas, mas apenas alternativas de acordo com as quais o Estado deve assumir protagonismo e, através de políticas públicas, garantir ao cidadão, de forma efetiva, o direito social à saúde, desviando-se da intromissão indevida do Poder Judiciário, salvaguardando essa ingerência para os casos excepcionais, sem torna-la regra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo trouxe à lume dados relevantes que serviram de suporte para as reflexões acerca do processo de judicialização do direito à saúde no âmbito municipal. Esse fenômeno complexo, assim, foi compreendido por meio da apresentação de dados coletados que foram devidamente relacionados aos sujeitos envolvidos no processo de judicialização do acesso aos serviços públicos de saúde no município de Itabela/BA.

Dessa forma, restou elucidado, no bojo do presente trabalho, a tensão estabelecida entre o Poder Legislativo, na forma da legislação infraconstitucional do Sistema Único de Saúde, e o Poder Judiciário, através da proliferação de sentenças judiciais contra o ente municipal, evidenciando que, no que pese, às vezes, a intervenção do Poder Judiciário tenha garantido a efetivação das políticas públicas, há situações em que essa mesma intervenção tem o condão de desestabilizar a frágil organização político-administrativa estabelecida, na medida em que as sentenças judiciais desfavoráveis ao ente federativo municipal representam ônus desproporcional ao seu arrecadamento, culminando em desequilíbrio das contas públicas.

Dessarte, o crescimento progressivo das demandas judiciais visando garantir o fornecimento de prestações de saúde tem interferido negativamente na continuidade das políticas públicas de saúde no município de Itabela/BA, comprometendo, dessa maneira, o uso racional dos recursos públicos, obliterando o desenvolvimento salutar das políticas públicas de saúde.

A atuação do Estado, via de regra, ocorre por meio de prestações positivas, através das políticas públicas desenvolvidas pela Administração Pública. Todavia, quando essa atuação se mostra ineficiente, os usuários do sistema recorrem ao Poder Judiciário como forma de assegurar que as prestações de saúde, previstas constitucionalmente, sejam asseguradas e garantidas.

Partindo desse prisma, o estudo atento da judicialização dos serviços de saúde pública permitiu a compreensão das consequências nefastas do ativismo judicial para as contas públicas do ente municipal, na medida em que as sentenças condenatórias contra os municípios se avolumam, prejudicando, sobremaneira, o desenvolvimento natural e o amadurecimento das políticas públicas nos domínios do SUS.

Nada obstante, dilataram-se as ações de saúde e as determinações judiciais para que os entes públicos passassem a fornecer procedimentos diversos. Por conseguinte, insuflou o debate acerca da judicialização da saúde e da intervenção nas políticas públicas de saúde, visto que os recursos destinados ao cumprimento das sentenças judiciais, além de serem finitos, encontram-se, também, destinados somente à cobertura de determinadas políticas públicas previamente aprovadas e pactuadas.

À guisa de conclusão, é mister trazer à baila que a Constituição Federal de 1988 afirma que a saúde é um direito de todos e dever do Estado que, por sua vez, deve agir positivamente em favor da população conforme as suas reais necessidades. No entanto, ainda que a criação do Sistema Único de Saúde, há 35 anos, tenha representado um marco para a democratização do acesso aos serviços públicos de saúde, longo ainda é o caminho a ser percorrido rumo à equidade e à universalidade de acesso às politicas públicas sanitárias no país.

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1 Artigo apresentado à Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – FACISA, como parte dos requisitos para obtenção do Título de Bacharel em Direito em 2023.

2 Graduando em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – FACISA, em Itamaraju (BA). Especialista em Micropolítica da Gestão em Saúde pela Universidade Federal Fluminense. Graduado em Bacharel em Enfermagem pela Universidade Estadual de Santa Cruz- UESC.E-mail: ivanilson82@hotmail.com

3 Especialista em Direito da Família e Sucessões pela. Especialista em Direito Previdenciário pela Faculdade Unyplúbica de Curitiba. Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas. Docente na Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas. E-mail: marcosfariaspestana.adv@outlook.com