PSICOSSOMÁTICA: UMA ABORDAGEM SOB A ÓTICA DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL

PSYCHOSOMATICS: AN APPROACH FROM THE PERSPECTIVE OF EXISTENTIAL PHENOMENOLOGY

PSICOSOMÁTICA: UN ENFOQUE DESDE LA PERSPECTIVA DE LA FENOMENOLOGÍA EXISTENCIAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10055898


Karine Farias dos Reis1
Larissa Cristina Kremer dos Santos Paquiela2


RESUMO

Este artigo investiga as interconexões entre psicossomática e fenomenologia existencial, explorando como as emoções moldam a saúde física e mental. A psicossomática transcende a dicotomia mente-corpo, enquanto a fenomenologia existencial foca na experiência subjetiva do indivíduo. Por meio de uma revisão bibliográfica, o estudo analisa como as vivências emocionais se manifestam no corpo e influenciam a saúde. A integração dessas perspectivas não apenas enriquece o entendimento teórico, mas também orienta práticas clínicas, promovendo cuidados personalizados. Esta pesquisa visa explorar as teorias e conceitos da área, contribuindo para futuras investigações interdisciplinares na área da saúde humana.

Palavras-chave: Psicossomática; Fenomenologia Existencial; Emoções e Saúde

ABSTRACT

This article investigates the interconnections between psychosomatics and existential phenomenology, exploring how emotions shape physical and mental health. Psychosomatics transcends the mind-body dichotomy, while existential phenomenology focuses on the individual’s subjective experience. Through a thorough literature review, the study analyzes how emotional experiences manifest in the body and influence health. The integration of these perspectives not only enriches theoretical understanding but also guides clinical practices, promoting personalized care. This research aims to explore theories and concepts in the field contributing to future interdisciplinary investigations in the realm of human health.

Keywords: Psychosomatics; Existential Phenomenology; Emotions and Health

RESUMEN

Este artículo investiga las interconexiones entre psicosomática y fenomenología existencial, explorando cómo las emociones moldean la salud física y mental. La psicosomática trasciende la dicotomía mente-cuerpo, mientras que la fenomenología existencial se enfoca en la experiencia subjetiva del individuo. A través de una revisión bibliográfica, el estudio analiza cómo las experiencias emocionales se manifiestan en el cuerpo e influyen en la salud. La integración de estas perspectivas no solo enriquece la comprensión teórica, sino que también orienta las prácticas clínicas, promoviendo cuidados personalizados. Esta investigación tiene como objetivo explorar las teorías y conceptos del campo, contribuyendo a futuras investigaciones interdisciplinarias en el área de la salud humana.

Palabras clave: Psicosomática; Fenomenología Existencial; Emociones y Salud

1. Introdução

O estudo da saúde e da doença sempre foi um fascínio humano, levando a diversas abordagens ao longo da história. Duas perspectivas que ganharam destaque, especialmente no século XX, foram a psicossomática e a fenomenologia existencial. A primeira investiga a complexa interação entre a mente e o corpo, considerando os fatores psicológicos, sociais e emocionais como influências diretas nas condições físicas. A segunda, oriunda da filosofia, mergulha profundamente na experiência subjetiva do ser humano, questionando o significado da vida, da saúde e da doença em um contexto existencial.

A psicossomática, ao transcender a visão dualista que separa mente e corpo (GONZÁLEZ, 2004), oferece uma abordagem integrada que reconhece a influência das emoções e pensamentos na saúde física. A fenomenologia existencial, por sua vez, destaca a importância de compreender o ser humano como um todo, imerso em seu mundo, atribuindo significados às suas experiências e interações (HEIDEGGER, 2001).

Nesta jornada de exploração, este trabalho busca adentrar nas profundezas da psicossomática, examinando como os estados mentais se entrelaçam com as condições físicas, influenciando a saúde e a doença. Em paralelo, investigaremos os princípios da fenomenologia existencial, entendendo como a experiência subjetiva molda nossa percepção da realidade e, por conseguinte, nossa saúde mental e física.

Unindo essas duas abordagens, essa investigação busca trazer uma revisão da abordagem fenomenológica e existencial do processo de adoecimento psicossomático. Ademais, espera-se analisar criticamente a interseção entre psicossomática e fenomenologia existencial, explorando como as experiências subjetivas e emocionais se manifestam no corpo e como essas manifestações influenciam a saúde e o bem-estar dos indivíduos. Pretende-se também mapear alguns conceitos, teorias e descobertas nessas áreas, fornecendo uma visão abrangente e atualizada do estado da arte sobre o tema.

Para tanto, se propõe a realizar uma revisão bibliográfica cuidadosa e abrangente sobre a interseção desses dois campos, oferecendo uma compreensão aprofundada das conexões entre as dimensões psicológicas e físicas das condições de saúde. Além disso, essa revisão será conduzida em bases de dados acadêmicas, livros, artigos científicos e outras fontes confiáveis. A análise qualitativa das fontes permitirá a identificação de padrões e convergências conceituais, oferecendo uma visão aprofundada e crítica sobre o tema em questão.

A justificativa para esta pesquisa reside na necessidade de compreender de forma holística a complexidade das condições de saúde, considerando tanto os aspectos psicológicos quanto os físicos. A integração da psicossomática e da fenomenologia existencial não apenas enriquece a compreensão teórica desses campos, mas também tem implicações práticas significativas para profissionais de saúde mental e física. Ao entender como as experiências emocionais e mentais se entrelaçam com a saúde física, os clínicos podem aprimorar suas abordagens diagnósticas e terapêuticas, proporcionando cuidados mais eficazes e centrados no paciente. Além disso, esta revisão bibliográfica contribuirá para a formação acadêmica e profissional, preenchendo lacunas no conhecimento e fornecendo uma base sólida para futuras pesquisas interdisciplinares nessa área crucial da saúde humana.

2. Desenvolvimento

2.1. Evolução do conceito saúde-doença ao longo do tempo

A historicidade de quaisquer conceitos é proveniente da necessidade de produzir instrumentos capazes de orientar os pensamentos na busca por soluções diversas para os desafios da vida. Dessa forma, não é possível que se faça uma abordagem sobre um conceito sem que se reflita sobre sua história.

Ao se tratar da relação saúde-doença, sabe-se que há uma discussão já longínqua acerca dessa dríade e que inúmeras formas diferentes para compreensão foram construídas, das quais algumas delas serão apresentadas neste trabalho.

Em um momento da história das sociedades, o adoecer era visto como uma consequência da ação de forças sobrenaturais e malignas, contra as quais os seres humanos não eram capazes de lutar (SEVALHO, 1993). Noutro, era uma punição vinda das divindades e a cura, por sua vez, era alcançada por meio de rituais, em especial, religiosos. Sendo assim, as concepções de morte, vida e saúde eram interligadas a essas crenças. Os curandeiros, responsáveis por lutar contra as forças do mal e conhecedores das ervas medicinais e dos rituais adequados para as mais diversas situações, eram vistos como intermediários entre os homens e as entidades divinas (VOLICH, 2002).

Os gregos, considerado uma civilização avançada para seu momento, alimentavam essa visão de sacralização das doenças e dos processos de cura, uma vez que o homem tinha por hábito o curvar-se às divindades em busca da libertação dos males e impurezas (TOSCANO JR, 2001).

Na civilização assírio-babilônica, as curas, rituais e misticismos coexistiam com a tentativa de estabelecer procedimentos análogos, com referências multidisciplinares na mitologia, metafísica e na astrologia (VOLICH, 2002). Essa visão começou a ser mudada por meio dos egípcios, que promoveram uma naturalização das doenças, com os conceitos místicos, religiosos e sobrenaturais que possuíam. A maneira que os curandeiros tratavam seus doentes envolvia o uso de uma grande variedade de drogas, entre elas a cicuta e o ópio (VOLICH, 2002). Ao se considerar suas múmias, por exemplo, pode-se concluir que estes detinham um certo conhecimento em anatomia, o qual veio por meio do estudo de animais (MARGOTTA, 1998). Além disso, os papiros indicam que os egípcios tinham maneiras de tratar feridas, fraturas e luxações não muito diferentes dos procedimentos atuais.

Além disso, o surgimento e a ascensão de Hipócrates e sua escola, na Grécia, marcaram um ponto de virada no que diz respeito à forma de enxergar as doenças e o conceito de saúde no geral. Hipócrates foi o pioneiro no que tange a pensar causas naturais para eventos que ocorrem em nosso mundo (SEVALHO, 1993). Sua teoria se baseava na concepção do homem como um ser constituído de quatro humores, o sangue, a bílis amarela, a bílis negra e a fleuma, que eram oriundos das quatro qualidades da natureza: calor, frio, umidade e aridez. Portanto, as doenças teriam origem no desequilíbrio entre estes quatro humores e a cura, por sua vez, seria alcançada juntamente com este equilíbrio (CAIRUS & RIBEIRO JR, 2005).

Com o final da Antiguidade e ascensão da Igreja Católica, a saúde humana voltou a ser vista sob a ótica do sagrado, bem como a doença sob a ótica da presença do pecado. Além da influência da religião, a filosofia também impregnava esta compreensão, de maneira que os tratamentos médicos da época procuravam atingir as pessoas desde a alma (HOWARD&LEWIS, 1993). Magia, sugestão e exorcismos eram utilizados com frequência como métodos terapêuticos, visto que os mais diversos males eram tidos como obras demoníacas (MARGOTTA, 1998). A Igreja era a responsável por cuidar dos doentes, sobretudo com o avanço dos hospitais.

Paracelsus (1493-1591) acreditava na doença como reações do organismo a agentes externos. Nessa época a química, seguindo os rastros da alquimia, influenciava fortemente a medicina. Assim, Paracelso defendia que, se os processos que ocorrem no corpo humano são químicos, as curas também devem ser de origem química. Assim, os tratamentos passaram a ser realizados por meio de pequenas doses de minerais e metais.

A mecanização que se seguiu influenciou os pensamentos e teorias de Descartes (séc. XVII). A postura de Descartes era tida como dualista, e defendia que a medicina, única e exclusivamente, deveria ocupar-se do corpo humano e que este, por sua vez, deveria ser tido como uma máquina. Ou seja, seria de responsabilidade do médico reparar e consertar a máquina (corpo) quando esta estivesse defeituosa (CAPRA, 1982) tal qual um bom mecânico.

Essa nova percepção provocou uma mudança epistemológica na medicina, a qual deixou de ser uma arte de curar os indivíduos, para uma prática – disciplina – de tratar doenças, que deveria ser sistematizada de acordo com padrões pré-estabelecidos (ORNELLAS, 1999). O dualismo corpo-mente, proposto por Descartes, por sua vez, induziu os doutos da medicina a focarem no biológico, assumindo uma visão reducionista da doença, fazendo com que fatores relevantes, como os aspectos psicológicos, sociais e ambientais da doença, fossem deixados de lado. Esta visão permaneceu por cerca de quatro séculos após Descartes.

Dentro desse contexto, a saúde passou a ser considerada com a ausência da doença, ou dos sinais que definem a doença (a saber, a sintomatologia da doença). O processo de cura, portanto, seria a eliminação desses sintomas identificados. Com a valorização social da prática da medicina, o médico passou a ocupar uma posição de status, com cada vez mais controle e poder sobre as doenças, o que caminhava lado-a-lado a negligência ao sujeito no processo de tratamento, e levava os médicos a desenvolverem complexo de deus. Nesse ínterim, a cirurgia moderna, como é conhecida hoje, foi moldada sob os passos do médico-cirurgião francês, chamado Ambroise Paré (VOLICH, 2002). Este foi considerado o maior cirurgião renascentista, seus métodos pretendiam não apenas conhecer o corpo humano, mas alterar sua estrutura, validando o vislumbre à divindade que, até os dias atuais, acompanha os médicos.

Com a Revolução Industrial (século XVIII) observou-se um processo de ruptura entre medicina e saúde. Segundo Queiroz (1986), esta ruptura acompanhou a cisão corpo e mente, pessoa e contexto, eu e o outro. Por outro lado, os gritantes problemas sociais enfrentados na época (longas jornadas de trabalho, pobreza, urbanização, etc) sequer eram considerados quando se discutia a respeito dos problemas de saúde enfrentados (SEVALHO, 1993).

A chegada do século XIX trouxe consigo importantes áreas de conhecimento, como a filosofia Positiva, que influenciou diretamente no método científico, de maneira que todo conhecimento passava a ser submetido ao princípio da neutralidade do sujeito (ORNELLAS, 1999). A medicina, portanto, é levada a um novo momento e passa a definir a saúde como um processo. Em paralelo, a Psiquiatria surge um ramo secundário da medicina, que, incorporando o modelo biomédico vigente, foca seus esforços nas descobertas das causas orgânicas para os problemas mentais, isto é, foca na busca da lesão cerebral (CAPRA, 1982).

Somente no século XX, com o desenvolvimento tecnológico e de uma compreensão diferenciada do ser humano, esses conceitos começam a mudar. A Organização Mundial de Saúde (OMS) propôs, em sua Carta Magna de 07 de Abril de 1948, que saúde consiste em um bem estar geral, tanto físico, quanto social e mental, e não somente a ausência de doenças e/ou males no geral. A partir de então, além de outros fatores que influenciavam na conceituação saúde-doença da época, mas que não eram considerados, passou-se a questionar o modelo biomédico vigente e a pressupor que saúde poderia ser mais do que uma mera consequência biológica da ausência de doença.

Tornou-se, portanto, inegável a relação que existe entre o binômio saúde-doença e os fatores psicológicos, sociais, ambientais, econômicos e políticos. A saúde é um processo complexo, qualitativo, que integra o que é somático e o que é psíquico de maneira sistêmica, gerando uma unidade em que os quais são inseparáveis (GONZÁLEZ, 2004).

Apesar dos diferentes contextos em que o conceito saúde-doença foi submetido ao longo da história, ainda se vê muito, atualmente, a presença de velhas filosofias, inclusive a pessoa do curandeiro ainda é muito presente em diversas culturas.

2.2. Definição e principais conceitos de Psicossomática

Mello Filho (1992) diz que a psicossomática tem sua origem tanto nos fundamentos da Filosofia, quanto da Psicologia Social, da Psicologia Dinâmica (em especial a Psicanálise) e da Patologia Geral.

O termo psicossomático tem sua origem no século XIX, quando Heinroth criou e distinguiu as expressões psicossomática e somatopsíquica (MELLO FILHO, 1992). A teoria de Heinroth baseava-se no que ele chamava de desordens da alma, que eram as paixões sexuais que influenciavam o surgimento de algumas doenças do corpo, como o câncer e a insônia.

O atual conceito aceito acerca da Psicossomática quebrou paradigmas, nos quais a visão da doença deixa de ser o resultado de variáveis do corpo, interpessoais, individuais e ambientais, e passa a ser uma interação complexa ao longo do desenvolvimento individual, como fatores psíquicos, somáticos e ambientais. Isso significa também que o peso pode variar de pessoa para pessoa, ainda que se trate de uma mesma doença (BARBOSA, 2014).

De acordo com Barbosa, Duarte e Santos (2012), a psicossomática tenta compreender a relação mente-corpo e os processos de adoecimento, de maneira que a somatização é descrita como a manifestação de angústias e conflitos diversos, refletido por meio de sinais do corpo físico, isto é, o psicossomático é entendido por eles como toda e qualquer perturbação física que resulte de uma ação psicológica. Além disso, é defendido por eles que toda doença física é somática, visto que o ser humano é meramente o resultado da união indissolúvel de soma e psique.

Para Mattar et. Al. (2016) a psicossomática categoriza os fenômenos, tanto de cunho psicossomáticos, como os somatopsíquicos, conduzindo para o princípio dos transtornos corpo-psique, estabelecendo uma relação de causalidade entre as duas instâncias. Na prática, essa dicotomia infere a necessidade de dois profissionais diferentes para o tratamento de doenças, o médico, que conduz o tratamento do corpo, e o psicólogo, responsável por tratar os efeitos psicológicos da doença.

Já Schiller (2003) afirma que existe mais que uma psicossomática. Ele defende diferenças entre a psicossomática da medicina, a da psicologia e a da psicanálise, com diferenças radicais. A psicossomática médica, para o autor, é vista quando a doença física não apresenta explicação de cunho científico. A Psicossomática no âmbito da medicina trouxe, para o pensamento médico-científico, a prática de focar no paciente e não na doença.

Já no âmbito da psicologia, a Psicossomática está inserida propondo a divisão entre mente e corpo, além de promover o recorte do psiquismo a partir da anatomia descrita pela medicina. É neste sentido que se tem psicólogos especializados em doenças do corpo. (SCHILLER, 2003).

A psicanálise, por outro lado, não enxerga o psiquismo que reflete no organismo, e sim um corpo que é recortado por ele. Ou seja, o sintoma pode ser modificado a depender de uma interpretação, assim, há diferença entre as doenças que podem ser atenuadas pela descoberta de um sentido, e as que seguem seu curso apesar da descoberta de um sentido (SCHILLER, 2003).

Atualmente, estudos psicossomáticos recebem contribuições de diferentes áreas da medicina científica, por meio de observações clínicas, por exemplo, de mecanismos neuroendócrinos e modelos cognitivos. Tais estudos indicam que, a depender das situações e dos níveis de estresse que as pessoas sejam submetidas, é possível que haja alterações no sistema imunológico, causando uma resposta no corpo que pode levar a doenças físicas, com diferentes sintomas.

2.3. Mecanismos de formação de sintomas e doenças psicossomáticas

O sintoma psicossomático pode ser atribuído à manifestação do que está escondido, que pode ser, muitas vezes, desconhecido e, por não haver outra maneira de vir à tona, apresenta-se por meio do corpo, na forma de uma enfermidade. Freire (2000) indica que a vivência do corpo é não somente movimento, mas impulsos, sentimentos, pensamentos, é viver a consciência do ser.

Não há o tratamento, em consultório, de um fígado, ou um coração, mas de uma pessoa, em sofrimento, sofrimento este que poder ser expresso por esses órgãos (FRANÇA; RODRIGUES, 2005). Para González Rey (2004) o mental afeta o somático não apenas pelo surgimento do sintoma, mas também pelos múltiplos mecanismos, formações e manifestações funcionais que geram insegurança, ansiedade, depressão, distresse e outras formas de expressões psicológicas que, ao atingirem estabilidade no que tange a personalidade, afetam de maneiras diversas o funcionamento somático do indivíduo.

Considerando que o nível de estresse desencadeia efeitos bioquímicos e fisiológicos no plano somático, tem-se que os principais sintomas verificados são decorrentes de funções dos órgãos. França e Rodrigues (2005) citam alguns, tais quais: aqueles que resultam das alterações das funções das fibras do aparelho digestivo, responsáveis por causar vômitos, diarreias, prisão de ventre; no aparelho respiratório, causando asma, bronquite; nas funções urinárias, trazendo dor ao urinar, cólicas renais, vaginismo, ejaculação precoce, cólicas menstruais; entre outros.

Silva e Silva (2007) trazem que inúmeros especialistas em dermatologia demonstram que, dentre as formas de um indivíduo expressar insatisfação, mal-estar ou desconforto, é por meio da somatização, isto é, por meio da liberação dessa emoção, de maneira não intencional, em um ou mais órgãos. Assim, algumas dermatoses têm relações comprovadas com alterações psicológicas, como, por exemplo, a dermatite atópica, que pode estar associada à asma, à urticária e à rinite alérgica, bem como a dermatite seborreica, que pode ser agravada por fatores emocionais.

Além disso, a dor pode, também, apresentar-se como um dos estressores mais comuns em pacientes somáticos, sobretudo nos casos de depressão. Mello Filho (1992) indica que pacientes com dor crônica, vistos em clínicas de dor ou em hospitais, apresentam depressão evidente, além disso, observou-se que um grande número de indivíduos com dores crônicas também possuem antecedentes familiares de depressão e/ou desordens do espectro depressivo; outra observação importante é de que os marcadores biológicos da depressão também mostram-se variavelmente alterados nas dores crônicas e que há analogias entre o tratamento farmacológico aplicado na depressão e o aplicado em alguns casos de dor crônica.

Mello Filho (2010) defende a importância de compreender que a situação em que o sujeito está submetido, independente se for com ele ou com outros agentes, é suficiente para gerar transtornos funcionais. A vida social influencia fortemente na saúde. Por essa razão, ao se analisar a doença, é importante que se analise o contexto social, visto que toda dinâmica do indivíduo é alterada em suas relações interpessoais. A doença pode ser, para alguns, uma forma de tentativa de dominar as dificuldades, ou de reagir a elas. Portanto, tendo-se em conta a complexidade desses fenômenos (psicossociais e somáticos) é improvável que se estabeleça uma relação causal ou etiológica direta e simples. O que se pode conseguir são hipóteses, e a hipótese mais aceitável está na interação existente entre fatores sociais, cognitivos, afetivos e comportamentais.

2.4. Entendimento da filosofia fenomenológica na psicologia

A fenomenologia, uma corrente filosófica que surgiu no final do século XIX e início do século XX, desempenhou um papel fundamental na forma como a psicologia compreende a experiência humana. Diferentemente das abordagens tradicionais, que muitas vezes se baseiam em observações objetivas e quantificáveis, a fenomenologia busca entender a experiência subjetiva tal como é vivida e percebida pelo indivíduo.

Assim, a fenomenologia, em sua essência, representa não apenas um método, mas um paradigma próprio para a exploração filosófica. Diferente de simplesmente ser uma entre várias abordagens possíveis em direção a um objetivo, a fenomenologia é uma maneira de pensar que confere uma coloração única ao destino alcançado.

Para isso, a metodologia fenomenológica busca descrever os diversos fenômenos presentes na consciência até alcançar sua essência.

Para compreensão dessa ideia, é importante realizar uma contextualização acerca do surgimento desta corrente. Edmund Husserl, no final do século XIX e início do século XX, fundou o movimento fenomenológico. Insatisfeito com os métodos de produção de conhecimento da época, advindos principalmente do método científico positivista, Husserl sentia que faltava à ciência um sentido para se chegar à realidade, uma forma de descrever o fato de que a ciência estava falando. Para isso, requer-se mais do que laboratório, pois se trata do ser humano e sua produção de significados.

A intuição de Husserl poderia ser expressa da seguinte forma: se o ser humano pudesse examinar sua experiência, com tudo o que ela envolve, abstendo-se do julgamento automático da realidade que ela representa, ele poderia chegar a conclusões seguras sobre o conhecimento e sua extensão. Seguindo por esse caminho, seria possível fazer afirmações sobre os processos da consciência, oferecendo assim um acesso à verdade que desafiaria o ceticismo generalizado e forneceria uma base sólida para as discussões filosóficas.

Portanto, que caminho seria este? Para ele, seria considerar a experiência em si mesma, independentemente do julgamento que fazemos naturalmente. Ou seja, diante de um fato ocorrido na realidade, adotar a atitude de transportar-se do julgamento da realidade para a essência da experiência. Dartigues (2005) ressalta que o mundo como fenômeno apenas possui sentido ao sujeito em sua manifestação, na experiência. Essa atitude é corriqueiramente tomada por psicólogos, ao ouvir acerca de uma experiência de um paciente, mesmo sem questionar se é verdadeira ou não, conectar-se com o significado subjacente desse discurso.

Efetuar essa passagem foi chamado de atitude fenomenológica, ou de redução fenomenológica. A redução fenomenológica, portanto, envolve suspender temporariamente a concepção da realidade conforme é entendida pelo senso comum. Seu objetivo é alcançar a essência do fenômeno. Trata-se de uma maneira específica de observar, de se aproximar do fenômeno. Consiste em uma abertura consciente e ativa de nossa mente para o fenômeno em sua pura manifestação. Nesse processo, discursos, opiniões, julgamentos ou preconceitos relacionados ao fenômeno são temporariamente postos de lado, permitindo assim um questionamento direto e desimpedido do próprio fenômeno em sua totalidade.

Outro princípio proposto por Husserl diz respeito à intencionalidade. O princípio da intencionalidade pressupõe uma relação entre o objeto e a consciência. De acordo com Dartigues (2005) o objeto só pode ser definido em sua relação com a consciência, sempre existindo como um objeto-para-um-sujeito. Nesse sentido, a consciência está sempre ciente de algo resultando na sua contínua manifestação no domínio da intencionalidade. Ao interagir com as coisas no mundo, a consciência atribui intenção e significado a essas experiências (CODINA; ARAUJO, 2008).

No que tange à psicologia, o método fenomenológico atua diretamente na relação psicólogo-cliente. Ao adentrar o consultório, o psicólogo é convidado a pôr entre parêntesis suas ideias pré-concebidas e a tratar o cliente como fenômeno a ser observado e a se observar. O processo de redução fenomenológica faz com que o cliente entre em contato com sua experiência, em como ele está se sentindo. É um processo de conscientização conduzido pelo psicólogo e voltado à individualidade do cliente. Por outro lado, trazer o princípio da intencionalidade durante o atendimento pode levar o cliente a ressignificar suas experiências, sobretudo as que para ele são negativas, visto que é este princípio que o sujeito utiliza para dar significado ao mundo e ao que vivencia.

2.5. A psicossomática e a fenomenologia existencial

Foi dito que a psicossomática é uma área da medicina e da psicologia que estuda a relação entre os fatores emocionais, psicológicos e sociais com as condições físicas do corpo. A fenomenologia existencial, proveniente de diferentes vertentes da filosofia, se concentra na experiência subjetiva do indivíduo e na forma como eles dão significado ao mundo ao seu redor. Assim, a fim de explorar as complexidades que permeiam a dimensão corporal da experiência humana com base nos princípios da fenomenologia existencial, é fundamental compreender a essência dessa abordagem em relação à psicossomática, a qual continua relevante nos tempos atuais.

A essência do pensamento moderno sobre a psicossomática caracteriza-a como algo que pertence tanto ao domínio orgânico quanto ao psíquico simultaneamente. Nesse contexto, a doença psicossomática é vista como uma condição física ou lesão orgânica que é provocada ou agravada por fatores psicológicos. No entanto, na contemporaneidade, a compreensão do ser humano tende a fragmentá-lo em partes distintas, especialmente em suas dimensões material e imaterial. Ao analisar essas dimensões separadamente, de acordo com os objetivos e métodos de pesquisa de cada campo do conhecimento, a compreensão sobre o homem e suas dimensões acaba presa na antiga dualidade corpo-alma, corpo-espírito ou corpo-psíquico. Essa abordagem dualista concebe o corpo meramente como uma entidade material, limitada pela epiderme, composta por órgãos e com um funcionamento específico, como apontado por Cardinalli (2003).

Martin Heidegger (2001) defende que o homem não está no mundo da mesma maneira que as coisas. Além disso, critica as pesquisas que limitam o somático ao que é explorado pelo método científico natural. Ele aponta que essa abordagem implica em tratar o corpo humano como se fosse apenas mais um objeto na natureza, buscando sua mensurabilidade, objetificação e a explicação de suas causas de maneira análoga a qualquer outro fenômeno natural. O filósofo também observa que muitos estudos no campo psicológico e psicossomático estão fundamentados em uma concepção do ser humano originada da ciência natural, frutos da filosofia cartesiana.

Ainda para Heidegger (2001), o ser humano está imerso no mundo, constantemente questionando o significado da vida e interagindo com pessoas e coisas. Para ele, a metodologia cartesiana, que objetiva e quantifica, é inadequada para entender o ser humano. Ao tentar transformar o homem em um objeto de estudo, esse modelo negligencia a existência humana tal como ela se manifesta no mundo.

Neste sentido, Heidegger (2001) considera que para se superar a relação sujeito-objeto é necessário que o corpo seja compreendido como “ser no mundo”. Isto é, seja “experienciado, assumido e suportado como traço fundamental do Dasein humano”. Dasein, ou existência, nos fornece a palavra “da” ou lá. Dizendo que um homem existe, a língua alemã nos diz que ele está “lá”. O filósofo é, então, um existencial. Isto é, entende que a corporeidade é constituinte fundamental do ser humano, inseparável dele, e que integra todas as suas relações com o mundo.

Não necessariamente deve-se assumir que essa abordagem existencial nega completamente a perspectiva científico-natural da medicina tradicional. As categorizações biológicas do corpo humano, que são fundamentais para a prática médica, são úteis e necessárias. No entanto, é crucial não limitar nossa compreensão da relação mente e corpo e suas manifestações de doença apenas a essas categorizações. Devemos ser cuidadosos para não as considerar como a única maneira válida de pensar sobre essa relação. Deve-se, portanto, abordar a questão da psicossomática de forma mais complexa, não enxergando mais os aspectos mental e físico como entidades separadas e dadas, mas sim compreendendo-os como partes integrantes de uma totalidade existencial.

Essas observações destacam que o cerne do tema em discussão, o corpo humano, está intrinsecamente ligado à constituição do ser humano e não pode ser entendido isoladamente, como um objeto físico separado. Todos os fenômenos corporais só podem ser verdadeiramente compreendidos quando considerados em relação à nossa própria compreensão do que somos e do que encontramos. A forma como percebemos nossa identidade, nossas crenças, desejos, planos e os obstáculos que enfrentamos determina nossa compreensão do nosso corpo. Esse entendimento pleno emerge quando compreendemos o significado de nossa existência no mundo como um todo integrado. Portanto, a doença pode ser vista como uma limitação de possibilidades e é crucial compreender como essa limitação altera nossa experiência cotidiana no mundo.

2.6. Considerações finais

No decorrer deste artigo, um tema extraordinariamente abrangente e complexo, passível de uma série de análises em diferentes perspectivas, foi objeto de nossa atenção. Abordou-se duas perspectivas cruciais que lançam luz sobre a intrincada relação entre mente e corpo: a psicossomática e a fenomenologia-existencial. A psicossomática, ancorada em uma sólida base filosófica e psicológica, oferece insights profundos sobre como as emoções, pensamentos e experiências sociais podem se manifestar fisicamente. Examina-se a somatização como uma expressão tangível de conflitos e angústias internas, sublinhando a importância de entender os sintomas corporais não apenas como entidades físicas, mas como mensagens simbólicas da mente.

Paralelamente, a fenomenologia-existencial proporciona uma abordagem filosófica que transcende a dualidade corpo-mente, reconhecendo o corpo não apenas como um invólucro físico, mas como uma parte intrínseca da existência humana no mundo. Sob essa perspectiva, o corpo é vivido e sentido, moldando e sendo moldado pelas experiências e interações cotidianas. Ao considerar o corpo como um componente essencial da experiência humana, a fenomenologia-existencial desafia a concepção mecanicista e materialista do corpo, propondo uma compreensão mais holística e integrada.

A integração dessas duas abordagens oferece uma visão profundamente enriquecedora da relação mente-corpo. O entendimento da somatização como um fenômeno que transcende o puramente físico implica que os sintomas somáticos são, de fato, manifestações complexas de estados emocionais, psicológicos e até existenciais. Compreender a dor, a doença ou qualquer manifestação somática requer uma exploração aprofundada das emoções e experiências subjacentes, trazendo à tona não apenas a origem física dos sintomas, mas também suas raízes psicológicas e existenciais.

Além disso, essa visão integrada não apenas beneficia a prática médica e psicológica, mas também ressoa com as experiências humanas cotidianas. No nível individual, isso implica uma percepção mais profunda e compassiva de si mesmo. Os indivíduos são encorajados a reconhecer e honrar suas experiências emocionais, bem como a forma como essas experiências se manifestam em seus corpos. A integração mente-corpo não é apenas uma questão de saúde, mas também de autoconhecimento e aceitação.

No contexto clínico, essa compreensão holística se traduz em práticas mais empáticas e abrangentes. Os profissionais de saúde são incentivados a adotar uma abordagem que não apenas trata os sintomas físicos, mas também se aventura nos reinos do psicológico e do existencial. Ao fazer isso, não estão apenas tratando doenças; estão cuidando de pessoas inteiras, levando em conta não apenas suas condições físicas, mas também suas narrativas emocionais e existenciais.

Além disso, essa visão integrada desafia as percepções convencionais de saúde e doença na sociedade. Ao reconhecer a interconexão intrínseca entre mente e corpo, surge uma nova narrativa sobre o que significa ser saudável. A saúde não é mais apenas a ausência de doença física, mas sim um estado de equilíbrio dinâmico entre o bem-estar físico, emocional e existencial. O bem-estar integral não é alcançado isolando-se a mente do corpo, mas sim abraçando a totalidade do ser humano.

Em última análise, essa compreensão integrada convida a uma transformação na forma como encaramos a saúde e a doença. Desafia-nos a reconhecer a importância vital de nutrir não apenas nossos corpos, mas também nossas mentes e almas. Convida-nos a redefinir a abordagem à saúde, não apenas como a erradicação de sintomas físicos, mas como a promoção do equilíbrio e da harmonia em todas as dimensões do nosso ser.

Portanto, ao considerar tanto a psicossomática quanto a fenomenologia-existencial, alcança-se uma compreensão mais rica e integrada da complexa relação mente-corpo. Esta visão holística não apenas ajuda a compreender melhor as origens das doenças, mas também permite oferecer cuidados mais abrangentes e empáticos aos pacientes, levando em conta não apenas seus sintomas físicos, mas também suas experiências emocionais e existenciais. Essa compreensão integrada convida a redefinir a abordagem à saúde, reconhecendo a grande importância de nutrir tanto a mente quanto o corpo para o bem-estar integral do indivíduo.

REFERÊNCIAS

CAIRUS, A.; RIBEIRO JÚNIOR, W.A. Textos hipocráticos: o doente, o médico, a doença. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005.

CAPRA, F. Opontodemutação. São Paulo: Cultrix, 1982.

CARDINALLI, I. E. Daseinsanalyse: Corpo e corporeidade. Revista Brasileira de Daseinsanalyse, 2003.

CODINA, Graciela Deri; ARAUJO, Paulo Roberto Monteiro de. Leitura fenomenológica da arte e do ser humanoapontaparaasuperaçãodosentidoeaberturadesignificados. Ciência e Vida: Revista Filosofia Especial, São Paulo, 2008.

DARTIGUES, André. O que é fenomenologia? Tradução Maria J. G. de Almeida. São Paulo: Centauro, 2005.

FREIRE, C.A. O corpo reflete o seu drama: somatodrama comoabordagempsicossomática. São Paulo: Agora, 2000.

FRANÇA, A. C. L.; RODRIGUES, L. R. StresseTrabalho:umaabordagem psicossomática. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.

GONZÁLEZ REY, F. Personalidade,SaúdeeMododeVida. São Paulo: Thomson, 2004. HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes, 2001.

HOWARD, R.; LEWIS, M.E. FenômenosPsicossomáticos. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

MARGOTTA, R. HistóriaIlustradadaMedicina. São Paulo: Manole, 1998.

MATTAR, C. M.; etal. DatradiçãoemPsicossomáticaàsConsideraçõesdaDaseinsanálise. Psicol. cienc. prof., 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932016000200317&lng=en &nrm=iso. Acesso em setembro de 2023.

ORNELLAS, C. As doenças e os doentes: a apreensão das práticas médicas no modo de produção capitalista. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 1999.

QUEIROZ, M. S. O paradigma mecanicista da medicina ocidental moderna: umaperspectiva antropológica. Revista de Saúde Pública, 1986.

SCHILLER, P. Psicossoma III: interfaces da psicossomática. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

SEVALHO, G. Uma abordagem histórica das representações sociais de saúde e doença. Cadernos de Saúde Pública,, 1993.

SILVA, K. S.; SILVA, E. A. T. Psoríase e sua relação com aspectos psicológicos, stress e eventos da vida. Estud. psicol. (Campinas), Campinas, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2007000200012&lng=en &nrm=iso. Acesso em setembro de 2023.

TOSCANO JR., A. Um breve histórico sobre o uso de drogas. In: SEIBEL, S.; TOSCANO JR., A. (Eds.). Dependência de drogas. São Paulo: Atheneu, 2001.

VOLICH, R.M. Hipocondria, impasses da alma, desafios do corpo (Coleção Clínica Psicanalítica). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.


1 Graduanda em Psicologia. Faculdade Carajás. E-mail: kahreis22@yahoo.com

2 Orientadora, Bacharel em Psicologia, Especialista em logoterapia, avaliação psicológica e docência do ensino superior. E-mail: larykremers@gmail.com