SEXUAL VIOLENCE AS A PUBLIC HEALTH CHALLENGE: AN ASSESSMENT OF THE SOCIODEMOGRAPHIC AND EPIDEMIOLOGICAL PROFILE OF VICTIMS IN THE STATE OF PIAUÍ BETWEEN 2011 AND 2021
LA VIOLENCIA SEXUAL COMO DESAFÍO DE SALUD PÚBLICA: UNA EVALUACIÓN DEL PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO Y EPIDEMIOLÓGICO DE LAS VÍCTIMAS EN EL ESTADO DE PIAUÍ ENTRE 2011 Y 2021
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202512111535
Alice Januário Guedes Fernandes1
Luana Nascimento da Silveira1
Luciana Tolstenko Nogueira¹
RESUMO
Objetivo: Analisar o perfil epidemiológico da vítima de violência sexual no estado do Piauí entre os anos de 2011 e 2021. Métodos: Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo, quantitativo e transversal cujos dados foram obtidos por meio de consulta às bases de dados SINAN (Sistema de Informações de Agravos de Notificação). Foram incluídas as mulheres vítimas de violência sexual notificadas no período entre [1]º de janeiro de 2011 a 31 de dezembro de 2021, no estado do Piauí. Resultados: Entre 2011 e 2021, foram registrados 5.828 casos de violência sexual contra mulheres no estado do Piauí, sendo estes em diversos perfis sociodemográfico. Conclusão: Nota-se que o perfil das vítimas são, principalmente, na faixa etária de 5 a 14 anos, de raça parda, com escolaridade entre 5ª e 8ª séries incompletas do ensino fundamental. É importante maiores investimentos na qualificação dos profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento desse tipo de paciente, a fim de propiciar um ambiente acolhedor e humano.
Palavras-Chave: Assistência qualificada, Violência sexual, Perfil sociodemográfico.
ABSTRACT
Objective: To analyze the epidemiological profile of the victims of sexual violence in the state of Piauí between 2011 and 2021. Methods: This is a descriptive, quantitative and cross-sectional epidemiological study whose data were obtained by consulting the SINAN databases (Information System for Notifiable Diseases). Women victims of sexual violence notified in the period between January 1, 2011 and December 31, 2021, in the state of Piauí, were included. Results: Between 2011 and 2021, 5,828 cases of sexual violence against women were recorded in the state of Piauí, with different sociodemographic profiles. Conclusion: It is noted that the profile of the victims are mainly aged between 5 and 14 years old, of brown race, with education between the 5th and 8th grades of elementary school. It is important to invest more in the qualification of health professionals responsible for caring for this type of patient, in order to provide a welcoming and humane environment.
Key words: Qualified assistance, Sexual violence, Sociodemographic profile.
RESUMEN
Objetivo: Analizar el perfil epidemiológico de las víctimas de violencia sexual en el estado de Piauí entre 2011 y 2021. Métodos: Se trata de un estudio epidemiológico descriptivo, cuantitativo y transversal cuyos datos se obtuvieron mediante consulta a las bases de datos del SINAN (Sistema de Información de Enfermedades de Declaración Obligatoria). Se incluyeron mujeres víctimas de violencia sexual notificadas en el período comprendido entre el 1 de enero de 2011 y el 31 de diciembre de 2021, en el estado de Piauí. Resultados: Entre 2011 y 2021, se registraron 5.828 casos de violencia sexual contra mujeres en el estado de Piauí, con diferentes perfiles sociodemográficos. Conclusión: Se advierte que el perfil de las víctimas son mayoritariamente de 5 a 14 años, de raza parda, con escolaridad entre 5° y 8° grado de primaria. Es importante invertir más en la calificación de los profesionales de la salud responsables de la atención de este tipo de pacientes, con el fin de proporcionar un ambiente acogedor y humano.
Palabras clave: Asistencia cualificada, Violencia sexual, Perfil sociodemográfico.
INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher consiste em qualquer ato que resulta, ou pode resultar, em dano físico, sexual ou psicológico, ou sofrimento para a mulher, sendo considerado um fenômeno multidimensional e um problema de Saúde Pública a atingir mulheres em diversas idades, etnias, e em todos os períodos de seu ciclo vital (GRACIANO A, et al., 2017). No Brasil, é considerada questão complexa devido à multifatorialidade de causas (uso de drogas lícitas e ilícitas, conflitos sociais, familiares e econômicos e transtornos mentais) que afetam diversos sujeitos, dentre eles: a própria vítima, seus familiares e a sociedade (ALBUQUERQUE AL e SILVA WC, 2017). Associado a isso, é válido ressaltar as diversas consequências para a vítima, tanto a curto, quanto a longo prazo, tais como a gravidez indesejada, Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), incluindo a infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), danos físicos, psicológicos e sexuais (ALBUQUERQUE AL e SILVA WC, 2017).
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ao longo da vida, uma a cada três mulheres é vítima de violência física e/ou sexual por parte de parceiros e/ou não parceiros em todo o mundo. Esta violência começa cedo, visto que uma em cada quatro mulheres de 15 a 24 anos podem ter sofrido violência sexual por volta dos vinte anos (DANTAS BLL, et al., 2022). No Brasil, a cada 10 minutos uma mulher é vítima de estupro e a cada 7 horas, uma é vítima de feminicídio, considerando apenas os dados que chegam ao conhecimento das autoridades; sendo que alguns Estados ainda superam a taxa nacional de feminicídios de 1,2 casos a cada 100 mil mulheres em 2021, como o Piauí, que apresentou no mesmo ano uma taxa de 2,2 casos a cada 100 mil mulheres (FÓRUM BRASILEIRO DE SAÚDE PÚBLICA, 2021).
Com o propósito de modificar a conduta dos agressores e diminuir a taxa de violência contra a mulher, as últimas décadas foram marcadas por constantes atualizações na legislação brasileira. Em 1980, foram criadas as primeiras Delegacias da Mulher, como uma resposta à demanda por políticas específicas, com a consequente criminalização dos responsáveis. Em seguida, em 1990, houve a criação dos Juizados Especiais voltados a violência doméstica (BRASIL, 2006).
Com a percepção de que as delegacias não eram suficientes para visibilizar a violência doméstica e dar celeridade às investigações, em 2006, promulgou-se a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Tal publicação é resultado de um esforço coletivo no sentido de formular uma legislação que compreendesse o fenômeno da violência doméstica contra mulheres, estabelecendo conceitos e metodologias jurídicas de abordagem da questão. Desde então, a violência doméstica contra a mulher tem se tornado cada vez mais parte do discurso público (BRASIL, 2006).
Assim, pode-se afirmar que as políticas elaboradas, os ajustes legais e os planos desenvolvidos com foco na violência sexual a partir dos anos 2000, principalmente, constituíram inegavelmente saldo positivo no campo da legislação e lançaram diretrizes para o futuro. Representam possibilidades de expansão e institucionalização, construídas nas décadas anteriores, sobretudo com a participação dos movimentos feministas (LIMA CA e DESLANDES SF, 2014).
Entretanto, é válido ressaltar que, mesmo diante dos avanços, as vítimas ainda enfrentam muitas dificuldades, uma vez que existem sérios problemas de estrutura, que é ainda reduzida e não abrange de forma adequada todas as etapas do processo de denúncia, investigação e julgamento. Dessa maneira, muitas denúncias demoram um longo período até serem julgadas, e as medidas de proteção de urgência são pouco efetivas. Com isso, vê-se a grande lacuna ainda existente no enfrentamento à violência contra a mulher (SOARES EMR, et al., 2016).
No que cerne o atendimento nos serviços de saúde, a mulher violentada sexualmente necessita de acolhimento, fator fundamental para a humanização da assistência à saúde e essencial para que se estabeleça um relacionamento de forma adequada entre o profissional e a cliente (HIGA R, et al., 2008).
É válido ressaltar também a importância do acompanhamento multiprofissional, envolvendo apoio psicológico. Isso porque destaca-se que os abusos são um importante fator de risco para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos, mas não há um único quadro sintomatológico que caracterize a maioria das vítimas abusadas sexualmente. De acordo com a literatura, crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual podem desenvolver transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de ansiedade, quadros de depressão, transtornos alimentares, transtorno dissociativo, transtorno de hiperatividade e déficit de atenção e transtorno de personalidade borderline (FARAJ SP e SIQUEIRA AC, 2012).
Dessa forma, o conhecimento do perfil epidemiológico das vítimas, dos agressores e do contexto em que ocorreu a violência sexual é de extrema importância para melhor entendimento dos casos e para a elaboração de medidas preventivas efetivas (MALUF GC, et al., 2021), bem como para a implementação de uma assistência humanizada e sem discriminação por parte da equipe de saúde (ALBUQUERQUE AL e SILVA WC, 2017).
MÉTODOS
Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo, quantitativo e transversal cujos dados foram obtidos por meio de consulta às bases de dados SINAN (Sistema de Informações de Agravos de Notificação), que registra os dados referentes a violência sexual através da Ficha de Notificação de Violências Interpessoais e Provocadas. Foram incluídas as mulheres vítimas de violência sexual notificadas no período entre 1º de janeiro de 2011 a 31 de dezembro de 2021, no estado do Piauí.
As variáveis do estudo foram extraídas da ficha de notificação compulsória de violência física, sexual e/ou outras violências, sendo elas: informações da vítima (idade, escolaridade, raça); vínculo ou grau de parentesco com o agressor; tipo de violência praticada e encaminhamento final do caso.
A partir dos dados obtidos pelo DATASUS, foram construídos novos gráficos por meio do programa Microsoft Office Excel, no qual também foram realizados os cálculos de porcentagem de cada variável para confecção dos respectivos gráficos.
RESULTADOS
Entre 2011 e 2021, foram registrados 5.828 casos de violência sexual contra mulheres no estado do Piauí. Destes, 725 (12,44%) casos foram registrados em 2017, ano com o maior número de notificações, seguido pelo ano de 2019 com 701 (12,03%) notificações e 2016, com 677 (11,62%) notificações.
O gráfico 1 revela as faixas etárias mais afetadas pela violência sexual contra mulheres, sendo expressivo o número de casos entre a faixa de 5 a 14 anos, somando um total de 3.509 (60,21%).

Fonte: DATASUS
No gráfico 2, é possível observar que mais da metade das notificações (71,83%) são oriundas de vítimas que se autodeclaram pardas, seguidas das mulheres brancas (11,67%) e pretas (9,44%).

Fonte: DATASUS
Em relação ao grau de escolaridade, como é detalhado no gráfico 3, 1.827 (31,35%) vítimas relatam ter feito da quinta à oitava série incompleta do ensino fundamental.

Legenda do gráfico 3: A – Ignorado/Branco; B – Analfabeto; C – 1ª a 4ª série incompleta do ensino fundamental; D – 4ª série completa do ensino fundamental; E – 5ª a 8ª série incompleta do ensino fundamental; F – Ensino fundamental completo; G – Ensino médio incompleto; H – Ensino médio completo; I – Educação superior incompleta; J – Educação superior completa; L – Não se aplica.
Fonte: DATASUS
Já o gráfico 4 evidencia a distribuição das ocorrências segundo a relação da vítima com o agressor. Destas, 2.245 (55,35%) foram vítimas de amigos ou conhecidos, 617 (15,21%) do padrasto e 520 (12,82%) casos nos quais o namorado foi o autor da violência sexual.

Legenda do gráfico 4: A – Irmão; B – Amigos/conhecidos; C – Ex cônjuge; D – Namorado; E – Cônjuge; F – Pai; G – Padrasto.
Fonte: DATASUS
O gráfico 5 traz dados a respeito do tipo de violência sofrido pelas vítimas. O estupro foi a agressão mais notificada, com o total de 4.662 (71,22%) casos, seguido pelo assédio, com 1.388 (21,20%) notificações.

Fonte: DATASUS
No gráfico 6, é observado como ocorre o seguimento da vítima na área da saúde. Entre as notificações, 621 (10,66%) foram encaminhadas para nível ambulatorial e 95 (1,63%) tiveram que ser internadas em hospitais. O dado alarmante diz respeito ao grande número de casos, 4.697 (80,59%), que não foi registrado o tipo de seguimento realizado.

Fonte: DATASUS
DISCUSSÃO
A violência de gênero é aquela fundamentada na hierarquia e desigualdade entre os gêneros masculino e feminino. É de culpa tanto do agressor, como também da errônea cultura da autoridade masculina e da submissão da mulher. Cotidianamente, as mulheres são desvalorizadas na sociedade e até mesmo aquelas que alcançam posição de destaque, sofrem discriminação de gênero perpetradas em todos os níveis econômicos (TELES PNBG, 2013).
Assim, diante da crescente demanda da sociedade em formas de intervenção nesse cenário, a violência doméstica passou a ser de notificação compulsória imediata, através da Lei nº 10.778 de 2003 (atualizada para o nº 13.931 em 2019), de forma que os serviços de saúde, tanto públicos quanto privados, teriam 24h para tomar as providências cabíveis e para registrar com fins estatísticos no Sistema de Notificação de Agravos (SINAN) (BRASIL, 2019).
Tal ficha de notificação compulsória de violência doméstica, sexual e outros tipos de violência interpessoal aborda a identificação da vítima, bem como dados da ocorrência, caracterizando o tipo e o meio de agressão. Quanto à violência sexual especificamente, questiona-se sobre o tipo de agressão, se houve penetração, o sexo, quantidade de agressores envolvidos e se estes tinham relação com a vítima; além da presença de consequências e das condutas tomadas imediatamente e a longo prazo.
Nesse cenário, a OMS define violência sexual como qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em dano ou sofrimento físico, sexual ou mental para a mulher, incluindo ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade, seja na vida pública ou privada (OMS, 2021).
São mulheres vítimas de violência sexual toda mulher pós-púbere, menopausada e não púbere maior de 14 anos que relate ter sido vítima de violência sexual das seguintes formas: estupro, atentado violento ao pudor com penetração oral e/ou anal ou sem penetração com ejaculação externa próxima à região genital. A essas mulheres é oferecido atendimento médico especializado durante as primeiras 24 horas, no momento em que a cliente chega ao serviço e em local privativo e tranquilo (HIGA R, et al., 2008).
A abertura do Boletim de Ocorrência (B.O.) é prerrogativa da mulher, ela ou seus representantes legais são estimulados a comunicar às autoridades policiais e judiciárias, porém cabe a eles a decisão final; deve-se informar que a consulta ginecológica não substitui o Exame de Corpo de Delito. O hospital somente comunicará a violência às autoridades nos casos previstos em lei e ao Conselho Tutelar da Infância e Juventude os menores de 18 anos (HIGA R, et al., 2008).
De acordo com o protocolo “Assistência às mulheres e meninas vítimas de violência sexual” da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, na primeira consulta deve-se colher amostras sanguíneas para sorologias para todas as pacientes, β-hCG para pacientes no menacme e avaliação bioquímica para aquelas que realizarão profilaxia com antirretrovirais: sorologias: Anti-HIV; Hepatite B (HbsAG e anti Hbs); Hepatite C (anti- HCV); Sífilis (VDRL) Bioquímica: Hemograma, TGO, TGP, Bilirrubinas, Ureia, Creatinina, além de deixar novo pedido de avaliação bioquímica para coleta antes do retorno no ambulatório em 7 a 14 dias. A coleta de material biológico (vestígios) durante o atendimento às vítimas de violência sexual é de extrema importância para a identificação do agressor por meio de exame de DNA, visando desta forma, agilizar o processo de criminalização e evitar a impunidade de quem perpetra a violência (UFTM, 2021).
No Piauí, ao longo dos 10 últimos anos, pode-se perceber um aumento progressivo do número de casos de violência sexual, seguindo a mesma tendência que estudos realizados em outros Estados, como no Distrito Federal (SILVA LEL e OLIVEIRA MLCO, 2016). Isso pode ser atribuído, em um primeiro momento, à implantação do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), que contribuiu, por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), com um importante banco de dados oficiais (GASPAR RS e PEREIRA MUL, 2018), que permite que as autoridades tenham conhecimento da complexidade do problema e possam, então, tomar medidas cabíveis.
Por outro lado, porém, no Brasil se tem uma alta prevalência de casos – segundo revisão de literatura identificou que até 40% das mulheres e 35% dos homens relataram alguma forma de agressão sexual no ano anterior ao estudo (GASPAR RS e PEREIRA MUL, 2018), de forma que, mesmo com tal aumento de notificação, ainda acredita-se em uma notória subnotificação.
Logo, vê-se que os profissionais de saúde são essenciais na identificação e intervenção dessas situações, uma vez que são eles que fazem a notificação da violência, e para que haja um atendimento resolutivo, uma intervenção interdisciplinar se faz necessária. Dentre outras, a profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis, a prevenção de uma gravidez indesejada e, sobretudo, o acolhimento, são medidas que contribuem para um bom atendimento à vítima. Por vezes, o encaminhamento para ambulatório específico ou para unidade básica de saúde também é necessário (VILELA LF, 2009).
É válido enfatizar, ainda, que a pandemia de Covid-19, decretada emergência global de Saúde Pública pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 30 de janeiro de 2020, impactou negativamente nas notificações. No Piauí, observou-se a queda de 27% em 2020 e de 23% em 2021 quando comparadas com o ano anterior, de 2019, o que não necessariamente implica na redução da incidência de casos. Isso porque os crimes sexuais apresentam altíssima subnotificação, e a falta de pesquisas periódicas de vitimização tornam ainda mais difícil sua mensuração. Estudos que especulam as hipóteses para tal cenário, como uma construção coletiva de pactos que ocultam e silenciam estes crimes, a assim chamada cultura do estupro, somada ao compartilhamento de práticas de masculinidade violentas que perpassam essas ações (BOHNENBERGER M e BUENO S, 2021). Dessa forma, limita-se a compreensão dos impactos da Pandemia nas vítimas de violência sexual.
Em relação à análise das faixas etárias vítimas de violência sexual nos últimos 10 anos no Piauí, pode-se perceber que, apesar de acometer mulheres em distintas fases da vida, as mais acometidas são as mulheres entre 5 e 14 anos, compondo um 60,21%. Esse dado é compatível com estudo realizado no período de 2004 a 2014 também no Piauí (SOARES EMR, et al., 2016), bem como com levantamento realizado no Pará (BAÍA PAD, et al., 2013).
Neste sentido, pode-se atribuir a maior prevalência entre indivíduos na fase da adolescência devido ao fato de serem física, psicológica e socialmente mais vulneráveis, de forma que que, muitas vezes, a falta de maturidade contribui para uma maior facilidade de manipulação por parte do agressor.
Não é apenas o desejo sexual o fator proeminente na motivação dos agressores sexuais, mas também o gênero, pois crianças e adolescentes fazem parte da categoria dominada e sujeita ao poder exercido pelo mais velho sobre o mais jovem. Dessa forma, crianças e adolescentes como seres em desenvolvimento, psicológica e moralmente imaturos, muitas vezes não conseguem resistir a um familiar adulto que lhes impõe sua autoridade transformando-os em objetos sexuais. É nesse contexto que ocorre a violência sexual de adultos contra crianças e adolescentes, ocorre pelo predomino do autoritarismo e preconceitos (GRACIANO A, et al., 2017).
Além disso, sabe-se que muitos adolescentes tendem a reter a informação de que foram sexualmente abusados por já discriminarem mais claramente as consequências de tal revelação, o que pode estar associado tanto a subnotificação quanto a notificação mais tardia dos casos (BAÍA PAD, et al., 2013).
Complementarmente, a capacidade de relatar o abuso sexual depende também do nível linguístico e cognitivo das vítimas, e da capacidade em compreender determinadas interações como abusivas (BAÍA PAD, et al., 2013). Isso pode ser refletido no aumento de casos notificados proporcional ao aumento da idade das vítimas crianças e adolescentes. Dessa maneira, vê-se a importância de mecanismos, especialmente no meio familiar ou na rede de apoio (escolas, hospitais, por exemplo) para rastreio ativo de casos de violência sexual, através de alto grau de suspeição, por exemplo, de mudanças comportamentais súbitas, que possam traduzir a ocorrência de abusos.
Em relação ao nível de escolaridade das vítimas, pode-se perceber que a maior porcentagem delas (31,3%) possuíam da 5ª à 8ª série incompletas. Ademais, nota-se, ainda, que apenas 21% das vítimas estavam no ensino superior, seja completo ou incompleto. Tais dados são compatíveis com a análise de estudo realizado na capital do Piauí, Teresina, que concluiu que 63,5% das vítimas tinham ensino fundamental e médio (ARAUJO RP, et al., 2014); bem como com um estudo realizado no Maranhão (SILVA SBJ, et al., 2021), que apresentou dentre os resultados que cerca de 69% das vítimas possuíam até o ensino médio.
No Piauí, a cor da pele/raça mais autodeclarada entre as vítimas da violência sexual é a parda, correspondendo a 71,83% das notificações. Esse resultado se assemelha ao encontrado em outros estudos que avaliam a violência sexual contra mulheres. Outro estudo, que descreve o perfil epidemiológico das vítimas da violência no Distrito Federal também corrobora com o maior número de notificações entre mulheres pardas (SILVA LEL e OLIVEIRA MLCO, 2016). Paralelarmente, no Brasil, observou-se um aumento, quando se descreve os anos de 2009 e 2013 entre as notificações de mulheres pardas que foram vítimas da violência sexual (GASPAR RS e PEREIRA MUL, 2018).
A relação entre a vítima e o agressor é outro aspecto analisado e mais da metade das notificações (55,35%) relatadas no Piauí reforçam que os algozes são amigos ou conhecidos das mulheres que sofrem a agressão. Nesse sentido, a literatura possui dados tanto concordantes quanto discordantes desta realidade, uma vez que em outra capital do Nordeste a maioria dos agressores são desconhecidos das vítimas (ALBUQUERQUE AL e SILVA WC, 2017). Enquanto que outra parte da literatura associa a violência sexual a agressores que possuem um vínculo próximo à vítima. Avaliando todo o panorama brasileiro, observa-se que, nos casos de violência sexual entre 2009 e 2018, amigos/conhecidos estão entre os que mais vitimizam mulheres (DANTAS BLL, et al., 2022).
No Piauí, o estupro é o tipo de violência mais notificado, correspondendo a 71,22% do total. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o estupro é definido como “violência física forçada ou penetração forçada da vulva ou ânus com um pênis, outra parte do corpo ou objeto, tentativa de estupro, toque sexual indesejado e outras formas sem contato” (OMS, 2021). O número de casos de estupro no Brasil, apesar da subnotificação, está em uma crescente, de forma, entre os anos de 2009 e 2018, este tipo destaca-se entre os demais tipos de violência sexual, como evidenciado em outros estudos (DANTAS BLL, et al., 2022). Tal realidade é observada, também, em diferentes regiões do país. Como exemplo, tem-se um estudo realizado em uma capital da região do Sul, no qual o estupro foi o tipo de violência mais notificado entre os casos de violência sexual (MALUF GC, et al., 2021). Desse modo, nota-se que o panorama observado no Piauí encontra-se em consonância com as principais literaturas do país.
No que cerne ao encaminhamento no setor de saúde que tais vítimas recebem, a Ficha de Notificação inclui como opções: encaminhamento ambulatorial, encaminhamento para internação, ignorado ou não se aplica. Percebe-se que, dentre os dados analisados, 80,5% foram deixados em branco, o que denota ainda a limitação do acompanhamento longitudinal com a paciente, por parte da equipe que realizou a notificação.
O primeiro passo para que tal acompanhamento seja feito de forma integral baseia-se em uma escuta qualificada com a observação dos princípios de respeito à dignidade do ser humano, algo que já é recomendado por protocolo ministerial. Esta deve ser realizada em ambiente privado e seguro a fim de promover o diálogo entre profissional e usuária e o relato da violência, bem como o sigilo no atendimento (MOTA JA e AGUIAR RS, 2020).
A falta de conhecimento acerca da temática e a fragilidade em realizar tal escuta qualificada por parte dos profissionais é decorrente, muitas vezes, do desconhecimento acerca do impacto negativo causado na vítima de violência sexual, fazendo com que o profissional direcione o manejo da situação apenas para o modelo biomédico, deixando de lado uma atenção integral (BOHNENBERGER M e BUENO S, 2021).
Quando tratamos da normalização da atenção para mulheres em situação de violência sexual e a necessidade de disseminação dessa estratégia como forma de prevenção aos agravos decorrentes da violência sexual, as literaturas são unânimes em destacar a importância de se preparar especialistas para esse tipo de atendimento (LIMA CA e DESLANDES SF, 2014).
Considerando-se a totalidade dos profissionais do SUS, o questionamento sobre a cobertura de qualificação para a atenção à violência sexual é inevitável. Mostra-se necessário que o Ministério da Saúde, em parceria com as secretarias estaduais de Saúde e instituições de ensino superior, desenvolvam estratégias e metodologias de ensino capazes de comprometer e preparar profissionais de saúde nos diversos níveis de complexidade para o atendimento à violência sexual contra mulheres em todas as regiões de saúde do país (LIMA CA e DESLANDES SF, 2014).
CONCLUSÃO
O presente estudo permitiu avaliar as características epidemiológicas e sociodemográficas das mulheres vítimas de violência sexual no estado do Piauí entre os anos de 2011 e 2021. Assim, nota-se que o perfil das vítimas são, principalmente, na faixa etária de 5 a 14 anos, de raça parda, com escolaridade entre 5ª e 8ª séries incompletas do ensino fundamental. Além disso, conclui-se que os agressores são, essencialmente, amigos ou conhecidos e que o principal tipo de violência praticado é o estupro. No que se refere ao encaminhamento, percebe-se que ainda há um grande déficit de preenchimento deste item na ficha de notificação, contudo, dentre os preenchidos, o principal desfecho foi para encaminhamento ambulatorial. Tais dados são compatíveis com a realidade de outros estados, bem como do Brasil como um todo. Nota-se, também, um crescente aumento do número de notificações, o que evidencia melhorias no SINAN, bem como demonstra que ainda há muito a ser feito no que se refere a assistência de mulheres vítimas de violência sexual. Outro ponto a ser destacado, é a importância de maiores investimentos na qualificação dos profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento desse tipo de paciente, a fim de propiciar um ambiente acolhedor e humano.
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1 Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Teresina-Piauí. lucianatolstenko@ccs.uespi.br
