REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202512171145
Lucas Pedroza Daniel1
Resumo
A crise do fentanil nos Estados Unidos tornou-se uma das maiores emergências de saúde pública contemporâneas, sendo responsável por mais de 70 mil mortes por overdose em 2022. A Atenção Primária à Saúde (APS), em especial a Medicina de Família, tem papel fundamental na resposta a essa epidemia, tanto na triagem precoce e orientação terapêutica quanto na articulação de estratégias de redução de danos e encaminhamento para tratamento medicamentoso do transtorno por uso de opioides (TUP-O). Este artigo apresenta uma revisão crítica da literatura internacional sobre as principais intervenções em APS frente à crise do fentanil, como programas de triagem estruturada (SBIRT), distribuição comunitária de naloxona, integração com serviços de urgência e uso de equipes multiprofissionais. São também discutidos os principais desenhos metodológicos utilizados para avaliar impacto dessas ações, incluindo coortes retrospectivas, estudos quasi-experimentais e métricas de processo e desfecho clínico. Conclui-se que a Medicina de Família, quando adequadamente capacitada e integrada a políticas públicas robustas, pode ser vetor essencial na reversão do ciclo de dependência, recaída e mortalidade que caracteriza a crise atual.
Palavras-chave: fentanil; atenção primária; medicina de família; naloxona; opioides; triagem; transtorno por uso de substâncias.
Abstract
The fentanyl crisis in the United States has become one of the most severe contemporary public health emergencies, accounting for over 70,000 overdose deaths in 2022. Primary Health Care (PHC), especially Family Medicine, plays a fundamental role in addressing this epidemic, from early screening and therapeutic guidance to implementing harm reduction strategies and initiating medication-based treatment for opioid use disorder (OUD). This article presents a critical review of international literature on key PHC interventions in response to the fentanyl crisis, including structured screening programs (SBIRT), community naloxone distribution, integration with emergency services, and the use of multidisciplinary teams. It also examines the main methodological approaches used to assess the impact of these actions, such as retrospective cohort studies, quasi-experimental designs, and both process and clinical outcome metrics. The findings indicate that, when properly trained and supported by strong public policies, Family Medicine can play a crucial role in reversing the cycle of addiction, relapse, and mortality that defines the current crisis.
Keywords: fentanyl; primary health care; family medicine; naloxone; opioids; screening; substance use disorder.
Introdução e contexto da crise do fentanil
Nos últimos anos, os Estados Unidos têm enfrentado um agravamento dramático da epidemia de overdoses por opioides. Em 2022, foram registradas 107.941 mortes por overdose no país, quase quatro vezes mais do que em 2002, sendo que a maioria desses óbitos envolve opioides sintéticos de alta potência, especialmente o fentanil, frequentemente misturado a outras drogas sem o conhecimento do usuário. Entre 2021 e 2022, por exemplo, a taxa ajustada de mortalidade por overdoses envolvendo opioides sintéticos aumentou de 21,8 para 22,7 por 100.000 habitantes, refletindo a expansão contínua do problema. Essa crise apresenta características específicas: o fentanil é entre 50 e 100 vezes mais potente que a morfina, produz efeito rápido e tem reversão mais difícil, devido à alta afinidade pelos receptores opioidais. Nesse contexto, as intervenções de saúde pública precisam combinar detecção precoce de uso nocivo, ampliação do acesso ao tratamento para transtorno por uso de opioides (TUP-O) e estratégias consistentes de redução de danos, com destaque para a maior disponibilidade de naloxona.
A Atenção Primária à Saúde (APS), em particular a Medicina de Família, ocupa posição central nessa resposta. Como ponto de primeiro contato e espaço de cuidado contínuo, a APS é fundamental para a identificação precoce do uso problemático de substâncias, o manejo das comorbidades clínicas associadas e a coordenação do cuidado longitudinal. A literatura indica que modelos integrados de atenção primária – envolvendo equipes multiprofissionais – podem expandir o acesso ao tratamento medicamentoso para TUP-O e melhorar desfechos clínicos, ao aumentar a adesão e facilitar o seguimento terapêutico. Revisões sistemáticas apontam que arranjos coordenados em APS, com médicos, enfermeiros, farmacêuticos e outros profissionais, tendem a elevar a proporção de pacientes que iniciam e mantêm tratamento medicamentoso (Medication-Assisted Treatment, MAT) para transtorno por uso de opioides, além de ampliarem o acesso a serviços de acompanhamento.
Essa perspectiva é reforçada por entidades como a American Academy of Family Physicians (AAFP), cujas diretrizes destacam que os opioides sintéticos, como o fentanil, tornaram-se a principal causa de morte por overdose nos Estados Unidos e recomendam a ampliação da disponibilidade de naloxona, bem como a incorporação sistemática do tratamento medicamentoso para TUP-O na prática da Medicina de Família. Em síntese, a APS e a Medicina de Família são parte indispensável da resposta à crise: atuam na prevenção primária (triagem de risco e aconselhamento), no tratamento (incluindo prescrição de buprenorfina e outras modalidades de MOUD) e na redução de danos (dispensação de naloxona, educação comunitária), além de coordenarem o cuidado após eventos de overdose, integrando diferentes pontos da rede assistencial.
Estratégias e intervenções na Atenção Primária
Diversas intervenções implementadas no âmbito da atenção primária têm se mostrado promissoras no enfrentamento da crise do fentanil. Entre elas, destacam-se: a triagem estruturada para uso de substâncias (como o modelo SBIRT), a distribuição comunitária de naloxona, a integração entre serviços de emergência e APS para garantir continuidade de cuidado, o uso de protocolos clínicos baseados em evidências e a organização de equipes multiprofissionais com participação de pares de recuperação.
No campo da triagem, o modelo SBIRT (Screening, Brief Intervention, and Referral to Treatment) propõe um fluxo padronizado de avaliação do uso de substâncias em consultórios de atenção primária e outros pontos de cuidado. Ele combina triagem com instrumentos validados (como AUDIT e DAST), breve intervenção com abordagem motivacional e encaminhamento estruturado para tratamento especializado, quando indicado. Programas nacionais apoiados pelo SAMHSA reportaram resultados positivos, incluindo aumento significativo na proporção de pacientes que referem redução ou cessação do uso de substâncias após alguns meses de acompanhamento, o que sugere que a triagem sistemática e as intervenções breves podem atuar como barreiras iniciais à progressão para quadros mais graves de TUP-O. Atualmente, o SBIRT pode ser reembolsado pelo Medicare em serviços de atenção primária e em departamentos de emergência, o que favorece sua adoção em larga escala e a incorporação da triagem de risco como rotina assistencial.
Outra intervenção central é a distribuição comunitária de naloxona. A naloxona é o antídoto de escolha em casos de overdose por opioides, e campanhas recentes têm buscado torná-la amplamente disponível para populações em risco e seus familiares. Em todos os 50 estados norte-americanos, a naloxona pode ser obtida sem receita médica em farmácias, e programas comunitários treinam leigos – familiares, professores, pares em recuperação – para reconhecer sinais de overdose e administrar o medicamento. A literatura descreve diferentes modelos de distribuição: programas comunitários de educação e fornecimento de naloxona (OEND), protocolos de prescrição em farmácias, kits disponibilizados em unidades de emergência e distribuição vinculada a consultas na APS. Em intervenções com médicos de família, iniciativas de academic detailing demonstraram aumento relevante na prescrição de naloxona, evidenciando que o treinamento estruturado de provedores pode ampliar sua oferta em contextos primários. Em escala populacional, estudos de séries temporais interrompidas, como o conduzido em Massachusetts, encontraram associação entre a expansão de programas de educação e distribuição de naloxona e reduções subsequentes nas taxas de morte por overdose, ainda que a necessidade de ajustes para fatores de confusão exija interpretações cautelosas. Em síntese, a presença da naloxona em farmácias comunitárias e em serviços de APS, combinada a ações de treinamento, é considerada componente crítico para reduzir a mortalidade aguda, embora a mensuração precise de seu efeito direto ainda demande estudos longitudinais mais robustos.
A integração entre atenção primária, serviços de emergência e continuidade de cuidado após uma overdose constitui outro eixo estratégico. Muitos sobreviventes de overdose são atendidos em departamentos de emergência ou hospitais e, sem encaminhamento efetivo, retornam rapidamente a padrões de uso de alto risco. Modelos integrados buscam “fechar essa lacuna” por meio de programas de ponte para recuperação, que contratam navegadores de pacientes ou pares de apoio para acompanhar o indivíduo desde o atendimento emergencial até as consultas ambulatoriais de seguimento. No estado de New Jersey, por exemplo, o Opioid Overdose Recovery Program (OORP) posicionou pares de recuperação em prontos-socorros imediatamente após eventos de overdose. Avaliações retrospectivas utilizando dados do Medicaid mostraram que a implementação do OORP em múltiplos hospitais se associou ao aumento na iniciação de tratamento com medicações para TUP-O (MOUD) e à redução de novos episódios de overdose que resultam em reinternações. Estudos com desenho de coorte e modelos do tipo event study, baseados em diferença-em-diferenças escalonada, sugerem que esse tipo de intervenção pode melhorar a continuidade do cuidado e diminuir a recorrência de eventos graves. Paralelamente, iniciativas como projetos hub-and-spoke e tele-mentoria entre especialistas em TUP-O e médicos de APS ampliam a capacidade da atenção primária de iniciar e manter MOUD, reduzindo barreiras de acesso para populações vulneráveis.
Além disso, protocolos clínicos padronizados e programas de educação continuada para provedores têm papel relevante. Na APS, diretrizes de manejo da dor crônica e do TUP-O recomendam o uso sistemático de ferramentas de avaliação de risco, a consulta a programas de monitoramento de prescrições (Prescription Drug Monitoring Programs – PDMPs) e a observância de orientações específicas para prescrição de analgésicos opioides. O próprio SBIRT, já citado, é um exemplo de protocolo formal de triagem e intervenção breve. Agências como o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) recomendam a oferta de naloxona a pacientes em terapia opioide considerados de alto risco e a consideração de MOUD quando há quadro de dependência estabelecido. Para viabilizar essa prática, programas de capacitação como academic detailing e iniciativas de tele-educação (por exemplo, Project ECHO) têm sido empregados para treinar médicos de família e outras equipes da APS no diagnóstico e no tratamento do TUP-O. Avaliações pré e pós-intervenção sugerem que esses treinamentos aumentam o conforto dos profissionais com o tema, elevam o número de prescrições de MOUD e ampliam o uso de naloxona em cenários ambulatoriais.
Por fim, a organização de equipes multiprofissionais e a inclusão de apoio entre pares constituem componentes importantes dos modelos mais promissores. A incorporação de profissionais de saúde mental, enfermeiros, farmacêuticos, assistentes sociais e navegadores de pacientes ao time de atenção primária permite abordar, de forma mais abrangente, as múltiplas barreiras que pessoas com TUP-O enfrentam. Modelos integrados – como aqueles que utilizam “peer coaches” ou especialistas em recuperação – combinam experiência vivida com formação técnica para apoiar adesão ao tratamento, reduzir estigma e mediar o acesso a recursos sociais. Ensaios controlados em contextos de dependência química indicam que o suporte por pares pode aumentar a permanência em tratamento e reduzir o risco de recaída. Em APS, abordagens inspiradas no Collaborative Care, adaptadas ao TUP-O, têm mostrado potencial para melhorar desfechos clínicos e ampliar o acesso à MAT, sobretudo quando enfermeiros ou farmacêuticos atuam como care managers, acompanhando de perto o percurso terapêutico. A avaliação desses modelos inclui indicadores como adesão medicamentosa (dias em tratamento com buprenorfina ou metadona), uso de serviços (consultas de emergência, hospitalizações) e mudanças em escores de uso de substâncias ao longo do tempo, contribuindo para consolidar evidências sobre o papel da atenção primária na resposta à crise de opioides.
Metodologias de avaliação de impacto
Na literatura, são usados diversos desenhos metodológicos para medir o impacto das ações de atenção primária na crise do fentanil, como os estudos baseados em bases administrativas, muitos estudos empregam dados secundários (prontuários eletrônicos, bases de seguradoras) e modelagens estatísticas. Exemplo notável é o difference-in-differences utilizado por Morgan-Barsamian et al. na intervenção PINPOINT do Oregon. Eles integraram bases de dados All Payer Claims e formulários de adesão dos médicos, comparando clínicas participantes e de controle. O resultado: a intervenção levou a aumento significativo no tratamento com MAT (IRR ~1,21) e outros tratamentos, mas não houve redução estatisticamente significativa nas overdoses não fatais observadas. Outro exemplo é o estudo de Treitler et al. (JAMA Netw Open 2024) sobre o programa OORP em hospitais de NJ, que usou um desenho event study com dados do Medicaid e mostrou um aumento na iniciação de MOUD pós-overdose e diminuição de overdoses repetidas. Tais estudos avaliam eventos de saúde (overdoses não fatais, início de tratamento, hospitalizações) num período antes/depois da implementação, frequentemente ajustando para características demográficas e de saúde, e muitas vezes classificam hospitais ou provedores em grupos “intervenção” e “controle” conforme o cronograma de implantação.
Os ensaios clínicos controlados e quasi-experimentos, são alguns programas queA passaram por ensaios randomizados ou pilotos controlados. Por exemplo, pilotos de SBIRT em ambulatórios foram avaliados em ensaios piloto (como em ortopedia pediátrica) mostrando viabilidade e algum impacto nos indicadores de uso de substâncias. Metanálises de SBIRT em pacientes ambulatoriais indicam reduções modestos no consumo de drogas após intervenções breves. Em nível comunitário, estudos quasi-experimentais (ex. séries temporais interrompidas) comparam tendências de mortalidade antes e depois de políticas de expansão de naloxona.
As métricas de processo e resultados intermediários que embora não mensurem diretamente mortes, são indicadores importantes de impacto. Incluem processo (número de pacientes triados, de kits de naloxona entregues, de encaminhamentos realizados) e resultados intermediários (início de tratamento, adesão à medicação, redução em ED visits). O estudo do programa de farmácias em ND, por exemplo, reportou taxas de risco e a magnitude de intervenções pós-triagem, sugerindo potencial de impacto futuro nos graves.
Os desfechos clínicos diretos, para medir mortalidade e reinternações, empregam-se dados de óbitos (via sistemas de informação nacional) e recidivas hospitalares. Assim, análises populacionais podem usar regressões de Poisson para comparar taxas de overdoses fatais em jurisdições com e sem certas intervenções (p.ex. programas de naloxona). Entretanto, como observado em revisão recente, poucos estudos conseguiram associar modelos de distribuição de naloxona a mudanças mensuráveis na mortalidade. A falta de dados consistentes dificulta determinar quais fatores do modelo (quantidade de kits, locais de distribuição, parceiros envolvidos) têm maior efeito sobre mortes por overdose. Da mesma forma, intervenções em APS muitas vezes focam em resultados como redução do uso abusivo ou aumento da participação em tratamento, que são preditores intermediários de diminuição de mortalidade em longo prazo.
Em suma, metodologias avaliadas variam de ensaios clínicos a análises observacionais robustas (diferença-em-diferenças, séries temporais, modelagem baseada em coortes). Cada abordagem analisa diferentes desfechos – desde indicadores de processo (triagens realizadas, medicamentos prescritos) até desfechos finais (overdoses fatais e não fatais, reinternações por overdose). Por exemplo, Morgan-Barsamian et al. não viram queda nas sobredoses não fatais enquanto Treitler et al. identificaram redução de recaídas após programa com pares. Essas discrepâncias destacam a complexidade da mensuração em campo e a necessidade de estudos comparativos adicionais para confirmar o quanto a intervenção em atenção primária traduz em benefício tangível na redução de overdoses e mortalidade.
Discussão
O conjunto de evidências disponível indica que a Medicina de Família e a Atenção Primária à Saúde (APS) são componentes centrais da resposta à crise do fentanil nos Estados Unidos. O foco da APS vai além do manejo imediato da overdose: envolve prevenção, detecção precoce do uso problemático, cuidado integral de pacientes de alto risco e coordenação com redes de suporte social e sanitário. As estratégias discutidas ao longo do artigo – triagem estruturada com modelos como o SBIRT, ampliação do acesso à naloxona em farmácias e serviços comunitários, integração entre APS e serviços de urgência e organização de equipes multiprofissionais – compõem um desenho de intervenção multifacetado, coerente com recomendações de organismos internacionais. Relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de agências norte-americanas sublinham que existem tratamentos eficazes para a dependência de opioides, mas que apenas uma minoria das pessoas que deles necessita tem acesso, e enfatizam que a naloxona pode prevenir mortes por overdose quando administrada em tempo oportuno. Nesse sentido, ampliar o acesso a tratamento medicamentoso e a instrumentos de redução de danos não é apenas uma opção desejável, mas uma exigência de saúde pública.
As evidências sobre o impacto dessas intervenções, contudo, permanecem heterogêneas. Estudos observacionais e quasi-experimentais recentes mostram que programas estruturados em APS podem aumentar de forma consistente o uso de medicações para transtorno por uso de opioides (MOUD), melhorar a retenção em tratamento e fortalecer a articulação entre serviços, mas nem sempre se observa, em prazos curtos, uma redução estatisticamente significativa nas taxas de mortalidade por overdose. Revisões de literatura apontam lacunas importantes na capacidade de conectar, de modo direto, intervenções específicas em atenção primária à queda de mortes por overdose em nível populacional. Isso sugere que a eficácia dessas estratégias é fortemente modulada por fatores contextuais, como a adesão e o engajamento das equipes de saúde, a amplitude da cobertura populacional, o desenho de financiamento, a densidade da oferta de serviços especializados e as características sociodemográficas dos territórios atendidos. Nesse cenário, o vínculo longitudinal construído pelas equipes de Medicina de Família parece desempenhar papel decisivo para transformar intervenções pontuais (como a naloxona entregue em um atendimento) em trajetórias de cuidado contínuo e mais seguras.
Entre os desafios recorrentes, destacam-se o estigma persistente em relação ao uso de drogas, as lacunas de formação dos médicos de família e demais profissionais da APS em relação ao TUP-O e a fragilidade do financiamento de programas de redução de danos. Muitos profissionais relatam insegurança para diagnosticar TUP-O, prescrever MOUD ou abordar o tema com os pacientes, o que reforça a importância de iniciativas estruturadas de capacitação, como programas de tele-mentoria (a exemplo do Project ECHO) e estratégias de academic detailing focadas em naloxona e tratamento de dependência. Essas iniciativas têm demonstrado potencial para melhorar conhecimentos, modificar atitudes e incrementar a adoção de práticas baseadas em evidências na APS. Do ponto de vista da pesquisa, permanece a necessidade de padronizar desfechos, desenvolver estudos comparativos entre diferentes modelos de intervenção e combinar análises quantitativas em larga escala com abordagens qualitativas que captem experiências de usuários, famílias e equipes. Ensaios controlados por clusters e avaliações robustas de implementação poderiam esclarecer quais componentes – triagem, acompanhamento por pares, teleconsultoria, incentivos financeiros – são mais decisivos em contextos distintos, ainda que tais estudos enfrentem desafios logísticos consideráveis.
Conclusões e considerações finais
A resposta efetiva à crise do fentanil nos Estados Unidos exige o fortalecimento da Atenção Primária e da Medicina de Família como eixo estruturante das políticas de enfrentamento aos opioides. A APS oferece o ambiente privilegiado para implementar triagem sistemática do uso de substâncias (por meio de protocolos como o SBIRT), promover educação em saúde sobre riscos relacionados aos opioides, disponibilizar naloxona em escala ampliada e garantir encaminhamento célere e qualificado para tratamento de dependência. As experiências analisadas sugerem que, quando o acesso aos serviços é facilitado por políticas públicas (como a disponibilização de naloxona sem receita) e por programas de capacitação de equipes, aumentam as possibilidades de que pessoas em situação de risco encontrem suporte técnico e relacional em tempo oportuno. As metodologias de pesquisa empregadas – que vão de estudos observacionais com grandes bases de dados a programas piloto e avaliações de implementação – reforçam a importância de monitorar, simultaneamente, indicadores de processo (triagens realizadas, kits de naloxona distribuídos, número de prescrições de MOUD) e indicadores de resultado (adesão ao tratamento, redução de visitas a serviços de emergência, quedas em reinternações e óbitos).
Proteger vidas em meio à epidemia de fentanil depende, em grande medida, de como os sistemas de saúde conseguirão consolidar essas estratégias na rotina da atenção primária. Isso implica investir de forma contínua na formação de médicos de família e equipes multiprofissionais, na integração entre diferentes níveis de atenção e na construção de redes territoriais de cuidado que articulem serviços de saúde, assistência social e iniciativas comunitárias. A literatura internacional já documenta melhorias relevantes em acesso e qualidade do cuidado – como maior número de pacientes iniciando e mantendo MOUD e expansão significativa da disponibilidade de naloxona – mas ainda carece de evidências conclusivas sobre o impacto em larga escala na mortalidade por overdose, especialmente em contextos de rápida mudança no mercado ilegal de drogas. Cabe a gestores, formuladores de políticas e profissionais de APS seguir ampliando, avaliando e ajustando essas práticas com base em dados e em experiências concretas, de modo que a atenção primária seja reconhecida, na prática e não apenas no discurso, como um pilar estratégico no enfrentamento às overdoses fatais por fentanil e a outros opioides sintéticos.
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1 Médico, graduado em Medicina pela Universidad de Ciencias Médicas de Cuba e pós-graduado em Medicina de Família e Comunidade (UFCSPA)
E-mail: lucasomni@gmail.com
