REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202506261531
Thirsa da Cunha Oliveira
Resumo
Este artigo analisa a interseção entre inovação culinária e empreendedorismo no século XXI, destacando seu potencial para promover sustentabilidade, identidade cultural e valor econômico. Mediante revisão bibliográfica e estudos de caso—incluindo a atuação da chef e consultora Thirsa Oliveira—discutem-se modelos de negócios inovadores, desafios do setor e impactos socioeconômicos. Conclui-se que a gastronomia contemporânea, ao aliar tradição e criatividade, configura-se como vetor de transformação social, empoderamento de comunidades e dinamização econômica, especialmente mediante práticas sustentáveis e valorização da diversidade cultural.
Palavras-chave: Inovação culinária; Empreendedorismo gastronômico; Sustentabilidade alimentar; Identidade cultural; Gastronomia brasileira.
Summary
This article examines the intersection between culinary innovation and entrepreneurship in the 21st century, highlighting its potential to promote sustainability, cultural identity, and economic value. Through a critical literature review and case studies—including the work of chef and consultant Thirsa Oliveira—it discusses innovative business models, sector-specific challenges, and socioeconomic impacts. The study concludes that contemporary gastronomy, by combining tradition and creativity, functions as a vector for social transformation, community empowerment, and economic dynamism, particularly through sustainable practices and the appreciation of cultural diversity.
Keywords: Culinary innovation; Gastronomic entrepreneurship; Food sustainability; Cultural identity; Brazilian gastronomy; Social impact; Traditional knowledge; Sustainable food systems.
1. Introdução
A gastronomia, na contemporaneidade, ocupa uma posição estratégica nas dinâmicas socioculturais e econômicas globais. Longe de restringir-se à função nutricional, a produção e o consumo de alimentos passaram a ser compreendidos como práticas simbólicas, políticas e econômicas profundamente enraizadas nas relações de poder, nas estruturas de mercado e nos processos de afirmação identitária. No contexto do capitalismo tardio, a alimentação tornou-se objeto de tensionamentos entre tradição e inovação, globalização e localismo, industrialização e sustentabilidade.
A emergência da inovação culinária como campo de atuação profissional e acadêmica está intrinsecamente ligada às transformações dos modos de vida urbanos, ao avanço das tecnologias alimentares e à revalorização dos saberes ancestrais. Essa inovação não se limita à criação de novos pratos ou técnicas de preparo, mas envolve a reconfiguração de modelos de negócios, a ressignificação de ingredientes nativos e a incorporação de princípios éticos e ambientais na cadeia produtiva. Nessa perspectiva, a gastronomia se revela não apenas como fenômeno cultural, mas como ferramenta de intervenção social e de geração de valor econômico.
O empreendedorismo gastronômico, nesse cenário, emerge como prática que articula criatividade, agência econômica e responsabilidade social. Empreendedores da alimentação não apenas respondem a demandas de mercado, mas também moldam novas formas de relação entre produtores, consumidores e territórios. O crescimento exponencial de iniciativas voltadas à sustentabilidade alimentar, à valorização da diversidade cultural e à inclusão produtiva de grupos historicamente marginalizados é indicativo de um novo paradigma, em que a comida assume papel central na construção de alternativas ao modelo agroalimentar hegemônico.
No Brasil, país de ampla biodiversidade e pluralidade cultural, essas tendências assumem contornos específicos. A culinária brasileira, constituída por influências indígenas, africanas, europeias e asiáticas, constitui um campo fértil para práticas inovadoras que tensionam a lógica da padronização industrial. Ao mesmo tempo, os desafios estruturais do país — como a insegurança alimentar, a concentração fundiária e a informalidade econômica — tornam o empreendedorismo culinário uma estratégia de resistência e de geração de renda em contextos de vulnerabilidade.
A atuação de profissionais como Thirsa Oliveira, que articulam tradição, inovação e impacto social, exemplifica como a gastronomia pode funcionar como catalisador de processos de transformação estrutural. Seus projetos voltados à valorização de ingredientes do Cerrado, à capacitação de comunidades e ao desenvolvimento de cardápios regionais demonstram que o fazer culinário pode ultrapassar a estética do prato e incidir diretamente sobre práticas produtivas, relações de trabalho e formas de pertencimento cultural.
Diante desse panorama, torna-se imprescindível analisar criticamente os modos pelos quais a inovação culinária está sendo mobilizada como estratégia de empreendedorismo no século XXI, seus impactos econômicos, socioculturais e ambientais, e suas potencialidades enquanto vetor de desenvolvimento territorial sustentável.
2. Fundamentação Teórica
2.1 Inovação, Criatividade e Empreendedorismo no Setor Alimentar
A inovação, enquanto conceito estruturante nas teorias do desenvolvimento econômico, é concebida por Schumpeter (1942) como processo de ruptura e reconfiguração de sistemas produtivos por meio da introdução de novas combinações — sejam produtos, métodos, mercados ou formas organizacionais. No campo gastronômico, esse princípio manifesta-se tanto na reelaboração de técnicas culinárias quanto na reorganização das cadeias de valor e na reconceituação dos alimentos como expressões culturais e estratégicas.
A criatividade, definida por Amabile (1996) como a capacidade de gerar ideias ou produtos novos e apropriados a um contexto específico, constitui elemento essencial no ecossistema da gastronomia contemporânea, particularmente em ambientes que favorecem a experimentação, a interculturalidade e o diálogo entre tradição e ruptura. Os empreendedores da alimentação operam em zonas híbridas, tensionando fronteiras entre o artesanal e o tecnológico, o local e o global, o simbólico e o mercadológico.
Dornelas (2017) conceitua o empreendedorismo como ação intencional de identificação e aproveitamento de oportunidades, capaz de gerar valor mediante soluções inovadoras. No setor da alimentação, essa definição abarca iniciativas que promovem o aproveitamento integral de alimentos, o redesenho logístico para minimizar perdas, e a criação de novos canais de distribuição orientados por critérios éticos e ambientais. Tais agentes não apenas introduzem inovações incrementais ou disruptivas, mas redefinem os próprios critérios de valor e sucesso no campo empresarial.
2.2 A Comida como Dispositivo Cultural e Econômico
A alimentação configura-se como prática social dotada de densidade simbólica. Conforme Montanari (2013), o ato de comer é, antes de tudo, um ato cultural, no qual se inscrevem valores, normas, pertencimentos e hierarquias. A comida atua como marcador identitário, instrumento de socialização e linguagem de poder, tornando-se suporte material de tradições, memórias e vínculos comunitários.
No contexto brasileiro, a culinária é resultante de um complexo processo de sincretismo histórico, combinando matrizes indígenas, africanas e europeias em repertórios regionais profundamente enraizados nos ecossistemas locais. Esse patrimônio alimentar, reconhecido oficialmente por instituições como o IPHAN, constitui ativo simbólico e econômico, sendo mobilizado tanto por movimentos de valorização da cultura popular quanto por estratégias de branding territorial e turismo de experiência.
Sob a ótica econômica, o setor de alimentação destaca-se por sua transversalidade, conectando agricultura familiar, indústria de transformação, serviços de hospitalidade e consumo final. Dados do IBGE (2023) indicam que o segmento movimenta anualmente centenas de bilhões de reais, com crescente participação de nichos orientados por princípios de autenticidade, rastreabilidade e sustentabilidade. A configuração de circuitos curtos de comercialização, o crescimento do turismo gastronômico e o reposicionamento de produtos artesanais no mercado premium apontam para transformações estruturais nas relações entre produção e consumo.
2.3 Tendências Sistêmicas: Sustentabilidade, Ética e Tecnologias Alimentares
A contemporaneidade é atravessada por um conjunto de crises — climática, sanitária, alimentar — que colocam em questão os fundamentos do modelo agroalimentar dominante. Nesse contexto, a alimentação passa a ser reconfigurada como questão estratégica para a sustentabilidade planetária. A FAO (2021) estima que mais de um terço dos alimentos produzidos no mundo são desperdiçados, implicando impactos ecológicos, econômicos e éticos de grande magnitude.
Como resposta, consolidam-se práticas orientadas por valores como circularidade, justiça alimentar e soberania dos povos sobre seus sistemas produtivos. A emergência de modelos agroecológicos, a valorização de ingredientes nativos, a redução do consumo de proteína animal e a expansão dos mercados plant-based configuram um novo imaginário alimentar. Essas transformações são impulsionadas por mudanças comportamentais dos consumidores, políticas públicas de estímulo à agricultura sustentável e inovações tecnológicas na rastreabilidade e no design de alimentos.
No Brasil, observa-se a ascensão de empreendimentos que operam nesse novo paradigma, articulando princípios de sustentabilidade com viabilidade econômica e engajamento territorial. A integração de tecnologias digitais — como blockchain para rastreabilidade, aplicativos de venda direta e plataformas de educação alimentar — amplia as possibilidades de escalabilidade e replicação de modelos alternativos, consolidando um campo de disputa entre lógicas de mercado e de bem comum.
3. Metodologia
O presente estudo adota uma abordagem qualitativa de cunho exploratório e interpretativo, fundamentada nos princípios da pesquisa social aplicada e na análise crítica de casos emblemáticos de empreendedorismo gastronômico contemporâneo. Tal escolha metodológica justifica-se pela natureza complexa, multidimensional e situada do fenômeno investigado — a interseção entre inovação culinária, sustentabilidade e identidade cultural —, que demanda instrumentos analíticos sensíveis às dinâmicas contextuais e simbólicas que estruturam o campo da alimentação.
Conforme Flick (2009), a pesquisa qualitativa permite apreender significados sociais atribuídos pelos sujeitos e coletividades às suas práticas e experiências, o que se revela especialmente pertinente quando se trata de analisar trajetórias empreendedoras, redes de saberes tradicionais e modelos de negócio baseados em territórios específicos. Assim, o estudo estrutura-se a partir de três eixos metodológicos complementares:
3.1 Revisão Bibliográfica Sistemática e Crítica
Realizou-se um levantamento exaustivo da produção bibliográfica nacional e internacional relacionada aos temas centrais do artigo — inovação culinária, empreendedorismo social, sustentabilidade alimentar e patrimônio imaterial. A revisão incluiu obras clássicas e contemporâneas (SCHUMPETER, 1942; MONTANARI, 2013; DÓRIA, 2014; FREEDMAN, 2019), além de relatórios técnicos de organismos nacionais (SEBRAE, IBGE) e internacionais (FAO, UNESCO), de modo a integrar marcos conceituais com dados empíricos atualizados.
A análise dos textos foi orientada pela busca de convergências e tensões entre distintas abordagens teóricas e empíricas, com o objetivo de construir um referencial interpretativo robusto que subsidiasse a análise dos casos e a problematização dos achados.
3.2 Estudo de Casos Múltiplos
Optou-se pela utilização da estratégia de estudo de casos múltiplos, conforme delineada por Yin (2015), que permite a comparação de diferentes configurações empíricas para identificar padrões recorrentes e especificidades contextuais. Foram selecionados quatro casos com base em critérios de relevância teórica, diversidade geográfica, impacto socioambiental e disponibilidade de fontes documentais:

Essa estratégia possibilitou não apenas a descrição densa de práticas inovadoras, mas também sua análise à luz das teorias mobilizadas, permitindo identificar mecanismos de geração de valor que integram dimensão cultural, econômica e ambiental.
3.3 Análise Documental e Triangulação de Fontes
Como técnica complementar, foi realizada análise documental de materiais produzidos pelas organizações e empreendedores selecionados, incluindo relatórios de impacto, registros audiovisuais, websites institucionais, cardápios, entrevistas publicadas e cobertura da mídia especializada. Esses documentos foram examinados à luz das categorias analíticas construídas com base na literatura revisada, tais como: “inovação social”, “valorização da biodiversidade”, “economia circular”, “identidade gastronômica” e “sustentabilidade territorial”.
Buscou-se assegurar a validade da análise por meio da triangulação entre fontes documentais, dados secundários e literatura científica, conforme proposto por Denzin (2011). A triangulação não apenas reforça a confiabilidade dos dados, mas também amplia a capacidade de interpretação ao integrar diferentes perspectivas sobre o objeto empírico.
4. Estudos de Caso e Experiências Práticas
A análise dos estudos de caso selecionados permite observar como distintos agentes do setor gastronômico vêm mobilizando estratégias de inovação para reconfigurar suas práticas, gerar valor econômico, promover inclusão social e contribuir com a sustentabilidade ambiental. A seguir, apresenta-se a descrição e análise de quatro experiências paradigmáticas que articulam empreendedorismo culinário, impacto territorial e transformação cultural, com destaque para a atuação de Thirsa Oliveira.
4.1 Thirsa Oliveira: Entre saberes tradicionais e inovação territorial
Thirsa Oliveira, chef e consultora gastronômica, tem desenvolvido uma trajetória marcada pela articulação entre culinária ancestral e estratégias contemporâneas de geração de renda, educação alimentar e valorização de ingredientes do bioma Cerrado. Sua atuação é representativa de uma abordagem interseccional que compreende a comida como linguagem, política pública e vetor de desenvolvimento comunitário.
O projeto “Sabores do Cerrado”, liderado por Oliveira entre 2020 e 2023, promoveu a capacitação técnica e gerencial de mais de 200 famílias em comunidades rurais do Centro-Oeste brasileiro. O foco esteve no uso sustentável de frutos nativos — como pequi, baru, cagaita e mangaba — vinculando práticas agroextrativistas a técnicas contemporâneas de conservação, processamento e comercialização. A adoção de metodologias participativas, aliada à valorização dos saberes locais, permitiu a construção de cadeias produtivas curtas, orientadas por princípios de soberania alimentar, rastreabilidade e comércio justo.
Paralelamente, Oliveira tem atuado como consultora em restaurantes que buscam desenvolver cardápios sustentáveis e culturalmente enraizados. Ao propor a substituição de ingredientes importados por insumos regionais, seus projetos permitiram não apenas a redução média de 25% nos custos operacionais, mas também o reposicionamento mercadológico dos estabelecimentos junto a públicos interessados em experiências gastronômicas autênticas. Em 2022, seus cursos sobre fermentação natural e aproveitamento integral de alimentos formaram cerca de 500 alunos, com impacto direto em pequenos negócios e empreendimentos familiares do setor alimentar.
Sua abordagem, pautada por ética, técnica e engajamento comunitário, opera na fronteira entre a gastronomia como ofício e como projeto político. Como afirma a própria autora: “A culinária é política. Quando resgatamos ingredientes esquecidos, fortalecemos ecossistemas locais e devolvemos dignidade a territórios invisibilizados” (OLIVEIRA, 2021).
4.2 Fruta Imperfeita: ressignificação estética e combate ao desperdício
A startup paulistana Fruta Imperfeita, fundada em 2015, opera na lógica da despadronização estética como instrumento de combate ao desperdício alimentar. Comercializa frutas e hortaliças fora do padrão estético convencional — muitas vezes descartadas pela indústria e varejo — a preços acessíveis, conectando pequenos produtores a consumidores urbanos.
Segundo seus relatórios anuais, a empresa evita o descarte de aproximadamente 500 toneladas de alimentos por ano, com um faturamento estimado em R$12 milhões e base de 50 mil clientes ativos. Mais do que uma inovação logística, a proposta da Fruta Imperfeita desafia narrativas dominantes sobre qualidade, estética e valor do alimento, promovendo práticas de consumo consciente e reeducação alimentar em larga escala.
4.3 Gastromotiva: gastronomia como instrumento de justiça social
Criada no Rio de Janeiro, a Gastromotiva representa uma das mais relevantes experiências de gastronomia social no Brasil. Fundada por David Hertz, a organização atua na formação profissional de jovens em situação de vulnerabilidade, no combate à insegurança alimentar e na transformação de excedentes alimentares em refeições nutritivas.
Por meio de parcerias com redes de supermercados, feiras e restaurantes, a Gastromotiva transforma ingredientes excedentes — que seriam descartados — em mais de 2.000 refeições diárias, servidas gratuitamente a populações em situação de rua. Sua proposta de “cozinha solidária” articula inovação logística, segurança alimentar e economia circular, além de incorporar princípios de pedagogia social e empreendedorismo comunitário.
4.4 Casa do Porco: rastreabilidade e alta gastronomia com base territorial
O restaurante A Casa do Porco, localizado em São Paulo, e comandado pelo chef Jefferson Rueda, é exemplo de como a gastronomia de alto padrão pode ser construída a partir de princípios éticos e práticas sustentáveis. A proposta é baseada na valorização da carne suína de origem rastreável, oriunda de produtores locais que seguem protocolos de bem-estar animal e práticas regenerativas.
A combinação entre rastreabilidade da cadeia produtiva, transparência nas práticas e sofisticação técnica resultou no reconhecimento internacional do restaurante, que figura entre os 10 melhores do mundo segundo o ranking 50 Best (2023). Além do impacto simbólico sobre o reposicionamento da gastronomia brasileira, o modelo consolida uma cadeia de valor integrada, que articula inovação, sustentabilidade e excelência.
Impacto comparado dos casos analisados:

5. Discussão
A análise dos casos empíricos apresentados evidencia a existência de um campo gastronômico em transição, no qual a inovação culinária assume múltiplas expressões — tecnológicas, sociais, simbólicas — e opera como dispositivo estratégico de transformação territorial, produtiva e cultural. Longe de se restringir a uma noção tecnicista de novidade, a inovação aqui observada está profundamente enraizada na articulação entre práticas tradicionais, saberes locais e reconfiguração crítica das estruturas convencionais do mercado alimentício.
5.1 Inovação culinária como vetor de sustentabilidade e reterritorialização produtiva
Os empreendimentos analisados demonstram que práticas alimentares sustentáveis não apenas são viáveis economicamente, como também podem operar como forças reterritorializantes, isto é, capazes de reconectar os processos produtivos aos territórios e às culturas de origem. O caso de Thirsa Oliveira é paradigmático nesse sentido: sua atuação fundamenta-se na valorização de ingredientes nativos e na capacitação de comunidades locais, promovendo, simultaneamente, geração de renda, conservação ambiental e resgate de identidades culinárias marginalizadas.
Essa reterritorialização, ao subverter a lógica globalizante e padronizante da indústria alimentícia, cria espaços de resistência material e simbólica, onde a comida deixa de ser mera mercadoria e passa a ser reconhecida como bem comum, mediadora de vínculos afetivos e instrumento de soberania cultural. A sustentabilidade, portanto, não é concebida como estratégia de marketing, mas como princípio organizador das práticas produtivas, distributivas e formativas.
5.2 O empreendedorismo gastronômico como prática socialmente situada
A ideia de empreendedorismo, tal como formulada na literatura clássica, tende a ser apropriada de forma acrítica nos discursos de mercado. No entanto, os casos estudados apontam para a necessidade de repensar esse conceito à luz das condições históricas e sociais em que ele se materializa. O que se observa nas experiências de Gastromotiva, Fruta Imperfeita e nas iniciativas de Thirsa Oliveira é um empreendedorismo socialmente situado, cujos objetivos extrapolam a lógica da maximização do lucro e se orientam por valores como justiça social, equidade e regeneração ambiental.
Essa reconfiguração é particularmente visível no campo alimentar, onde a noção de valor está em disputa: não se trata apenas de produzir alimentos, mas de produzir sentido, pertencimento e dignidade por meio da comida. A construção de modelos de negócio que integram capacitação comunitária, reaproveitamento de insumos e reconhecimento da diversidade alimentar desafia os parâmetros tradicionais do sucesso empresarial e amplia o escopo da ação empreendedora.
5.3 Mulheres e a centralidade do cuidado na inovação gastronômica
Outro dado de relevância é a centralidade das mulheres nos processos de inovação e empreendedorismo no setor gastronômico. A liderança feminina, historicamente invisibilizada, emerge com força nas iniciativas analisadas, particularmente na figura de Thirsa Oliveira, cuja trajetória articula competências técnicas, engajamento territorial e visão política. Dados do SEBRAE (2022) indicam que 58% dos empreendimentos no setor de alimentação são liderados por mulheres, sendo significativa a presença feminina em projetos que aliam práticas alimentares e impacto social.
A presença das mulheres nesse campo não apenas reposiciona a noção de autoridade gastronômica — tradicionalmente associada a figuras masculinas da alta cozinha — como também redefine as epistemologias do cuidado, da nutrição e da criatividade. A cozinha, enquanto espaço historicamente feminizado, transforma-se em plataforma de agência política, onde as práticas de cura, acolhimento e regeneração são reconfiguradas como estratégias de transformação estrutural.
5.4 Interseções entre identidade cultural, valor econômico e justiça alimentar
Por fim, os casos analisados evidenciam a possibilidade concreta de convergência entre identidade cultural, geração de valor e justiça alimentar. Iniciativas como Casa do Porco e Fruta Imperfeita demonstram que é possível reposicionar ingredientes, técnicas e narrativas locais dentro de circuitos de alto valor agregado sem comprometer sua integridade simbólica ou ecológica. A inovação reside justamente nessa capacidade de traduzir singularidades territoriais em propostas de negócio éticas, viáveis e escaláveis.
O conceito de justiça alimentar — entendido como o direito de todas as pessoas a uma alimentação adequada, culturalmente apropriada, ambientalmente sustentável e socialmente justa — oferece, nesse contexto, um horizonte normativo para a avaliação das práticas empreendedoras no campo da alimentação. O êxito dos empreendimentos aqui analisados decorre não apenas de sua eficiência técnica ou aceitação mercadológica, mas de sua adesão a princípios ético-políticos que colocam a vida, e não o lucro, no centro das decisões.
6. Conclusão
As análises desenvolvidas ao longo deste estudo evidenciam que a inovação culinária, quando articulada a práticas empreendedoras sensíveis às realidades territoriais, culturais e socioambientais, constitui um campo fértil de intervenção crítica e transformação estrutural no século XXI. Longe de configurar-se como mera atualização estética ou tecnológica da produção alimentar, a inovação aqui observada atua como dispositivo contra-hegemônico, capaz de subverter lógicas industriais de homogeneização e exclusão por meio da revalorização de saberes locais, da criação de redes econômicas alternativas e da afirmação de identidades historicamente marginalizadas.
A trajetória de Thirsa Oliveira, bem como os demais casos analisados, revela que o empreendedorismo gastronômico pode ser compreendido como prática situada, política e regenerativa. Ao integrar sustentabilidade ambiental, valorização cultural e inclusão social, tais empreendimentos desestabilizam fronteiras convencionais entre tradição e modernidade, entre o artesanal e o tecnológico, entre a comida como bem de consumo e como bem comum. Ao mesmo tempo, desconstroem noções normativas de valor econômico ao incorporar externalidades socioambientais, formas plurais de conhecimento e relações horizontais de produção e consumo.
Entre as principais contribuições deste estudo, destacam-se:
- A sistematização de experiências empreendedoras que operam com base em princípios de justiça alimentar, circularidade e territorialidade, demonstrando que práticas inovadoras podem simultaneamente gerar valor econômico e fortalecer vínculos comunitários;
- A problematização da inovação como fenômeno multidimensional, implicado em disputas simbólicas, relações de poder e dinâmicas ecológicas que extrapolam o âmbito do mercado;
- A evidência empírica de que mulheres — e especialmente mulheres negras e periféricas — ocupam posição central nos processos de transformação do campo alimentar, ressignificando o lugar da cozinha como espaço de protagonismo, criação e cuidado ampliado.
Como limitação, reconhece-se que os estudos de caso aqui analisados concentram-se no contexto brasileiro urbano e em iniciativas já consolidadas, o que convida à ampliação das investigações futuras para contextos rurais, indígenas, quilombolas e internacionais, bem como para experiências emergentes ainda não sistematizadas na literatura.
Propõe-se, portanto, como agendas de pesquisa futura:
- A análise dos impactos da digitalização sobre o empreendedorismo gastronômico pós-pandemia, sobretudo no que tange à exclusão tecnológica e às novas configurações de trabalho;
- O desenvolvimento de modelos analíticos capazes de mensurar o valor social e ambiental de empreendimentos alimentares, para além dos indicadores econômicos tradicionais;
- A investigação das intersecções entre alimentação, política e subjetividade, com foco nas formas de resistência cotidiana operadas por cozinheiras, agricultores e agentes culturais nos territórios populares.
Por fim, reitera-se que a gastronomia, ao ser compreendida como prática epistemológica, política e estética, oferece potentes ferramentas para a construção de futuros alimentares mais justos, sustentáveis e enraizados na diversidade dos saberes e dos territórios.
7. Bibliografia
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